Discute-se muito na atualidade a razoabilidade. Observe-se o conteúdo dos seguintes atos: (1) governador do Distrito Federal, certa feita, baixou decreto que vedava a utilização de carros, aparelhos e objetos sonoros nas manifestações públicas que ocorressem nas adjacências dos Três Poderes e na Esplanada dos Ministérios em Brasília; (2) lei do Estado do Amazonas concedeu a servidores inativos, gratificação de férias de 1/3 do valor da remuneração mensal; e (3) edital de concurso público para Guarda Municipal de empresa de vigilância do Rio de Janeiro considerava inapto o candidato que demonstrasse ter menos de vinte dentes na boca, observando-se o mínimo de dez em cada arcada dentária.

As situações reais descritas causam “estranheza”, pois: (1) ora, além da impossibilidade de regulamentação restritiva das normas constitucionais de eficácia plena, como fica o direito de reunião, que envolve a realização de passeatas e protestos, se estes deverão (por decreto) ser feitos em “relativo silêncio” para não “atrapalhar” os trabalhos dos órgãos governamentais de Brasília, que, aliás, foi projetada como espaço destinado também às manifestações públicas? (2) Como pode ser criada uma gratificação que recai sobre algo que não existe? Os inativos não tiram férias ou, ainda, como observou com ironia o Ministro Marco Aurélio, em seu voto na ADI-MC 1158/AM, já estão em permanentes férias – então, seria tal gratificação devida mês a mês? (3) Qual o nexo existente entre o número de dentes que uma pessoa tem em cada arcada com o bom desempenho das atribuições de guarda municipal?

O objetivo do presente artigo não é descrever atos irracionais ou absurdos, mas promover uma reflexão acerca da verdadeira natureza jurídica da razoabilidade. Trata-se de assunto bastante discutido na atualidade. Defendemos, inclusive, que razoabilidade é conceito indissociável de proporcionalidade, uma vez que o “desproporcional” é, em si, “irrazoável”.

Destacam-se, na doutrina, os seguintes posicionamentos quanto à natureza jurídica da razoabilidade: (a) os que a vêem como princípio; (b) os que entendem que se trata do“princípio dos princípios”; (c) os que defendem que não é princípio, mas sim verdadeiro método; e (d) aqueles que consideram-na juízo, associado à prudência e, portanto, à eqüidade.

O primeiro posicionamento tem amparo na terminologia legal. Apesar de a razoabilidade não ter sido expressamente enunciada entre os princípios constitucionais, mesmo diante de proposta na Constituinte, diversas leis se referem aos “princípios” da razoabilidade e da proporcionalidade, como ocorre, por exemplo, no art. 2º da Lei nº 9.784/99.

Princípios são, na disseminada noção de Alexy, mandados de otimização, ou seja, normas que ordenam que algo seja cumprido na maior medida possível de acordo com as possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Trata-se de normas que contemplam estruturas valorativas fundantes de uma ordem jurídica.

Contudo, a razoabilidade não possui um conteúdo valorativo em si. Algo só é razoável ou proporcional em relação a outra coisa. O que seria “o” razoável em si? Não há “o” razoável, mas alguma coisa é um meio razoável em relação a certo fim. Por exemplo, a exigência de conhecimentos de Direito (alguma coisa) é um meio razoável como condição para o ingresso e exercício das carreiras jurídicas no geral (fim). Quando dois ou mais princípios se colidem, a proporcionalidade/razoabilidade permite que ocorra a ponderação necessária para que se avalie qual deles terá maior peso na circunstância fática analisada.

Assim, alguns autores, como Santiago Guerra Filho, entendem que a proporcionalidade é o “princípio dos princípios” ou principium ordenador do Direito, que busca uma solução de compromissodo Estado Democrático de Direito de maior atendimento possível de diversos interesses, com a mínima desatenção a outros valores consagrados também no ordenamento.

Outros se recusam a classificar razoabilidade como princípio, pois entendem que ela é método de resolução do conflito entre princípios. Para Humberto Ávila, por exemplo, a razoabilidade não possui natureza jurídica de princípio, o qual representa uma espécie normativa de primeiro grau. Na profunda análise de Ávila (Teoria dos Princípios), a razoabilidade não é norma que existe por si, mas método estruturante da aplicação das normas em geral, ou seja, trata-se de instrumento de aplicação tanto de princípios como de regras (neste ponto, ele discorda de algumas assertivas de Alexy).

Concordamos com Ávila no sentido de que a razoabilidade não é, em realidade, princípio; filiamo-nos, entretanto, ao entendimento que considera que a verdadeira natureza jurídica da razoabilidade é de juízo. A ponderação proporcionada pela razoabilidade é produto do velho e conhecido juízo de prudência, desenvolvido por Aristóteles na obra Ética a Nicômaco e que se relaciona com o bom senso.

