Entrevista com Marco Aurélio Ceccato

Marco Aurélio Ceccato, entrevistado do direitoadm.com.br, defendeu recentemente seu mestrado na área do Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP, em dissertação orientada por Edmir Netto de Araújo, tendo sido aprovado com distinção em função da brilhante pesquisa acerca de Cartéis em contratações públicas e o Direito Administrativo.

Além do orientador Edmir, a banca foi composta também pelos Livre-Docentes Thiago Marrara e Irene Nohara (gestora do site direitoadm.com.br), que entrevista o Mestre nesse assunto interessante, qual seja: a interface entre as práticas de cartelização do prisma das medidas que podem promover a identificação e o desmantelamento das articulações de cartéis em licitações e contratos.

Primeiramente, parabéns pela dissertação de excelência, gostaria também de agradecer a disposição de já fazer um teaser dessa obra, fruto de dissertação recém-defendida, disponibilizada doravante na plataforma digital de teses e dissertações da USP, que esclarece pontos nem sempre conhecidos sobre as dinâmicas distorcidas de licitantes estruturados em cartéis.

Vamos começar, então, com algumas perguntas básicas: o que é um cartel e o que ele provoca nas licitações, ou seja, qual o impacto dessa atuação no âmbito das licitações e contratos públicos do ponto de vista econômico e social?

M. A. Ceccato: Cartéis são acordos ilícitos entre agentes privados com o objetivo de fraudar qualquer variável comercial. Por exemplo, os integrantes de um cartel podem combinar preços uniformes a serem cobrados por um dado produto ou serviço, vedar políticas de descontos, dividir o mercado entre si, limitar cotas de produção, preestabelecer formas de participação em licitações etc. Todos esses são exemplos de aspectos mercadológicos alterados artificialmente por cartéis, que o fazem com o objetivo precípuo de aumentar ilegitimamente os lucros dos cartelistas. É importante frisar que esses acordos ilícitos ocorrem não apenas no mercado privado, mas também no “mercado licitatório”, nas contratações promovidas pelo Estado, sendo justamente esse o objeto de estudo da dissertação de mestrado realizada. No caso específico das contratações públicas, principalmente aquelas precedidas de licitação, a atuação de cartéis é ainda mais gravosa que aquela verificada nas contratações estritamente entre particulares, já que a Administração Pública e o erário que são afetados, prejudicando, de maneira reflexa, todos os cidadãos. Visto sob outra forma, a atuação de cartéis nas contratações públicas provoca uma ilegítima transferência de recursos do erário para os cartelistas favorecidos, diminuindo, consequentemente, o dinheiro público disponível para a consecução de outras prestações administrativas. Esses prejuízos afetam principalmente as populações mais pobres, as quais são, naturalmente, mais dependentes da atuação estatal. Em síntese, a atuação de cartéis nas contratações públicas provoca uma clara socialização das perdas, algo bastante trágico sob um viés econômico e social.

Existem MIL E UMA formas de cartelização, sendo um grande desafio por parte dos gestores públicos a identificação de cartel em licitações. Como é essa forma do ABC, ABC? Poderia nos relatar algumas táticas que são clássicas dos cartéis para fins de orientar o gestor público no reconhecimento de sua presença na licitação?

M. A. Ceccato: De fato, a pesquisa procurou demonstrar que os cartéis podem atuar de diversas formas nas contratações públicas e, infelizmente, esse fenômeno não ocorre apenas no Brasil, mas em diversos países do mundo. Uma das formas mais comuns de cartelização é a prática conhecida como “rodízio” ou “propostas rotativas” (“bid rotation”), em que os licitantes conspiradores procuram alternar, a cada licitação, o detentor da melhor proposta, de forma que nem sempre o mesmo competidor figure como adjudicatário do objeto. Com isso, cria-se uma aparência de competitividade nos certames, dificultando a descoberta do acordo espúrio. Foi mencionado o seguinte exemplo na dissertação: as empresas A, B e C, aparentemente concorrentes entre si (mas que integram, na realidade, um cartel), ajustam antecipadamente que a primeira licitação será vencida pela empresa A, a segunda pela empresa B, a terceira pela empresa C e assim sucessivamente. Em razão dessa alternância, é comum que as empresas não designadas para vencer uma dada licitação dela participem apresentando “propostas de cobertura” (fictícias), apenas para simular haver concorrência no certame e acobertar o conluio. É importante, pois, que os órgãos de controle sempre reúnam o maior número possível de informações sobre licitações similares realizadas no passado para um dado objeto a ser contratado, o que facilita a descoberta de padrões suspeitos de alternância de vencedores, já que a análise de um único processo de contratação, individualmente, pouco pode revelar a respeito de um cartel.

