O vídeo analisa a possibilidade de controle judicial do ato discricionário. Indaga os limites entre discricionariedade e interpretação. Enfatiza que o Judiciário deve controlar os atos no geral, mas não pode substituir a discricionariedade administrativa, que é a margem de opção que remanesce ao administrador para agir dentro do ordenamento jurídico. Adverte que no pós-positivismo os princípios também vinculam o administrador. Ao final, chama a atenção para a necessidade de auto-contenção (self-restraint) judicial.

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QUESTÃO 2ª FASE DA MAGISTRATURA ESTADUAL DE SÃO PAULO: DIREITO ADMINISTRATIVO 2017

Considerando-se o regime jurídico administrativo e os princípios da separação de poderes e do controle jurisdicional dos atos administrativos, responda justificadamente:

a) Há diferença entre conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade?

b) Há competência discricionária no âmbito do direito administrativo sancionador?

c) É possível o controle jurisdicional para revisão ou substituição da sanção aplicada pela Administração Pública?

Respostas pormenorizadas elaboradas por Irene Patrícia Nohara para compreensão de como devem ser respondidas tais indagações:

a) Sim. Há diferenças. 

Conceitos jurídicos indeterminados são conceitos vagos ou fluidos. São contrapostos aos conceitos numéricos ou determinados. Enquanto o uso de conceitos determinados nos pressupostos normativos dos textos normativos implica na sua vinculação, como, por exemplo, ocorre na aposentadoria compulsória, que é vinculada ao pressuposto de o servidor completar 75 anos; o uso de conceitos indeterminados pode (mas nem sempre ocorre assim) indicar a presença da discricionariedade, por exemplo, quando se exige que a nomeação do Ministro do STF dependa de um “notável saber jurídico” (conceito indeterminado).

Discricionariedade, para Di Pietro, é prerrogativa que tem a Administração Pública para optar dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o ordenamento jurídico, por aquela que, segundo critérios de conveniência e oportunidade, melhor atenda ao interesse público no caso concreto.

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, a discricionariedade acompanha a limitação (finitude) da mente humana que não consegue identificar de forma objetiva todas as medidas normativas idôneas para solucionar com clareza as múltiplas situações vivenciadas no cotidiano administrativo. O legislador tanto pode demonstrar deliberado intento em conceder tal discricionariedade, quando, por exemplo, determina: a Administração poderá conferir ao funcionário que atingir certo parâmetro de desempenho uma premiação, a depender das possibilidades, hipótese em que existe uma faculdade discricionária expressa (sem se cogitar em conceito indeterminado), bem como a discricionariedade pode ser extraída implicitamente da impossibilidade material de fixação de todas as condutas possíveis pela lei, seja porque ela contempla conceitos jurídicos indeterminados que, dependendo do caso concreto, podem conferir margem de opção interpretativa, seja porque a lei é ato de caráter genérico, sendo deste último fato extraído por Di Pietro o fundamento jurídico da discricionariedade.

Ainda, a utilização de conceito jurídico indeterminado pode, ou não, conferir discricionariedade, e o critério para essa verificação diz respeito à disciplina legal aliada à aptidão que os fatos possuem para comprovar a realidade normatizada.

É de Philip Heck a paradigmática imagem da lâmpada de leitura, em que entre o foco de luz e a escuridão há uma zona cinzenta. Trata-se de metáfora do núcleo e do halo conceitual de um conceito jurídico indeterminado. Em exposição de Engisch, quando se tem uma noção clara do conteúdo e extensão do conceito, está-se no domínio do núcleo conceitual (Begriffkern); onde as dúvidas começam inicia-se o halo do conceito (Begriffhof). Assim, a indeterminação do conceito se localiza entre a zona de certeza negativa e a zona de certeza positiva.

Por exemplo, se uma lei criasse um programa de incentivo à prática desportiva para “jovens”, sem que houvesse qualquer delimitação normativa de idade quanto ao termo utilizado, e um administrador reconhecesse benefícios legais a uma pessoa de vinte anos, com base na lei, o juiz não poderia substituir a discricionariedade administrativa com a invalidação do ato, uma vez que o caso concreto estaria na zona indeterminada; todavia, se o agente público estendesse o benefício a uma criança de cinco anos de idade ou a um idoso de setenta anos, nesses casos concretos não haveria problema na declaração de nulidade do ato, pois os pressupostos fáticos recairiam sobre zonas de certeza (mesmo que negativa), ainda que o termo jovem, quando não delimitado numericamente, seja um conceito indeterminado.

