Por mais preparados intelectualmente que estejam os administrativistas, que colecionem livros de direito administrativo nacionais e internacionais, que conheçam a totalidade das vertentes doutrinárias, quase sempre o operador se depara, na prática, com surpresas não relatadas nos livros!

É para tratar dessas situações que esta matéria foi feita. Objetiva-se apontar 10 coisas que normalmente não são relatadas nos livros.

1 – Leilão em concessão!?

Em primeiro lugar, quem exclusivamente lê os livros de Direito Administrativo ficaria tentado dizer que para concessão de serviços públicos segue tão somente à modalidade concorrência, até porque esta é a orientação da Lei n⁰ 8.987/95.

Mas, na prática, como nos adverte a professora de Direito Administrativo da UEL, Nelia Miranda Batisti, com base no art. 4⁰, § 3⁰, da Lei n⁰ 9.491/97 (Programa Nacional de Desestatização), há leilões utilizados em concessões de serviços públicos, como ocorre em parte das concessões de rodovias, por exemplo, em que a concessão é realizada em função da outorga para a empresa que demonstrar que irá pagar ao governo o maior bônus para explorar o serviço delegado.

No caso dos leilões de rodovias, então, o governo divide as estradas em lotes em função da quilometragem e leva tais lotes a leilão, que NÃO CORRESPONDE à modalidade prevista na lei geral de licitações (sendo esta última aplicável, por sua vez, somente: a bens inservíveis, a produtos legalmente apreendidos ou ‘penhorados’ – na verdade, empenhados, ou imóveis adquiridos em procedimento judicial ou em dação em pagamento).

2 – Por conta e risco do concessionário!?

Outro aspecto no quala leitura isolada dos livros pode provocar uma impressão distorcida é que a concessão “corre por conta e risco do empresário ou consórcio de empresas”, sendo que a Administração não arca com os riscos das áleas ordinárias, que são decorrentes de uma flutuação natural da economia, conforme conhecida frase encontrada na maioria das obras no sentido de que as áleas ordinárias são riscos do negócio assumidos exclusivamente pelo empresário.

Ora, em primeiro lugar, há cláusulas de reajuste previstas nos contratos, para amortizar as flutuações decorrentes da inflação que tenham impacto no aumento dos insumos, o que retira dos contratos de concessão essa parcela de risco mencionada.

Depois, além dos conhecidos mecanismos de receitas (alternativas, complementares, acessórias e de projetos associados), há a possibilidade jurídica de adoção de TARIFA ZERO em serviços públicos, mesmo nos moldes da concessão comum – o que é a regra no modelo de concessão administrativa, em que a contraprestação do serviço é totalmente paga pelo Poder Público.

Uma Municipalidade pode, por exemplo, para realização de uma política social, custear totalmente o valor da tarifa (por exemplo, de transporte urbano de passageiros), sem que se desnature a relação jurídica entre usuários e o concessionário, mas isto deve ser averiguado casuisticamente, para que se analise o impacto da política pública.

Tal possibilidade relativiza inequivocamente a afirmação doutrinária de que a concessão corre exclusivamente por conta e risco do particular, que irá amortizar os investimentos exclusivamente com as tarifas recebidas.

3 – Concessão patrocinada com recursos públicos ANTES da disponibilidade do serviço

Outra disparidade é achar que a concessão patrocinada envolveria, na prática, apenas os 70% do valor máximo de contraprestação do poder público, que deveria, como no modelo inicial de PPP, ser pago pelo Poder Público ao “parceiro-privado” somente após a disponibilização do serviço objeto da PPP.

Ocorre que a Medida Provisória 575/2012, previu APORTE DE RECURSOS ao projeto da PPP antes da disponibilidade dos serviços, sendo efetivada ainda na fase de investimento do “parceiro-privado” na construção da infraestrutura.

4 – Atos normativos infralegais que criam direitos e obrigações!?

