O novo Código de Processo Civil, que teve o projeto aprovado no Legislativo, não pode ser dissociado de um movimento maior de reforma do Sistema de Justiça. Um dos eixos centrais de alteração da disciplina processual gravitou, portanto, em torno da questão de tornar mais célere e eficiente o trâmite dos processos no âmbito do Poder Judiciário.

Nesta perspectiva, dever-se-ia ter sido dada maior relevância à discussão do papel da Fazenda Pública em juízo. Trata-se de questão complexa, uma vez que o Estado, considerando suas unidades federativas e os entes da Administração Indireta, representa percentualmente um dos maiores litigantes no Poder Judiciário.

O Estado é, em tese, interessado no funcionamento mais célere do Judiciário, que o integra, mas, paradoxalmente, representa um dos principais responsáveis pela morosidade do Sistema de Justiça. Sua atuação poderia provocar menos judicialização, e, em havendo litígio, não deveria haver manipulação, tal qual um particular, do sistema recursal para além, inclusive, das prerrogativas detidas pela Fazenda Pública.

Quanto às judicializações decorrentes da atuação estatal, exemplificativo é o fato de que a CGU já divulgou que em torno de 50% das demissões oriundas de processos administrativos disciplinares resultam em reintegração dos servidores, por falha na condução dos processos. Se a Administração Pública observasse melhor o ordenamento jurídico, evitaria tais gastos.

Ademais, a mudança que se pretende fazer entre o prazo em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer para um prazo genérico em dobro pode representar mais morosidade nas ações contra o Estado, pois, sejamos francos: não é a contestação em quádruplo a grande vilã da demora nas ações contra o Estado, podendo, ainda, ser um “tiro pela culatra” criar um prazo duplicado de forma genérica.

Ainda que se afirme que a redução das circunstâncias de duplo grau obrigatório seja um dos pontos “menos inócuos” no novo tratamento das prerrogativas, aquele que litiga contra o Estado sabe que, para além do próprio trânsito em julgado, há toda uma sistemática de precatórios que funciona muito aquém do desejado, não raro numa situação em que a efetiva entrega do “bem da vida” para o cidadão pode se protrair, sem ironias, para além de sua existência, o que esvazia a razoável duração do processo.

Tais circunstâncias geram a seguinte perplexidade: como o Estado, que foi engendrado para proteger os cidadãos, pode, ao provocar um dano injusto, litigar até a exaustão só para protrair a satisfação de algo que é juridicamente devido? Evidentemente que a proteção do Erário é uma preocupação relevante, mas, por outro lado, sabe-se que o interesse público primário (Renato Alessi) tem prioridade e legitima a própria existência das prerrogativas estatais.

Portanto, para além do corporativismo que subjaz às discussões reformistas, que muito se concentraram na forma de fixação dos honorários ou na uniformização da intimação, há uma problemática não enfrentada: a atuação da Fazenda Pública deve considerar que da passagem do Estado Liberal para o Social houve uma alteração na maneira de se enxergar os poderes da Administração Pública: da visão da puissance publique ou Herrschaft (potestades públicas), expressadas em determinações impositivas seguidas estritamente, os administrados passam a ser titulares de prestações e cuidados por parte da Administração Pública, sendo enfatizada a faceta do dever (em relação ao poder) para com os cidadãos, vistos como titulares de status jurídico ativo.

Na formulação conhecida de Bandeira de Mello: os poderes são instrumentais à realização dos fins públicos. Não são prerrogativas que servem como “fins em si”, tampouco para preservar ao máximo o Erário em tal ou qual gestão pública.

Se muitos processualistas se ressentiram da ausência de uma efetiva ampliação das capilaridades do Sistema de Justiça, para adaptação do processo à sociedade de massas, o que tornaria residual a resolução individualista de questões “à conta-gotas”, os autênticos publicistas também lamentam a cegueira em relação ao fato de que a proteção aos direitos deveria fazer parte da agenda do Estado e não de uma agenda contra o Estado, como no Estado Liberal; mas, por outro lado, para que esta conclusão seja factível, também o Estado deve incorporar tal mentalidade ao litigar, procurando separar a postura que tem diante de um dano injusto por ele provocado em relação às ações sem maior fundamento jurídico, pois, assim como as prerrogativas do Poder Público, também o processo é instrumental.

Em suma, mudou-se pouco e duvida-se que tais modificações irão resolver a morosidade do litígio contra o Estado da ocorrência do dano até o pagamento da indenização. Para que se combata tal estado de coisas, seria necessária uma harmonização da atuação judicial do Estado com seu papel de proteção à dignidade humana, tida como fundamento do Estado Democrático de Direito.

Logo, para que o discurso da instrumentalidade não se dissolva em vã retórica, não basta afrouxar uma ou outra prerrogativa pública, faz-se necessário repensar a funcionalidade do sistema tal qual a mentalidade de quem o maneja, para além da frieza de uma teoria dos jogos (avessa que é à visão solidária e, portanto, ética da ação humana), pois, sem tal reflexão, o próprio “operador” que hoje manipula o processo sem coração, amanhã tem potencial de se tornar mais um a engrossar a fila dos ‘duplamente vitimados’: (1) pelo injusto sofrido; (2) acrescido do desgaste provocado pela demora na infindável luta judicial pela obtenção daquilo que lhe é devido por parte do Estado.

Artigo originalmente publicado no Jornal Carta Forense, de 3 de março de 2015.

CITAÇÃO:

IMPRESSA: NOHARA, Irene Patrícia. Novo CPC e a Fazenda Pública. Carta Forense, São Paulo, 3 mar. 2015, p. A23.

DIGITAL: NOHARA, Irene Patrícia. Segurança jurídica no processo administrativo. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/novo-cpc-e-a-fazenda-publica-critica/15045.

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