Bom senso possui um significado que redunda no equilíbrio, isto é, na proporção, daí a relação intrínseca com a proporcionalidade. Razoável é aquilo que não é nem excessivo nem escasso. Aristóteles dizia que existe o mediano (o razoável), por exemplo, enquanto o equilibrado com os gastos fica “no meio”, nos extremos opostos se encontram: o avaro e o pródigo. Também via como extremos em relação ao corajoso: o temerário e o covarde. Constatou o filósofo que os extremos tendem a ponderar de forma distorcida. Assim, o covarde, por não andar no equilíbrio, tende a ver o corajoso como temerário, e o avaro tende a ver o equilibrado nos gastos como pródigo, e vice-versa, quer dizer, o pródigo vê o equilibrado nos gastos como sovina.

No Direito Administrativo existem exemplos de julgados que se apoiam nesse tipo de juízo. Na violação da razoabilidade pelo excesso: concurso público que na prova de digitação demandava do candidato um número mínimo de toques superior ao limite máximo fixado por normas administrativas de segurança e saúde editadas pelo Ministério do Trabalho (AGT 129865/ES, TRF2, 6T. DJU20.10.2004. p. 192.), assim, se a pessoa digitasse na velocidade exigida adquiriria provavelmente uma lesão por esforço repetitivo. Na violação da razoabilidade pela falta: caso julgado pelo TJ/SP (AC n. 235.739.5/0-00, de 3.5.2004.) de concurso público da Municipalidade de Araçatuba que visava ao provimento de cargos de médico, psicólogo e engenheiro sem a realização de provas de conhecimento específico destas áreas, isto é, utilizando-se apenas de exames comuns de conhecimentos gerais, que versavam sobre língua portuguesa e matemática.

A razoabilidade, como juízo de equidade, ampara-se na razão prática e não na razão teórica, por isso, considera Xavier Phillipe que é muito mais fácil de compreender (no sentido de perceber) do que definir. A percepção da violação da razoabilidade emerge mais da intuição emocional do que de uma operação intelectiva de teorização racional. Assim, a percepção de rompimento dos limites do bom senso é algo que surge da sensação de desproporção ou de impropriedade que a apreensão de uma realidade ocasiona, e não de um conhecimento obtido por operações e raciocínios complexos. Claro que, uma vez percebida pela intuição emocional, ela não pode ser aceita pura e simplesmente, mas deve, especialmente no Direito, ser justificada pela argumentação para o convencimento da adequação das premissas ponderadas, e não mediante a mera demonstração delas (Gian Battista Vico).

Entretanto, a ocorrência do efetivo convencimento depende menos da correta aposição da hipótese analisada nos seus elementos de: adequação, necessidade ou proporcionalidade em sentido estrito, do que da exploração do sentimento de irrazoabilidade/desproporcionalidade vigorante na sociedade, num determinado momento, em relação a certos fatos da vida. São mais os fatos da vida e sua valoração diante do ordenamento que devem ser trazidos para que haja a persuasão, do que a capacidade de o intérprete equacionar a realidade fática (Tatbestande) nos estreitos limites dos três subpostulados de proporcionalidade. É equivocado, portanto, tentar converter razão prática, com toda sua riqueza e “trama de pontos de vista” (Vico), em teorema lógico-formal.

O convencimento também depende do grau de discernimento daquele que julga ou de sua disposição de bem ponderar os interesses em conflito. O julgamento correto ou o bom senso para discernir adequadamente é, conforme exposição de Gadamer, uma espécie de “gênio” para a vida prática, que se relaciona menos com um dom (Gabe) do que com uma permanente tarefa (Aufgabe) de ajustamento novo de situações sempre novas, uma espécie de adaptação dos princípios gerais à realidade, através da qual se realiza justiça.

Em síntese, a apreensão da violação da razoabilidade não é produto direto de demonstrações metódicas, ou seja, é por demais ingênuo achar que uma vez compreendida estruturalmente a razoabilidade/proporcionalidade seria fácil identificar ou mesmo convencer outras pessoas de sua violação tendo em vista as incontáveis e sempre novas situações de vida. Tal análise desmistifica sua relação com uma espécie de racionalidade pura, pois ela é associada a uma lógica diferenciada, chamada por Recaséns Siches de logos do razoável.

A percepção da razoabilidade depende também dos sentimentos e emoções humanas, o que, por vezes, corrobora a noção tão difundida de que o bem discernir ou julgar não é só produto do volume de informações acumuladas pelos intérpretes, mas principalmente do equilíbrio, da humanidade, e muitas vezes até, da boa vontade (no sentido de “disposição”) do julgador em ponderar com discernimento os variados casos concretos, o que torna a mais adequada realização da justiça algo “irrepetível”, isto é, num sempre novo desafio.

Artigo originalmente publicado no Jornal Carta Forense, de 27 de janeiro de 2009.

CITAÇÃO:

DIGITAL: NOHARA, Irene Patrícia. A verdadeira natureza jurídica da razoabilidade.

Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/a-verdadeira-natureza-juridica-da-razoabilidade/3400.

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