compliance acadêmico

As práticas de compliance foram intensificadas, no Brasil, a partir da edição da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) e de sua posterior regulamentação pelo Decreto nº 8.420/2015. Isto pois, a partir da lei, a pessoa jurídica que praticar ato lesivo à Administração Pública, atentando contra o patrimônio público, os princípios da Administração e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, podem ser sujeitadas à sanção de multa de até 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, bem como a publicação extraordinária da decisão condenatória. Contudo, na aplicação da sanção serão considerados, entre outros fatores, se a empresa possui mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e conduta. São os chamados programas de compliance.

Para serem efetivos, os programas de compliance devem ser, conforme dispõe o art. 42 do Decreto 8.420/2015, notadamente: desenvolvidos com o comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, que deve dar visibilidade e apoio, com base em treinamentos periódicos, com canais de denúncia de irregularidades, abertos e amplamente divulgados, com mecanismos de proteção de denunciantes de boa-fé e procedimentos que assegurem a pronta interrupção de irregularidades e infrações detectadas e a tempestiva remediação de danos gerados.

Pois bem, há a necessidade de se intensificar também na área acadêmica as práticas que estimulem a integridade na pesquisa. Do bom desenvolvimento da pesquisa depende, via de regra, o fomento, realizado em grande parte por recursos públicos, isto é, pelo patrimônio público. Existem instituições cujas missões têm relação com o escopo do fomento à pesquisa, que é imprescindível para o desenvolvimento do País. São exemplos de tais instituições: a Capes, o CNPq e, no Estado de São Paulo, a FAPESP.

Do ponto de vista do Direito Administrativo, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) é uma fundação vinculada ao Ministério da Educação, sendo responsável pela expansão e consolidação das pós-graduações stricto sensu do País. A Capes pode ser considerada a “rainha-mãe” das instituições responsáveis pelo controle e estímulo ao padrão de excelência acadêmica para mestrados e doutorados.

Ela promove avaliações nos programas, sendo que os resultados dessas avaliações servem de base para a formação das políticas públicas na área de pós-graduação e, consequentemente, para o dimensionamento das ações de fomento, que se dão via: bolsas de estudo, auxílios e apoios. Além da avaliação das pós-graduações stricto sensu, que são agora feitas em quadriênios, a Capes tem, ainda, por foco investir na formação de recursos humanos de alto nível, promovendo a cooperação científica internacional, com ações de acesso e divulgação da produção científica.

O CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) também é uma fundação pública, com personalidade de direito privado, sendo vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, tendo por finalidade promover e fomentar o desenvolvimento científico e tecnológico do País, contribuindo na formulação das políticas nacionais de ciência, tecnologia e inovação.

Ele também se ocupa da promoção de fomento à capacitação de recursos humanos para a pesquisa científica e tecnológica, tendo um engajamento direto com a realização dos estudos científicos e tecnológicos, no intuito de contribuir para o avanço das fronteiras do conhecimento na promoção da Ciência, da Tecnologia e da Inovação, como elementos centrais para o desenvolvimento nacional.

Ademais, cada estado-membro da federação possui sua fundação, vinculada ao respectivo Governo Estadual. Em São Paulo, de onde saem quase metade dos artigos científicos publicados em todo o País, dá-se destaque à pujante FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Trata-se de entidade que possui a natureza jurídica de fundação pública estadual, tendo sido criada pela Lei nº 5.918/60. Apesar de sua criação na década de 60, ela adveio de autorização presente no art. 123 da Constituição Estadual de São Paulo de 1947, inserida por influência de Caio Prado Jr., à época deputado.

O funcionamento da FAPESP foi viabilizado a partir da edição do Decreto nº 40.132/62, tendo sido orientada a fomentar a pesquisa do Estado, sobretudo a desenvolvida pelas universidades. Ela é considerada uma das mais relevantes “agências de fomento” à pesquisa científica e tecnológica existentes no Brasil, sendo vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação.

É uma das poucas estaduais cujo volume de financiamento se compara às instituições de fomento federais. A Constituição do Estado de São Paulo destinou o mínimo de 1% da receita tributária para ser aplicada em desenvolvimento científico e tecnológico. Atualmente, é destinada à FAPESP, portanto, cerca de 1% da receita tributária do Estado de São Paulo. A FAPESP apoia a pesquisa científica e tecnológica por meio de bolsas e auxílios à pesquisa.

Recentemente, a FAPESP abriu um processo na justiça estadual para reaver 334 mil reais destinados a projeto de pesquisa para diabetes, dado uso indevido do valor, conforme publicação da Folha de S. Paulo de 9 de dezembro de 2017. Diante desse e de outros problemas judiciais, a FAPESP anunciou que, em breve, irá bloquear recursos para universidades que não tiverem uma política clara de boas práticas acadêmicas.

Segundo exposto pela Retraction Watch, há até a possibilidade de despublicação (retraction) de um artigo científico, tendo em vista problemas como: erros nos resultados da pesquisa; plágio no texto ou até mesmo resultados inventados ou manipulados. Conforme observado, a cultura de integridade na pesquisa no Brasil é relativamente recente. O CNPq criou sua primeira comissão para avaliar fraudes científicas em 2012, na esteira do caso de um químico da Unicamp que teve 11 trabalhos ‘despublicados’, sendo dito na reportagem que as Universidades Nacionais, que seriam as principais responsáveis por evitar e punir esse tipo de má-conduta, têm se mostrado, no geral, negligentes nesse múnus.