Outro exemplo: não se pode invalidar a nomeação de um Ministro do Supremo Tribunal Federal simplesmente porque ele não tem um título x ou y, entendido arbitrariamente como expressão de um “notável saber jurídico”, até porque há uma margem de opção política na escolha feita pelo Presidente, mas se o candidato for alguém sem qualquer formação jurídica, isto é, se for um médico, que não cursou direito, é possível o questionamento judicial de sua nomeação, pois o caso recai na zona de certeza negativa do conceito (isto é, há uma certeza de que um médico, sem formação jurídica, não possui notável saber…).

Então, nem sempre o conceito indeterminado é o parâmetro indiscutível de averiguação de discricionariedade, apesar dessas noções estarem associadas. A utilização de conceitos jurídicos indeterminados não gera automaticamente e em todos os contextos discricionariedade administrativa.

b) Sim. Há discricionariedade no âmbito do direito sancionador, desde que se compreenda os limites dessa afirmação. 

Competência discricionária é termo que Seabra Fagundes utiliza com o sentido de discricionariedade, muito embora se diga que a competência em si do ato administrativo seja algo vinculado.

Ora, do ponto de vista do direito administrativo sancionador, dizer que o poder disciplinar é discricionário, deve ser, segundo Di Pietro, entendido em seus devidos termos: a Administração não tem liberdade de escolha entre punir e não punir, pois, tendo conhecimento de falta praticada por servidor, tem necessariamente que instaurar o procedimento adequado para sua apuração e, se for o caso, aplicar a pena cabível, não o fazendo pode incorrer até em condescendência criminosa ou em improbidade administrativa.

Assim, há discricionariedade no âmbito do direito administrativo sancionador, pois as leis que lidam com sanções em âmbito administrativo preveem inúmeras medidas sem especificar com maior clareza as circunstâncias precisas de sua aplicação, pois a tipicidade do Direito Administrativo é mais abrangente do que aquela exigida, por exemplo, no Direito Penal. Daí porque a autoridade competente para punir terá opção de escolher, diante das características do caso concreto: se irá apreender mercadoria, ou quando (em que momento) irá, se, ainda, irá interditar um estabelecimento etc.

Todavia, deve-se lembrar que discricionariedade não é sinônimo de arbítrio, pois a discricionariedade é a margem de opção de o agente agir dentro das possibilidades do ordenamento, e o arbítrio, por sua, vez é uma ação ilegal, porque com abuso ou violação à lei.

Assim, o direito sancionatório é discricionário porque nem sempre a sanção vem prevista com uma tipicidade restrita, o que implica, por parte do agente, margem de escolha para a aplicação da medida mais adequada ao caso concreto, mas não há, por outro lado, discricionariedade quanto à questão de punir ou não punir, pois se se configurarem as hipóteses legais, o agente é obrigado a instaurar o procedimento e realizar seus fins, desde que garanta contraditório e ampla defesa.

c) Não é possível o controle jurisdicional para a substituição da sanção aplicada, mas tão somente para a sua revisão, desde que fundamentada na ilegalidade (mas não na discricionariedade). 

O Poder Judiciário não pode adentrar à discricionariedade da Administração e se substituir ao mérito de opções administrativas tidas como válidas diante do ordenamento jurídico, sob pena de violação da harmonia e independência que deve haver entre Poderes.

Mesmo na presença de discricionariedade, diante de uma série de situações fáticas diversificadas, há um controle de contornos (margens, moldura ou limites) da ação, propiciado pela verificação da obediência às determinações legais exigidas para o caso concreto.

Ressalte-se, outrossim, que a discricionariedade é limitada pelos princípios de Direito, pois no Estado Democrático de Direito eles são considerados normas integrantes do ordenamento e não meros expedientes de suprimento de lacunas nas regras.

Segundo exposição de Hely Lopes Meirelles, erro é considerar-se o ato discricionário imune à apreciação judicial, pois a Justiça poderá dizer sobre sua legitimidade e aos limites de opção do agente administrativo, ou seja, a conformidade da discricionariedade com a lei e com os princípios jurídicos. O que o Judiciário não pode é, no ato discricionário, substituir o discricionarismo do administrador pelo do juiz. Não pode, segundo Meirelles, invalidar opções administrativas ou substituir critérios técnicos por outros que repute mais convenientes ou oportunos, pois essa valoração é privativa da Administração, mas sempre pode proclamar e coibir os abusos da Administração.

