Considerações Introdutórias

Aproveitando o convite que me foi feito pelo Emerson Affonso de Costa Moura para integrar os debates do I Seminário de Direito Administrativo Contemporâneo, realizado por três universidades públicas: a Universidade Federal de Juiz de Fora, a Universidade Federal Fluminense e a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em junho de 2016, torno acessível no site www.direitoadm.com.br minha percepção acerca do projeto que tramita no Congresso e que pretende introduzir alterações na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Apreciei muito participar dos debates, sobretudo porque a comissão organizadora do evento escolheu promover uma interlocução acerca de temas efetivamente atuais. Nada melhor do que a comunidade acadêmica discutir o que é pauta de provável alteração normativa, em vez de se debruçar sobre o tema depois de aprovado e em vigor, isto é, quando “Inês já é morta”, daí, em vez de podermos influenciar o curso dos acontecimentos, teremos de lidar diretamente com as externalidades de alterações feitas…

Então, no caso do tema que me foi atribuído, em particular, houve a análise da proposta de alteração da LINDB – veiculada pelo projeto 349/2015. Este foi um projeto encaminhado pelo Senador Anastasia, do PSDB/MG, que já foi governador de Minas e é da área do Direito Administrativo, sendo, contudo, de autoria direta de dois professores de São Paulo: (1) Floriano Azevedo Marques Neto, titular em Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP; e (2) o Carlos Ari Sundfeld, professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP.

A presente análise aborda os seguintes assuntos (depois pretende-se transformar esse material em artigo científico e enviar para publicação no material do seminário, mas como é de extrema relevância, achei por bem elaborar essa síntese didática dos principais pontos):

  • as alterações sugeridas pelo projeto à Lei de Introdução às Normas no Direito Brasileiro;
  • o debate da insegurança que permeia a aplicação do Direito Administrativo, que foi o mote inspirador das propostas incorporadas ao projeto;
  • quais são os pontos problemáticos do projeto em trâmite;
  • quais são os pontos elogiáveis que podem ser extraídos da proposta; e,
  • por fim, a percepção geral acerca do projeto 349/2015, do ponto de vista da hermenêutica jurídica.

Alteração da Lei de Introdução às Normas no Direito Brasileiro

A atual denominação da Lei de Introdução às Normas no Direito Brasileiro advém de uma alteração feita pela Lei n. 12.376/2010 à antiga Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), criada pelo Decreto-Lei n. 4.657/42.

Tal mudança foi provocada pela percepção de que a hermenêutica não poderia mais ser considerada como assunto exclusivo do universo do direito privado.

Entretanto, antes de adentrar à questão da alteração só do nome, importante que haja a reflexão sobre a impropriedade técnica de se falar em introdução às normas, até porque na hermenêutica mais rigorosa não se confundem os textos normativos, dos quais se extraem a norma jurídica, com a norma. A norma individual representa o produto desta aplicação/interpretação jurídica feita a partir do texto normativo.

Não se confundem, portanto, norma e texto normativo, sendo que este último comporta diversas interpretações. Na hermenêutica, a autoridade interpreta os textos normativos e deles extrai a norma jurídica. Logo, a expressão lei de introdução às normas não deixa de soar estranha aos versados na hermenêutica jurídica, muito embora também seja bastante divulgado do ponto de vista da linguagem mais corrente o sentido de norma utilizado de forma mais genérica.

Depois, a ideia da alteração da nomenclatura da lei inspirou-se na necessidade de se deslocar a interpretação dos textos normativos do âmbito exclusivo do Código Civil, num tomar de consciência de que a hermenêutica é assunto de Teoria Geral do Direito e não propriamente de Direito Civil.

Antes se estudava a interpretação do Direito nos primeiros volumes das obras de direito civil, tendo em vista a existência da LICC, mas tal tradição foi sendo modificada no cenário acadêmico.

Aliás, ao longo do século XX, com a transformação do papel do Estado de Liberal para Social, houve uma mudança na própria interpretação do direito público, haja vista a alteração do papel do Estado da abstenção para a prestação, o que provocou um incremento da visão prospectiva do Direito, em contraposição ao papel mais retrospectivo, presente com maior intensidade no período anterior em que o direito privado era hegemônico. Assim, o aumento das atribuições a encargo do Estado fez aumentar o conteúdo e a importância do direito público.

A mudança da denominação da lei também foi relacionada com a percepção de que a hermenêutica saía dos Códigos e alçava uma preocupação estruturante à medida que era deslocada para o topo do sistema jurídico, ou seja, para a análise da Constituição.

Daí porque houve um boom de obras de hermenêutica constitucional, sendo muitas delas relacionadas com os avanços do pós-positivismo e a percepção das insuficiências das codificações para dar conta de uma realidade, primeiro, mais complexa, dado que se percebeu que se interpretam não apenas os textos normativos, mas também os fatos (Tatbestand), o que pode inclusive resultar no afastamento de determinados textos normativos em função das peculiaridades dos casos concretos; e, depois, que o conflito entre princípios e direitos fundamentais não se resolve pela dimensão da validade, daí porque houve a inclusão da discussão acerca dos hard cases, em que há ponderação.