Outro assunto que não é encontrado nos livros, é que, à revelia do princípio da legalidade, há um sem número de atos infralegais editados pelo Poder Público que criam obrigações jurídicas.

Ora, nem sempre o destinatário questiona, pois ele faz uma análise de índole mais pragmática, pensando nos impactos de invalidar em juízo o ato de um órgão de fiscalização que futuramente poderá lhe retaliar com medidas que tenham impacto negativo nas suas atividades econômicas – em vingança (atitude que também não se relata nas obras, mas que infelizmente existe nas relações humanas e também nas institucionais, que são conduzidas por humanos, com todas as suas paixões e desequilíbrios).

Então, os questionamentos ocorrem em situações em que o destinatário pragmaticamente enxerga impactos mais positivos do que negativos na invalidação, o que significa, na maioria dos casos, a continuidade daqueles que não são alvo de indagações. Logo, subsistem sem questionamentos inúmeros atos normativos infralegais que inovam…

5 – Aumento das exigências técnicas para os rodeios!?

Antigamente se associava rodeio com uma autorização de uso de terreno baldio, mas o evento já alcançou tamanha proporção que são feitas licitações para decidir qual empresa irá organizar o ‘mega’evento, o que inclui contratação de cantores de música sertaneja.

Ressalte-se que, neste último caso, a contratação direta do artista pela Prefeitura pode ser feita com inexigibilidade, mas, por outro lado, a contratação da empresa que organiza o evento, que se responsabilizará por uma série de atividades, é feita atualmente sobretudo por concorrência.

Ainda, algumas Municipalidades, como Araraquara, possuem leis que proíbem rodeios, sob o argumento de que eles causam sofrimento aos animais (que recebem sedém, cinta que comprime a virilha e os testículos e que, em virtude da dor causada, provoca os saltos dos bois e cavalos com os peões nas costas, daí porque alguns chamam rodeio de ‘festa do peão’, sendo que ainda alguns animais quebram ossos com essa prática). As proibições têm por inspiração o precedente judicial do RE 153.531-8/SC, em que o Supremo Tribunal Federal vedou a realização da “Farra do Boi” nos Municípios de Santa Catarina.

6 – Afastamento da integralidade dos efeitos ex tunc na invalidação do ato

Também no assunto invalidação do ato administrativo, é equivocado supor que na prática haja a decretação da nulidade com efeitos retroativos (ex tunc), como exposto nas obras, pois muitos efeitos são preservados para destinatários de boa fé e que não deram, portanto, causa à invalidação.

Assim, há o pagamento das prestações de contratos ou da remuneração de servidores com base na proibição de enriquecimento ilícito por parte da Administração, bem como por uma série de efeitos que são mantidos com base no princípio da segurança jurídica, sendo, consequentemente, barrada a retroatividade de parcela dos efeitos dos atos anulados.

7 – Impropriedade do contrato de gestão do art. 37, § 8⁰, da Constituição

Um aspecto pouco ressaltado nas obras, é o fato de que o contrato de gestão, inserido no art. 37, § 8⁰, da Constituição, pela Emenda Constitucional n⁰ 19/98, nasceu com um problema jurídico congênito: não é possível nos moldes do regime jurídico constitucional que haja flexibilização VIA CONTRATUAL da autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração pública, que estão vinculados por uma série de determinações emanadas da própria Constituição, por isso, o contrato de gestão acabou sendo empregado de forma mais intensiva nas seguintes hipóteses: organizações sociais e agências executivas, mas não para flexibilizar o regime jurídico da Administração Direta, como desejava a Reforma Administrativa da década de 90.

8 – Aplicação da demissão sem individualização da pena em âmbito federal!?

Apesar da proporcionalidade, condizente com o princípio da individualização da pena, ainda há pareceres AGU (GQ 177 e 183), que entendem que se for configurada, do ponto de vista fático, qualquer hipótese descrita no art. 132 da Lei n. 8.112/90 (que abrangem inúmeros conceitos jurídicos indeterminados, como: incontinência pública e conduta escandalosa na repartição), é o caso de aplicar A PENA CAPITAL DE DEMISSÃO ao servidor, sem se amparar no art. 128 do mesmo diploma normativo, que prevê a necessidade de se considerar a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes e atenuantes e os antecedentes funcionais.