Para saber mais sobre essa indagação, sobre se o Judiciário pode controlar um ato discricionário, clique e assista ao vídeo.

O presente artigo é produto do debate que foi realizado com o professor Diogo Rais, na Jornada Acadêmica de Direito, organizada pela pós-graduação do CERS/Estácio acerca do tema aspectos polêmicos do ativismo judicial e discricionariedade. A indagação envolve o desdobramento da judicialização da política em contraposição à politização do Judiciário.

O objetivo do artigo é provocar reflexões sobre a complexidade dessa indagação diante da transformação do papel do Judiciário na atualidade. Também se busca enfatizar que a auto-contenção (self-restraint ou o reconhecimento da discricionariedade) é solução que varia diante das características de cada caso concreto e da postura mais ou menos responsiva do magistrado.

Ora, quanto à judicialização da política, geralmente se entende que é um fenômeno mais legítimo do que o simples ativismo judicial. Com judicialização, pretende-se referir ao que o Ministro Luis Roberto Barroso[1] denomina por participação mais intensa do Judiciário na concretização de valores e fins constitucionais.

Vivencia-se no contexto do Estado Democrático de Direito e do chamado pós-positivismo uma transformação na hermenêutica jurídica.

Com a Constituição Cidadã, houve a expansão de direitos, numa ambiência democrática, o que foi acompanhado do questionamento da subsunção enquanto método de aplicação jurídica, em função da revalorização do caráter normativo dos princípios, o que contribuiu para um certo protagonismo judicial no tocante às questões prementes da sociedade.

A Constituição de 1988 expandiu os direitos, sendo uma Constituição dirigente e que deslocou o rol de garantias fundamentais para o início do texto, no art. 5◦, tendo ampliado a pauta de direitos fundamentais.

Logo, há mais possibilidades jurídicas de questionamento judicial de políticas públicas que sejam dissonantes da pauta positivada, pois há a vinculação do legislador, do prisma da Constituição dirigente, aos fins e tarefas constitucionais, sendo, ainda, especificados objetivos da República Federativa do Brasil no art. 3◦ da Constituição. Assim, existe a potencialidade de vinculação das políticas públicas aos objetivos constitucionais.

Contudo, nem sempre o Legislativo e o Executivo atuaram no sentido de respeito e garantia dos direitos assegurados pela Constituição. Daí, em primeiro lugar, diante da omissão dos Poderes, por uma série de fatores, muitos pleitos pela garantia dos direitos vão parar no Judiciário.

A propósito desta omissão existe inclusive o mandado de injunção como remédio constitucional, devendo ser concedido sempre que a falta de norma regulamentadora tornar inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, tendo sido regulamentado pela Lei 13.300/2016, que confere efeitos concretistas individuais ao pleito deferido pelo Judiciário até o advento da norma regulamentadora.

Ainda, com a positivação de inúmeros princípios, a exemplo da moralidade e, depois da Emenda Constitucional n. 19/98, do princípio da eficiência, e diante do fato de os princípios positivados serem reconhecidos como normas, com caráter cogente, há uma restrição mais pronunciada à discricionariedade administrativa, o que permite com que exista tecnicamente maior judicialização de inúmeras questões que antes, no auge do positivismo, eram consideradas com adstritas ao mérito da ação administrativa e da legislativa também.

A utilização mais intensiva da lei de ação civil pública, voltada para situações em que há danos ao meio ambiente, ao consumidor, a direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico ou qualquer outro interesse difuso ou coletivo, com uma tutela mandamental, conduziu o Judiciário a determinar, diante da Administração Pública, uma série de obrigações de fazer.

Então, em face da tutela mandamental da ação civil pública, se encontram decisões que são mais judicializantes, a exemplo da manutenção, pelo TJSE, da decisão que obrigou o Município a construir cemitério público na Zona de Expansão de Aracaju. Essa decisão foi tomada em ação civil pública ajuizada em 2006, pela Promotoria do Meio Ambiente de Aracaju, em função da superlotação dos cemitérios públicos de São João Batista e Atalaia, o que provocou a proliferação de cemitérios clandestinos.

Diante da impossibilidade de se enterrar os corpos, determinou-se, ainda, que deveria haver o oferecimento de alternativas de transporte e sepultamento à população afetada, pois não seria responsivo o juiz que simplesmente dissesse: não pode, sem engendrar algumas formas de se viabilizar o exercício dos direitos ambientais e do adequado sepultamento. Também foi mais ousada a decisão judicial, mantida pelo STF, no sentido de que se obrigasse Tocantins à construção de unidade especializada de internação,[2] em face da prioridade que a Constituição e o Estatuto da Criança e Adolescente dão às políticas públicas de garantia das crianças e adolescentes.

