CRIADO POR LEI O DIA NACIONAL DO PERDÃO: Reflexões livres sobre o perdão à brasileira

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O perdão é sublime, sem dúvida. Deve ser algo que parte DE DENTRO PARA FORA, LIBERTANDO os indivíduos da lembrança amarga dos males injustamente sofridos… Não deve ser imposto de forma artificial, pois a realização da justiça auxilia a pessoa que sofreu um dano injusto a mitigar a dor daquela situação que lhe prejudicou.

Na maior parte das vezes a realização da justiça representa apenas uma compensação aos males sofridos, jamais sendo capaz de resgatar o status quo ante ou mesmo trazer de volta o que se perdeu ou apagar as cicatrizes do sofrimento causado…

Ainda que haja condutas exemplares de pessoas que facilmente perdoam a todos dos males sofridos, o que pode ser visto como uma propensão relativamente elogiável, o perdão é algo de FORO ÍNTIMO, dificilmente forçado em termos coletivos, decretado oficialmente ou mesmo passível de disposição por via legal…

Ademais, sentir que os algozes praticaram o mal e nada lhes aconteceu, isso pode gerar uma retraumatização nas pessoas, pois além de sofrer o mal, ainda vão se deparar com uma resposta indiferente das instituições e da sociedade…

Essa questão de punição ou perdão deve ser analisada, sem dúvida, com BOM SENSO: não se trata aqui de se voltar a impingir sofrimento exagerado aos responsáveis pelos males causados, não lhes garantir o contraditório ou de buscar a realização da justiça por meio do mero sentimento de vingança, procurando se equiparar aos maus a partir de um pressuposto de Talião, algo que acontecia nos exageros das caçadas medievais às bruxas, mas também não desejamos viver numa sociedade em que os males e condutas prejudiciais são praticados sem que haja qualquer reprimenda adequada e pedagógica…

Daí vem essa LEI DO PERDÃO, lei 13.437/2017, que institui o DIA DO PERDÃO – 30 de agosto…

Ora, ainda que tenha sido feita originariamente na MELHOR das intenções, diante de um caso de pessoa que perdoou os algozes de seu filho morto, isso depois de ter sido eleita, acrescente-se, com o propósito de aumentar a punição dos crimes hediondos, nada impede com que seu uso seja realizado de forma distorcida pelos agentes políticos que a votaram…

O perdão deve ser consequência natural e íntima da realização da justiça e, posteriormente, do tempo, pois ele não costuma se manifestar quando ainda está amargando a goela daqueles que não puderam expressar para a sociedade o mal que sofreram, circunstância em que o tempo não faz apagar o registro do mal sofrido e não curado, cicatriz aberta e não tratada socialmente…

Estranho, desse ponto de vista, pretender criar um dia do perdão de forma coletiva, isto é, um DIA NACIONAL DO PERDÃO?

Pior, nos equipararíamos aos regimes autoritários se porventura a propaganda oficial ainda indicasse lá para o dia 30 de agosto quem e o que as pessoas deveriam perdoar…

Outrossim, conforme expõe Maria Rita Kehl: a identidade do brasileiro se construiu em função da imagem de um povo: alegre, festivo, carnavalesco, de miscigenação, que perdoa com facilidade e que com a mesma facilidade esquece os agravos sofridos…

Conforme expõe a psicanalista, tem coisas que não podem ser esquecidas, que devem ser reparadas – ALGUMA JUSTIÇA tem de ser feita para reparar a injustiça…

Logo, essa característica de identidade do brasileiro como um povo supostamente NÃO RESSENTIDO, camufla um problema gravíssimo: o de não levar às últimas consequências a reparação das injustiças… Aliás, na psicanálise se estuda o fato de que tudo o que é camuflado, escondido, não digerido, não trabalhado, não expressado, depois tem o potencial de reaparecer em forças inconscientes destrutivas…

Como prova de que o povo brasileiro possui dificuldade de aprofundar as medidas de reparação de injustiças coletivas, podem ser mencionados dois exemplos: a ausência de intensificação das medidas da justiça de transição, conforme determinações da ONU, ou mesmo a forma socialmente excludente com que se deu a abolição da escravidão no Brasil, sem que houvesse o mínimo planejamento para inclusão do negro recém-liberto, que passou de escravo para ser disperso na miséria circundante…

Em suma, é absurda essa previsão legal de uma lei para instituir um DIA NACIONAL DO PERDÃO… Rogamos então que os políticos não forcem a sociedade brasileira a perdoar intempestivamente algo que ainda não foi digerido… pois, o perdão é bom quando acompanhado do afastamento temporal de uma ferida que foi tratada, principalmente depois de realizada justiça, algo que dura um tempo: SUBJETIVO, INDIVIDUAL e de FORO ÍNTIMO…

Ainda, estamos vivenciando um dos raros momentos de cidadania em que as pessoas já não desejam perdoar, nem esquecer, sobretudo os políticos dos desvios praticados, sendo que muitos deles estão sendo presos e julgados pelos males causados à sociedade, então, não nos venham requentar esse arquétipo de um povo que esquece com facilidade, pois isso não é pedagógico, muito menos uma atitude que contribui para o aprimoramento coletivo…

Não vamos engrossar o rebanho dos que encontram o sentido da vida no respeito à vontade dos donos do poder, sobretudo aqueles que intentam realizar um esquecimento forçado dos arbítrios e distorções que praticaram e desejam continuar praticando, algo que, aliás, nada tem a ver com perdão…

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