O que são: cover bidding ou complementary bidding e a bid suppression?

M. A. Ceccato: “Cover bidding” ou “complementary bidding” são expressões internacionais sinônimas para designar a prática de apresentação de propostas de cobertura (ou complementares) nas licitações. Essas propostas de cobertura nada mais são que ofertas meramente simbólicas (fictícias) direcionadas à Administração contratante, sem a real intenção de se sagrarem vencedoras. O objetivo dessas propostas de cobertura é apenas conferir aparência de competitividade aos certames, acobertando o cartelista então designado para vencer a licitação. Já a expressão “bid suppression” é internacionalmente utilizada para designar a prática de supressão de propostas, mediante a qual os integrantes de um cartel se abstêm de participar de um processo de contratação pública ou, então, desistem de uma proposta apresentada previamente, de modo a direcionar a adjudicação do objeto da licitação a um cartelista escolhido pelos seus pares. Tanto as propostas de cobertura quanto a supressão de propostas são estratégias colusivas bastante comuns adotadas pelos cartéis atuantes contra o Estado.

É verdade que já houve nos Estados Unidos um cartel cujo código sobre quem iria vencer a licitação tinha relação com AS FASES DA LUA?

M. A. Ceccato: Sim. O caso ficou conhecido como “the electrical-equipment conspiracy” e ocorreu na década de 1950, nos Estados Unidos. Como os integrantes de cartéis possuem conhecimento de que os acordos formulados são ilícitos e podem levar a severas sanções, eles tendem a evitar ao máximo exposições desnecessárias e contatos frequentes que possam ser monitorados por autoridades policiais e administrativas. Em razão disso, muitas vezes são utilizadas mensagens criptografadas, atribuindo apelidos ou códigos alfanuméricos a integrantes de cartel, ou, então, são combinados mecanismos que tornam desnecessários contatos frequentes entre os cartelistas. Por exemplo, foi o que ocorreu no caso “the electrical-equipment conspiracy”, em que grandes fabricantes de equipamentos elétricos dos Estados Unidos ajustavam entre si formas de fraudar a competividade naquele mercado, sendo uma das estratégias cartelizantes, justamente, a adoção de um padrão de rotação (rodízio) de vencedores nas licitações, de acordo com as fases da lua. Ilustrando o cenário, é como se os cartelistas tivessem ajustado que a empresa “A” deveria vencer todas as licitações realizadas sob a lua cheia, a empresa “B” todas as licitações realizadas sob a lua minguante e assim sucessivamente. Com isso, menos contatos entre os cartelistas eram necessários para a combinação de estratégias colusivas, dificultando, assim, a descoberta da fraude.

Os cartéis procuram atuar com uma aparência de legalidade… daí porque há a necessidade de provas indiciárias para identificá-los. Há também o envolvimento de um agente público a acobertar o cartel ou ele sempre ocorre em virtude de ajustes que se dão exclusivamente entre particulares?

M. A. Ceccato: Embora os cartéis sejam ajustes ilícitos exclusivamente entre particulares, é bastante comum que os esquemas colusivos contra a Administração Pública obtenham êxito mediante o envolvimento de agentes públicos. É muito importante, aqui, destacar que o fenômeno da cartelização não se confunde com o da corrupção. A OCDE (uma das organizações internacionais de referência no assunto) preconiza que a cartelização é uma fraude horizontal, exclusivamente entre agentes paritários de mercado, enquanto a corrupção é uma fraude vertical, envolvendo ao menos um agente público, que, por representar o Estado, geralmente está numa posição não paritária. Como demonstrado ao longo da pesquisa, a atuação de cartéis em contratações públicas demanda uma organização mais complexa que aquela verificada em fraudes exclusivamente no setor privado, já que os cartelistas devem combinar não apenas o preço ou qualquer outra variável concorrencial, mas, também, formas de sobrepujar as regras licitatórias previstas na lei e no edital, sem deixar indícios de colusão. Como essa tarefa não é tão simples e, muitas vezes, arriscada, a participação de um agente público que possa acobertar o conluio é uma forma utilizada pelos cartéis para aumentar as suas margens de êxito.