Isso era impensável há vinte anos atrás… Logo, na atualidade, há possibilidade de o Judiciário impor abstenções e também condutas comissivas ao Poder Público, para assegurar determinados direitos.

Também se intensifica o fenômeno do protagonismo do Poder Judiciário em decidir grandes questões políticas…

O Ministro Fux mencionou, a propósito, que como o Parlamento não quer pagar o preço social de discutir temas fraturantes da opinião da sociedade, pois não aceita arcar com a exposição, como, por exemplo, a liberação de pesquisas com células-tronco embrionárias (na ADI 3510, decidida em 2008, em que se entendeu que não há violação ao direito à vida, tampouco à dignidade da pessoa humana), ou o relacionamento homoafetivo como união estável (ADI 4277 e ADPF 132, em 2011, que reconheceram união estável para casais do mesmo sexo), o Judiciário acaba decidindo questões que são relevantes para o reconhecimento de direitos de minorias em decisão de hard cases.

Daí surge a seguinte problemática: em alguns casos, além de reconhecer a existência do direito, o Judiciário ainda estabelece parâmetros para sua implementação. Logo, qual seria o limite à essa situação, pois o juiz se depara frequentemente com o seguinte dilema: cumpre, não cumpre, como cumpre? Isto é, de que forma o Poder Executivo irá cumprir a determinação para assegurar os direitos previstos no ordenamento?

Por exemplo, um caso emblemático ocorrido em São Paulo, foi o enfrentado pelo juiz da Fazenda Pública Luis Manuel Fonseca Pires, no tocante à reintegração de escolas técnicas ocupadas por estudantes em protesto. Em maio de 2016, o juiz impôs condições para o cumprimento da liminar, determinando que o Secretário de Segurança, que era o atual Ministro do STF, Alexandre de Moraes, que acompanhasse pessoalmente a retirada de estudantes de Escolas Técnicas Estaduais (Etecs).

O governo do Estado impetrou mandado de segurança contra, sob o argumento de competir à polícia militar realizar a atividade, sendo que o Judiciário não poderia estabelecer condições. O mandado de segurança foi acolhido pelo Tribunal de Justiça, que entendeu que o juiz teria extrapolado, sendo a determinação uma ingerência de um Poder sobre o outro. Logo, o Tribunal de Justiça dispensou a exigência judicial da presença do secretário da segurança na reintegração da posse.

Será que o juiz deveria ter sido mais contido? Será que haveria necessidade de auto-contenção judicial ou a postura de se preocupar não apenas com a preservação do patrimônio público, mas também com a maior fiscalização da integridade física dos estudantes e transeuntes não seria uma postura dita responsiva do Judiciário?

Essas são questões bastante complexas e que adquirem um grau maior de ponderações quando são permeadas também de indagações políticas.

Por exemplo, a redução da velocidade nas marginais gerou a queda dos acidentes com pessoas mortas e feridas em 37% em um ano, de acordo com a CET. Foi um programa de proteção à vida criado pela gestão do Prefeito Haddad. As máximas eram: de 90, e passaram a 70, na via expressa; 70 para 60 na central; e 50 na local. No mesmo período, constata-se que os atropelamentos caíram de 27 para 9. Trata-se do debate acerca do aumento da velocidade nas marginais.

Novamente, o juiz Manuel Fonseca Pires da Fazenda Pública, aceitou os argumentos de que a mudança da velocidade provocaria um aumento do número de mortes no trânsito em São Paulo, em ação movida pela Ciclocidade (Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo).

A solicitação da associação foi algo interessante para efeitos de cidadania, pois houve a requisição da suspensão da mudança; da apresentação de estudos técnicos que justificassem a revisão dos limites máximos; e que o programa marginal segura fosse submetido à discussão do Conselho Municipal de Trânsito e Transporte, com tempo hábil para análise e respostas a dados técnicos, depois debatidos em audiência pública.

Todavia, a questão também possuía um colorido político-ideológico. Primeiro, do ponto de vista político, havia uma promessa de campanha do atual Prefeito no sentido de acabar com a restrição de velocidade que foi feita pelo Prefeito anterior.

