Cidadania nos meios eletrônicos: limites e possibilidades

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O Estado Democrático de Direito, erigido pela Constituição de 1988, tem por fundamento expresso no inciso II, do art. 1°, a cidadania. De acordo com o parágrafo único do mesmo artigo: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Há, portanto, duas formas de exercício do poder político: a direta do povo, que é o titular do poder, e a indireta. A participação direta é corolário da concepção de democracia direta, cujo paradigma é identificado na Antiguidade grega, em Atenas, no período auge da democracia, cerca de 500 a.C., quando os cidadãos se reuniam em assembleia para deliberar os assuntos coletivos, dentro do espírito da isegoria, isto é, em iguais condições para argumentação pública.

A indireta é compatível com a noção de democracia representativa, cuja exposição teórica é associada a Stuart Mill. A democracia representativa floresceu na Modernidade, retirando das mãos dos cidadãos, no geral, a possibilidade de tomarem as decisões políticas sem intermediários, a partir da criação do mecanismo do voto e da eleição de dirigentes que os representam.

Pode-se dizer que o sistema representativo gerou a despolitização dos cidadãos, no geral, em nome da profissionalização dos representantes populares. O acesso do povo às decisões políticas passa, naquele momento, a ser mediado por partidos políticos, organizações que objetivam ocupar o poder político.

Trata-se de expediente que se torna problemático na Contemporaneidade, isto é, na Pós-Modernidade. Atualmente, além do fenômeno do descrédito do eleitorado na “classe política”, há a necessidade de ampliar os momentos de participação direta para além dos mecanismos constitucionais (como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular), à medida que se multiplicam os meios de se retirar das instâncias burocráticas a exclusividade na deliberação sobre as medidas prioritárias e as políticas públicas correspondentes para atender aos interesses públicos prementes.

Um dos argumentos mais utilizados contra a expansão dos mecanismos diretos de participação popular era justamente o fato de não dar para os cidadãos de países de ampla extensão territorial e de grande população se reunirem em assembleia para discutir e deliberar assuntos de interesse geral. Entretanto, a transformação da tecnologia de informação e as novas formas de relacionamento social, nas chamadas redes sociais, na web, descortinam soluções para tais questões, uma vez que através dos meios eletrônicos são vencidas algumas dificuldades, entre elas: a espacial, porquanto se fraqueia ao público um espaço virtual para o encontro de todos, mesmo com a distância territorial existente, num local que é, em geral, acessível a um grande número de pessoas, não havendo necessidade de deslocamentos, tampouco de ocupação física do mesmo ambiente.

Outrossim, como bem observa Orides Mezzaroba, a propósito da ciberdemocracia como mecanismo de inclusão política, para que a era digital efetivamente transforme as relações de poder na Contemporaneidade é necessário que os meios eletrônicos não se limitem à mera prestação de contas dos agentes políticos de suas ações, mas que se abram em todas as suas potencialidades comunicativas para uma construção transparente, visível, e, portanto, acessível, do conhecimento, dentro da seguinte “inversão”: os agentes políticos deverão ocupar o papel de receptores do comando emitido pelo conjunto dos cidadãos. Trata-se de uma ‘reengenharia’ complexa, mas que indiscutivelmente promove os valores democráticos, à medida que é inerente à concepção de democracia a construção do espaço público integrado por cidadãos.

As possibilidades são promissoras, a depender da vontade política dos governos de se transformarem em garantidores do diálogo transparente nas arenas públicas, que podem ser construídas também em espaços virtuais. Para tanto, cumpre também à coletividade superar o individualismo atomizante, incentivado pelas condições de vida nas sociedades de mercado, procurando substituir parcela da dimensão dos interesses, que são negociados, pelos afetos, estes sim, indutores de solidariedade social e, por conseguinte, de cidadania.

Também são limites a serem superados: a exclusão digital de parcela do povo, a necessidade de os receptores da comunicação terem de decodificar, com o mínimo de “ruído” comunicacional, a mensagem transmitida nos meios digitais, e também os condicionamentos históricos de cada país. No caso do Brasil, tais condicionamentos estão aliados à necessidade de compartilhamento do poder com o povo, uma vez que a democracia material pressupõe distribuição de oportunidades a todos, para que não haja subordinação dos interesses dos excluídos no processo pretensamente “democrático”.

Em suma, os meios digitais são instrumentos, cujo manejo tem potencial de promover um incremento na intensidade de participação da população. As limitações têm relação com fatores condicionantes da democracia, sendo imprescindível, conforme dito, que haja a inclusão de setores marginalizados em condições de igualdade (isegoria) no debate público e que ocorra maior disposição de os agentes políticos compartilharem do poder político com a comunidade. De resto, não se pode esquecer que as práticas democráticas geram, de forma dialética, melhores condições para que haja a superação dos fatores limitantes, uma vez que participação é algo que se aprimora na dinâmica do processo.

Artigo originalmente publicado no Jornal Enfoque Jurídico, de outubro de 2011.

CITAÇÃO: NOHARA, Irene Patrícia. Cidadania nos meios eletrônicos: limites e possibilidades. Enfoque Jurídico, São Paulo, out. 2010, p. 8.

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