Há mecanismos do procedimento de licitação que contribuiriam para dificultar a atuação dos cartéis? Gostaria que, se possível, nos esclarecesse tanto as transformações provocadas pelo pregão e o uso da tecnologia de informação e também a polêmica sobre a ambivalência do orçamento sigiloso do RDC, sendo este último um tema reconhecidamente controvertido…

M. A. Ceccato: Existem, sim, alguns mecanismos que tornam as licitações públicas menos suscetíveis à prática de cartéis, ressalvando-se, contudo, que é praticamente impossível modelar uma licitação completamente imune à atuação de cartéis. A modalidade pregão, por exemplo, é menos suscetível à ocorrência de cartéis do que as clássicas modalidades que originariamente foram previstas pela Lei Geral de Licitações (a Lei 8.666/1993, que está em vias de ser modificada). Isso porque o pregão reduziu os custos de participação em um procedimento licitatório (permitindo uma maior entrada de competidores, inclusive de menor porte), além de adotar a chamada “inversão de fases”, acelerando os trâmites burocráticos e diminuindo as chances de formação de conluios no decorrer dos certames. O pregão eletrônico, por sua vez, é ainda menos suscetível a cartéis que os pregões presenciais, já que permite a todos aqueles que tenham apresentado propostas válidas continuar a ofertar lances de maneira sucessiva pelos sistemas eletrônicos, de maneira anônima. Esse anonimato dos proponentes, usualmente conferido pelas modalidades eletrônicas, favorece que eventuais licitantes cartelistas não saibam, de antemão, se todos os demais competidores são integrantes do conluio ou não, gerando um fator de instabilidade e, por conseguinte, uma maior chance de o cartel fracassar. Por fim, a questão do orçamento sigiloso, previsto no Regime Diferenciado de Contratações (RDC), funcionaria também como um fator de instabilidade para os cartéis, já que os integrantes do conluio não teriam acesso ao preço de referência cotado pela Administração Pública, levando à formulação de propostas licitatórias mais competitivas e não orientadas pelo valor máximo orçado. Todavia, essa lógica por detrás do orçamento sigiloso do RDC funcionaria mais em um plano teórico do que real, já que, na prática, os cartelistas podem tomar conhecimento do preço de referência da Administração por vias indiretas (como na negociação final de preços) ou, então, por meio de um agente público corrupto, o que apenas agravaria o cenário. Além disso, algumas das estratégias colusivas, como a divisão de mercado, sequer dependem do preço de referência da Administração para serem consumadas, o que torna ainda mais questionável o real impacto dessa medida como mecanismo de prevenção a cartéis.

Existem medidas para coibir cartéis que possuem aspectos ambivalentes, isto é, que também podem, a depender do contexto, do ponto de vista prático, intensificar tal prática?

M. A. Ceccato: Na realidade, a modelagem das licitações (isto é, como elas são estruturadas) é que pode tanto reduzir como aumentar as chances de cartelização. O maior exemplo dessa ambivalência se dá com relação à aceitação ou não de consórcios e subcontratações nas contratações públicas. Por exemplo, se o objeto pretendido pela Administração é de grande complexidade, em que poucos fornecedores, sozinhos, seriam capazes de executá-lo integralmente, a admissão de consórcios e subcontratações se mostra, nesses casos, como uma medida pró-competitiva, por permitir a participação de empresas menores consorciadas que, de maneira individual, não teriam condições mínimas de executar o objeto. De outro lado, se o objeto pretendido pela Administração não for de grande complexidade e exista uma pluralidade de empresas capazes de executar o contrato individualmente, admitir consórcios ou subcontratações, nesse segundo cenário, seria uma medida que tornaria a licitação mais vulnerável a cartéis, já que os competidores do mercado teriam maiores estímulos a não competirem entre si (por meio de consórcios ou subcontratações), a fim de garantir uma lucratividade mais alta para todos em vez de ingressarem em uma ferrenha disputa por preços na etapa competitiva dos certames. Tudo depende, portanto, do objeto licitado, do segmento comercial envolvido e das informações disponíveis. O que importa destacar é que as comissões de licitação devem deter conhecimento adequado a respeito do mercado fornecedor antes da modelagem das regras da licitação, pois o mero cumprimento das normas legais e editalícias não se mostra suficiente para a consecução de uma licitação economicamente vantajosa.

No tocante às penas que podem ser aplicadas às empresas, há um sem número de possibilidades de sancionamento de cartéis, existindo até sanções que não são eficazes, para o combate às práticas de cartelização… Como compatibilizar o uso dessas medidas para que haja um resultado social e econômico equilibrado? Quais as dificuldades que são enfrentadas do ponto de vista da aplicação do direito sancionatório na atualidade?