Essa questão inclusive não deixa de ser permeada por aspectos ideológicos, sendo a bandeira do Prefeito anterior o transporte não motorizado, como as bicicletas, em contraposição aos veículos motorizados. Aliás, a Lei de Mobilidade confere, no art. 6◦, II, prioridade para os modos de transporte não motorizados sobre os motorizados.

Por outro lado, São Paulo é uma cidade acelerada… em que, paradoxalmente, as pessoas perdem muito tempo de vida no trânsito e desejam, portanto, chegar o mais rápido possível em casa. Logo, para aqueles que passam pelas marginais no seu trajeto cotidiano, houve um aborrecimento extra ocasionado pela restrição de velocidade, sobretudo para 50 km/h para a pista local.

Some-se esse dado, que, do ponto de vista acadêmico pode ser considerado um argumento fraco, mas que não deixa de existir como pensamento corrente de parcela significativa da população, as pessoas ainda estavam muito aborrecidas com as notícias investigativas acerca da indústria de multas, isto é, com desconfiança de que a Prefeitura estava multando não para regularizar e, consequentemente, educar no trânsito, mas com o fito de arrecadar recursos que nem sempre se voltavam para suprir as finalidades institucionais da CET… desconfiança que desprestigiava a anterior política pública.

Houve até ação de improbidade ajuizada pelo Ministério Público pautada na acusação de que havia um ânimo de multar para aumentar a arrecadação de SP, para criar a indústria de multas, que foi acolhida pela juíza Carmen Cristina Fernandez. Alegou-se que o aumento do número de radares se voltava a fins diversos dos previstos na lei, como a construção de terminais de ônibus e também de mais ciclovias. A OAB, por sua vez, também criticou a redução da velocidade. Tudo isso acrescido da enxurrada de multas que as pessoas cotidianamente tomavam…

Então, a opinião pública estava dividida: entre os que prezam a velocidade e achavam que o fato isolado da velocidade não era fator único a ser combatido para que fossem diminuídos os números de acidentes… podendo haver melhor sinalização e também adequada fiscalização, e aqueles que se amparavam nos dados de redução dos acidentes com a política pública do governo anterior.

Do ponto de vista coletivo deve haver o debate democrático. Significa dizer que os técnicos não podem decidir unilateralmente que grau de risco a sociedade deseja correr em nome do suposto progresso, conforme abordagem enfrentada, por exemplo, pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, na obra sociedade de risco[3] (Risikogesellshaft).

Um dos argumentos utilizados pelo juiz é no sentido de que não há qualquer prejuízo à Administração com a não alteração drástica da anterior política pública, pois seria uma medida voltada à prevenção.

Contudo, não haveria prejuízo à Administração, mas talvez um desgaste político por parte do novel agente político, ao enfrentar a resposta negativa do Judiciário… Mas o Tribunal de Justiça, novamente, em decisão monocrática de Flora Maria Nesi Tossi Silva, suspendeu a proibição de aumento, afastando o Judiciário do mérito de se o programa municipal seria mais eficiente do que o anterior. A desembargadora entendeu que a redução dos acidentes não teve como fator único a questão da velocidade.

Daí surgem os questionamentos? Será que não poderia mesmo? Se o princípio da eficiência tem caráter normativo, será que não seria sindicável? Para maior parte da doutrina sim… Mas: eficiente como, eficiente para quem, quais são os fins?

Daí emerge, ainda, a seguinte indagação: o juiz é neutro?

Não, o juiz nem pode pretender ser neutro. Cada ser humano não é tábula rasa, ou seja, traz a julgamento sua visão de mundo, sua ideologia, suas percepções. O que não seria adequado ao juiz é abrir mão de sua imparcialidade e decidir apenas com base no senso comum, sem fundamentar sua decisão em argumentos amparados no ordenamento jurídico.

Logo, um juiz pode sim dar entrevistas, mas não se afigura uma postura adequada que antecipe um futuro julgamento em entrevista, por exemplo. Ou que se mostre enviesado para uma interpretação antes mesmo de receber a ação e analisar as provas e argumentos trazidos pelas partes. Caso contrário, não há contraditório material, isto é, as pessoas estarão participando de um “jogo de cartas marcadas” em que pouco importa o que é documentado, pois o juiz já pende para um lado da causa.