São instituições que se destacam nesse sentido, por serem precoces e ativas na criação de programas de integridade na pesquisa: as federais do ABC e de São Carlos, sendo que estruturas semelhantes de prevenção e apuração de condutas desviadas de pesquisadores já são realidade nas Universidades alemãs desde a década de 90.

Ora, constituir um órgão próprio para apurar práticas distorcidas, dentro das noções de compliance acadêmico, evita a acusação corrente de que a denúncia de irregularidades parte de algum desafeto eventualmente interessado em prejudicar seu concorrente em alguma questão pontual da política acadêmica. Isso ocorre muito em concursos de ascensão na carreira universitária, em que há uma vaga para vários candidatos, por exemplo, e o candidato rival elabora dossiês e se se sente injustiçado em algum concurso, acaba judicializando a questão.

Percebe-se, então, que muitas distorções e fraudes são denunciadas quando há concorrência, pois o rival é efetivamente quem mais tem interesse em apontar os erros e as inconsistências de determinado pesquisador, rompendo com uma passividade própria de uma ambiência de caráter mais corporativo. Note-se, contudo, que, no caso do mundo universitário, em particular, há toda uma rivalidade própria de grupos e pessoas, algo intensificado pela disputa pelo destaque e, sobretudo, pela vaidade, que alcança, especialmente nesta ambiência, de forma mais sutil, isto é, discreta, ou mesmo ostensiva, níveis elevados.

Um dos primeiros trabalhos publicados por Rousseau, em que ganhou um concurso da Academia de Dijon (ROUSSEAU. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 352), foi o que observou, em pleno auge do Iluminismo (no século XVIII), como a ciências eram à época praticadas: muito mais por orgulho, busca de glória e reputação, do que por um verdadeiro amor ao saber.

Esse alerta de Rousseau para a necessidade de resgate de uma virtude na prática da ciência não deixa de nos advertir que há um componente de vaidade presente nas instâncias mais altas da academia. Este componente de vaidade, relacionado com a ambição, é o que eleva, em determinados âmbitos, as disputas de ascensão na carreira em verdadeiras competições em que os concorrentes nem sempre se utilizam dos métodos mais íntegros para conseguirem se destacar.

Por isso, se houver uma preocupação perene e mais consolidada de incorporar na cultura organizacional das universidades as práticas de compliance acadêmico, primeiramente, não mais se dirá que se trata de uma circunstância ad hoc, em virtude de um concurso em particular, por exemplo (o que é perigoso: pois imagine a quantidade de fraudes que acabam passando nas circunstâncias em que não há a rivalidade, se muitos escândalos de grandes proporções emergem apenas de situações ad hoc), e a integridade se transforma em prática consolidada; depois, o que é mais importante: a integridade será utilizada não apenas como forma de eventualmente punir, mas também de instruir os envolvidos em pesquisa sobre a fronteira existente entre a ação estratégica na produção científica em contraposição com as ações tidas como fraudulentas e que ultrapassam, portanto, os limites do bom senso e da forma inteligente de lidar com os marcos normativos cambiantes da avaliação da produção científica.

Aliás, já se analisa na Capes formas de suprir os critérios eminentemente quantitativos, que não diferenciam um pesquisador maduro ou que efetivamente se esforça para o desenvolvimento e a contribuição para o avanço de um determinado estado da arte de um dado tema, em relação àqueles que se utilizam de todas as estratégias possíveis (desde ajustar artificialmente citações com um grupo, passando pela “produção salame”, até chegar no mais grave roubo de ideias) para produzir mais rápido e em grande escala.

Não há problemas em algum grupo de pesquisadores estabelecer uma rede de pessoas que genuinamente se debruçam sobre temáticas afins e que, portanto, amadurecem e trocam percepções acerca de algumas problemáticas, referenciando naturalmente as pesquisas que admiram, mas, outra coisa bem diferente é um determinado grupo que combina/ajusta de se referenciar, ainda que fora de um contexto de pesquisa ou de temas afins, tão-somente na base da “troca de favores”, isto é, para acelerar a consolidação artificial de uma situação, quando, no fundo, o que querem é muito mais ganhar poder do que efetivamente contribuir para o progresso científico em um dado campo do conhecimento.

Uma das formas que ganham redobrada força é a medição do grau de impacto das produções de dado pesquisador, em que a comunidade científica efetivamente identifica de onde partem as ideias que são originais e cujo autor possui aderência e vinculação em sua defesa, dentro de um histórico de envolvimento com a questão.

Por fim, não é difícil averiguar se o grau de impacto de dado pesquisador ultrapassa de “seu feudo” de influência. Logo, ainda que não deem todo o crédito merecido, por pura competição, os pares científicos sabem quem devota sua energia em pesquisa séria e comprometida, em contraposição aos pesquisadores que se apresentam como meramente oportunistas, usando de técnicas que ultrapassam os limites da ética, na busca por alcançar estrategicamente um prestígio que dependeria de muito mais esforço devotado ao seu objeto de estudo.

Para isso que serve o compliance acadêmico: para criar uma cultura de integridade na produção científica, para diferenciar os pesquisadores que estão se esmerando para gerar uma contribuição genuína para a comunidade científica e para a sociedade. Portanto, andou muito bem a FAPESP em exigir das universidades que estabeleçam políticas de boas práticas acadêmicas como condição para o fomento às pesquisas científicas.

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