M. A. Ceccato: Atualmente, há uma pluralidade de sanções administrativas possíveis de serem cominadas contra cartéis em contratações públicas, além de existirem diversas autoridades atuantes concorrentemente, cujas competências sancionatórias podem se sobrepor. Isso, por si só, torna bastante dificultosa uma operacionalização coerente do sistema repressor contra cartéis em contratações públicas, havendo um claro risco de excessos punitivos, por mais reprovável que possa ser essa prática. Afora isso, nem sempre as sanções previstas em abstrato na legislação, ao serem transpostas para o caso concreto, podem se mostrar satisfatórias, proporcionais ou economicamente vantajosas para a Administração Pública. Por exemplo, a cominação exclusivamente de multas administrativas contra os integrantes de um cartel pode se mostrar insuficiente, já que o lucro auferido pelos cartelistas, por meio dos ajustes colusivos, pode ser muito maior que a própria penalidade aplicada, tornando economicamente vantajosa a prática delitiva. De outro lado, a cominação de sanções como a suspensão do direito de licitar e contratar com a Administração ou, então, a declaração de inidoneidade podem ter um efeito reverso contra a própria Administração, já que, ao retirarem do mercado licitatório um potencial fornecedor, há redução da oferta para aquele objeto pretendido e, naturalmente, um aumento dos preços cobrados pelos demais licitantes, em um raciocínio tipicamente microeconômico. Por fim, as sanções que impliquem vedações a benefícios fiscais ou creditícios também podem, se mal dosadas, colocar em risco a própria continuidade da empresa, afetando os postos de trabalho, os consumidores e a própria arrecadação tributária. Apesar de a prática de cartéis em contratações públicas ser extremamente repudiável e ser, portanto, merecedora de adequada repressão, não se pode perder de vista que as empresas também possuem uma importante função social, não se mostrando juridicamente adequado um sancionamento para além daquilo que se entende como proporcional. A compatibilização de todas essas sanções administrativas certamente não é tarefa fácil de ser solucionada, mas, novamente, o caminho para as autoridades sancionadoras é compreender as circunstâncias fático-econômicas do mercado envolvido e os potenciais efeitos para a própria Administração Pública, não bastando a mera transposição para o caso concreto das sanções previstas em abstrato na legislação.

Por fim, como avalia a possibilidade do uso mais intensivo de acordo de leniência no caso específico das práticas de cartelização?

M. A. Ceccato: Os acordos de leniência possuem enorme relevância no combate e prevenção a cartéis, configurando importante instrumental disponibilizado à Administração Pública. No Brasil, foram introduzidos no ano 2000 e, curiosamente, o primeiro acordo de leniência celebrado no País se deu justamente em um caso envolvendo cartéis em contratações públicas. A lógica por detrás desses acordos é relativamente simples: determinado ente público recebe a colaboração de um infrator confesso quanto à apuração de um ato ilícito praticado por ele e outros partícipes em troca da suavização (ou até mesmo extinção) da punição que seria aplicada ao colaborador. A adoção de um programa de leniência é fortemente recomendada pela OCDE, por facilitar tanto o desmantelamento de cartéis já existentes quando inibir a formação de novos conluios, já que a simples possibilidade de um cartelista celebrar tal acordo com autoridades sancionadoras gera uma instabilidade e desconfiança recíproca entre os próprios membros do cartel. Atualmente, os acordos de leniência não se restringem apenas às infrações à ordem econômica, podendo ser celebrados também para os casos de infrações decorrentes de atos de corrupção e para infrações licitatórias. O problema, como bem aponta Thiago Marrara, é que a celebração de um acordo de leniência junto ao CADE, por exemplo, não resguarda o infrator colaborador contra processos administrativos sancionadores conduzidos pelas entidades lesadas com fundamento na legislação anticorrupção ou de licitações (e vice-versa). Essa falta de conexão entre as esferas de punição administrativa pode tornar a negociação de um acordo de leniência arriscada e, por conseguinte, menos atrativa para os cartelistas. De todo modo, a praxe tem demonstrado que nem mesmo essa limitação tem reduzido a importância dos acordos de leniência no combate a cartéis.


OBS: O ABC, ABC, é um trocadilho com uma campanha conhecida de alfabetização, cuja música falava ABC, ABC, toda criança tem que ler e escrever… sendo que, do ponto de vista do cartel, o ABC, ABC é, conforme esclarecido, um indício denunciador da prática distorcida que certamente deve inspirar o gestor ´alfabetizado´ no reconhecimento da cartelização em licitações e contratos, assunto abordado com rigor e critério pelo entrevistado convidado.

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