Em suma, a neutralidade livre de valores e ideologia é uma inverdade. E o juiz, enquanto ser humano, deve ter sua ideologia, ainda que não expresse, ela existe, conforme raciocínio de Weber: neutro é quem se decidiu pelo mais forte…

Do juiz se espera mormente que seja imparcial. Logo, ainda que tenha sua visão de mundo, que as suas orientações políticas e ideológicas não o levem a prolatar sentenças que comprometam sua imparcialidade e capacidade de ponderar os aspectos presentes no caso concreto diante das possibilidades interpretativas do ordenamento.

Apesar de o juiz não desempenhar função política, por não ter sido eleito para expressar o que é mais conveniente e oportuno, ele desempenha sim parcela de soberania estatal ao prolatar a sentença. Por conseguinte, um juiz pode analisar a constitucionalidade de regra ou mesmo de uma política pública em relação aos parâmetros constitucionais existentes.

Mas o juiz não tem mandato político e a Constituição proíbe ao juiz que desenvolva atividade político-partidária, pois a participação do magistrado em esquemas de poder político-partidário certamente comprometeriam sua independência funcional. O juiz, enquanto cidadão, pode ter sua opinião político-partidária, mas ele não pode se filiar a partido político, pertencer a órgão de direção partidária ou participar de campanhas.

Note-se que o Judiciário virou, entretanto, o epicentro do debate político com a Operação Lava Jato… O que torna essa questão de politização do Judiciário ainda mais complexa, dada interpretação polarizada que a população extrai da situação dos vazamentos e da postura mais ativa de determinados integrantes do Judiciário, o que levanta a suspeita de parcela dos observadores acerca da imparcialidade da conduta jurisdicional no combate à corrupção. Se a Operação será efetivamente erga omnes ou se ela é voltada apenas a determinado foco de corrupção político-partidária, como ocorreu na Operação Mãos Limpas na Itália, que não foi capaz de estancar a corrupção do cenário político italiano, é algo que ainda está em aberto à observação geral.

Elival Ramos, Procurador-Geral do Estado, tem uma obra, que é a sua tese de titularidade, acerca do ativismo judicial. Ele critica o fenômeno e quer estabelecer parâmetros para que não haja excessos. Ativismo, segundo Elival Ramos, representa: “o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar”.[4]

O ativismo, segundo Elival, na área de medicamentos, principalmente, funciona como um Robin Hood às avessas, porque tira das políticas públicas para fornecer a casos individuais, nem sempre de forma justa. O ativismo de medicamentos e tratamentos é um fenômeno mais comum nas regiões mais ricas do Estado de São Paulo, enquanto que nas mais pobres faltam hospitais e tratamentos. Então, o Judiciário obriga que o Estado, em diversos casos, forneça medicamentos que não estão na lista Rename voltada ao SUS, sendo remédios e tratamentos caríssimos ou mesmo experimentais, o que acaba tendo um impacto negativo na política pública de saúde.

Essas são indagações de respostas difíceis, dado que o Judiciário tanto pode ter uma postura de auto-contenção, como encontra substratos jurídicos para o reconhecimento dos direitos…

O que não se recomenda aos juízes, no geral, é que comecem a se importar demasiadamente com a opinião pública, pois se sabe que a opinião pública é muitas vezes instável e injusta, sendo influenciada pela mídia e por rumores que nem sempre são comprovados, haja vista experiência já vivida em São Paulo no famoso caso Escola Base, em que os proprietários da escola foram injustamente acusados de abuso sexual pela imprensa, em cobertura enviesada dos jornais, tendo em vista as declarações precipitadas do delegado de polícia.

Assim, não obstante a falta de provas, a opinião pública levou a escola a encerrar suas atividades, antes de qualquer julgamento e sem chances de se defender da acusação feita pela imprensa. Logo, o Judiciário representa o último bastião da busca pela justiça, não podendo jamais se embalar no ritmo cambiante e instável da opinião pública, por isso que sempre que se ouve falar que “determinado juiz me representa“, frase muito comum nesses nossos períodos de espetacularização na atuação judicial e politização do Judiciário, há sim um enorme indício de possível desrespeito à noção de separação de poderes…

[1] BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. [Syn]Thesis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 23. 2012.

[2] RE-AgR 410.715/SP, 2 T., Rel. Min. Celso de Mello, DJ 3.2.2006; Re 431.773/SP, Rel. Marco Aurélio, DJ 22. 10.2004.

[3] BECK, Ulrich. Sociedade de Risco. São Paulo: Ed. 34, 2011.

[4] RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 308.

Vídeo da Jornada Acadêmica Irene Nohara e Diogo Rais (Assistir agora)

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