Ora, por sorte há também uma série de invalidações de processos administrativos disciplinares com sanções excessivas ou desproporcionais, que ocorrem em decisões confirmadas pelos Tribunais Superiores, nas quais se reconhecem aplicabilidade dos mencionados princípios constitucionais.

9 – Municipalidades sem estatuto: híbrido dos dois regimes

Apesar do resgate do regime jurídico único, em 2007, com a invalidação de parte da Emenda Constitucional n. 19/98, com efeitos ex nunc (com a ADIMC 2135), muitas Municipalidades ainda não criaram seus estatutos dos servidores públicos.

Elas ainda se utilizam intensivamente de contratações no regime celetista, seguindo orientação de parcela da doutrina que entende que regime único não significa só estatutário, podendo ser único também celetista, desde que respeitado de forma padronizada na Administração.

O que os livros não contam é que esta inércia em criar os estatutos dos servidores em âmbito de diversos municípios brasileiros se deve ao fato de que muitos servidores fazem pressão para manter a situação indefinida, pois acabam obtendo em juízo o reconhecimento do MELHOR DOS DOIS MUNDOS: a estabilidade, caso sejam celetistas da Administração Direta, conforme orientação do TST (cf. Súmula 390), e ainda todas as vantagens que a justiça trabalhista reconhece no amparo do trabalhador contratual, afastando-se então alguns regramentos mais publicísticos, como, por exemplo, a ausência de um direito a um regime jurídico inalterável (que se aplica ao estatutário, que tem sua regulamentação jurídica decorrente de lei, que pode ser alterada a qualquer momento).

10 – Ação especulativa do Estado!?

Já nos leciona Celso Antônio Bandeira de Mello que o Estado não pode agir com a mesma desenvoltura do que o particular na perseguição de seus objetivos. Também se costuma mencionar que o Estado, diferentemente das empresas, não tem fins lucrativos, sendo suas finalidades extraídas dos objetivos constitucionais.

Contudo, não obstante o Estado não ter MESMO por finalidade o lucro, ainda assim isso não afasta de um amplo espectro de atividades estatais o caráter especulativo. Por exemplo, no Estatuto da Cidade estão dispostos inúmeros institutos que contam com a ação especulativa do Estado para que ele aufira mais recursos para seus fins, como: (a) a outorga onerosa concedida como autorização para que se construa acima do coeficiente adotado, desde que se pague por isso; e (b) a operação urbana consorciada, com a possibilidade de previsão de CEPACs (Certificados de Potencial Construtivo), que são livremente negociáveis em títulos do mercado.

O Estado pensa também nas modelagens em projetos associados às concessões como forma de se auferir receitas para tornar as tarifas mais módicas…

Assim, o Estado não pode ser considerado do prisma de um simples agente econômico no mercado, mas, ao estar imerso no Capitalismo, o Estado não raro também se comporta de forma especulativa, sobretudo para incrementar suas receitas e, consequentemente, melhor cumprir suas finalidades, sendo, portanto, utópico imaginar que ele atue sempre de forma paternal e solidária para com todos.

Conclusão

Em suma, dentro do universo desses dez itens, há alguns que têm justificativa jurídica (como o leilão nas concessões ou a aplicação da segurança jurídica, que gera modulação de efeitos em invalidações de atos), mas outros se estabelecem e consolidam à margem do ordenamento jurídico…

Combater o fenômeno da administração paralela passa a ser, então, um desafio que apenas terá sucesso se os operadores jurídicos e a cidadania se articularem para exigir dos Poderes Públicos o cumprimento do Direito Administrativo, pois lamentavelmente ainda muito da gestão pública é feito à margem do direito público…

LivrosLivros