Assim, não era adequado o tratamento que colocava os princípios no mais baixo grau de hierarquia das fontes normativas, como se fossem meros expedientes para suprir lacunas de um ordenamento supostamente completo.

Ocorre que, em vez de se alterar a substância da LICC, houve a modificação de sua denominação. O correto seria reestruturar o conteúdo do art. 4◦, segundo o qual: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, e não simplesmente alterar o nome da lei.

Como os princípios têm caráter normativo, em alguns casos, por exemplo, de leis que contenham regras que violem princípios constitucionais, as regras podem ser reputadas inconstitucionais. Significa que, na visão pós-positivista, o princípio possui também força cogente e não meramente supletiva no ordenamento jurídico.

Depois, a decisão, no âmbito administrativo, é sempre mais complexa, porque apesar do banimento do juízo do non liquet, o que implica na necessidade de o juiz decidir o caso, se a questão envolver a Administração Pública, pode ser que, diante da presença de discricionariedade administrativa, o juiz tenha, por outro lado, de conferir ao caso uma postura de self restraint, isto é, de autocontenção judicial, para que não substitua o mérito da decisão administrativa, caso ela tenha sido tomada dentro das margens de discricionariedadade fornecidas pelo ordenamento jurídico.

Não é por acaso que muitas das obras que se aprofundam na temática da interpretação no âmbito administrativo se debruçaram sobre a tormentosa questão da discricionariedade, algo peculiar à interpretação que se faz no Direito Administrativo.[1]

Também enfatiza Paulo Bonavides que se percebeu que a espinha dorsal da hermenêutica constitucional “não é uma noção de sistema fechado do pandectismo, mas de sistema aberto e flutuante, mais de natureza teleológica do que de natureza lógica”.[2] Assim, a ponderação na interpretação jurídica não é uma operação técnica rigorosamente padronizável, do ponto de vista lógico, ou seja, para se realizar a justiça no caso concreto e alcançar, em cada decisão, as finalidades do direito, é necessária uma disposição artesanal na ponderação e não uma utilização de critérios de decisão como numa esteira de produção em massa.

Segundo esclarece Gadamer, o julgamento correto, isto é, o bom senso[3] para discernir é uma espécie de gênio para a vida prática, que se relaciona menos com um dom (Gabe) do que com uma permanente tarefa (Aufgabe) de “ajustamento sempre novo de situações sempre novas, uma espécie de adaptação dos princípios gerais à realidade, através da qual se realiza justiça”.[4]

Segurança jurídica
A preocupação cerne que provocou a criação de propostas de modificação legal voltadas à interpretação do Direito Administrativo foi a ausência de segurança jurídica.

A Administração Pública possui poderes, mas nem sempre tais prerrogativas são manejadas com cuidado. Pelo que se observa das discussões que ocorreram, a preocupação central dos elaboradores do projeto foi principalmente criar um ambiente estável para os negócios, sem que os investimentos fossem afugentados pela constante utilização do ius variandi da Administração Pública.

Fora mencionado que a autotutela administrativa, que é extraída das Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal (e foi inserida nas leis de processo administrativo), reconhece poderes à autoridade administrativa para declarar a nulidade dos próprios atos ou revogá-los, por motivo de conveniência e oportunidade.

A autoridade competente já era, assim como o juiz é, um intérprete autêntico, ou seja, o aplicador autorizado e, portanto, criador da norma individual. A autotutela administrativa é uma expressão que se associa com a autoexecutoriedade, pois não há necessidade, como regra geral, de autorização prévia do Poder Judiciário para que haja a desconstituição de um ato: seja diante de uma ilegalidade, que pode ser examinada de ofício, com efeitos, via de regra, ex tunc, ou uma revogação, que, desde que assegure o contraditório e a ampla defesa e não atinja direitos adquiridos, pode ocorrer.

Note-se que o efeito ex tunc da invalidação é afastado diante de alegações pautadas na segurança jurídica, como, por exemplo, no caso de configuração de um fato consumado ou mesmo de proibição de enriquecimento ilícito por parte da administração. Conforme será defendido, melhor que se tivesse aberto de forma mais precisa esse ponto, para reconhecer de vez a invalidação com a preservação da segurança jurídica, para alguns casos, como já é feito na jurisprudência.

Todavia, segundo exposição de Alexandre Aragão, em debate na PGE do Rio de Janeiro sobre o projeto, a ideia foi que a autoridade administrativa observasse: (a) o consequencialismo; e (b) a necessidade de alguma previsibilidade, mesmo diante de um cenário variável.

É muito frequente, portanto, o argumento no sentido de se refrear o ativismo judicial, principalmente em decisões judiciais que não calculam os impactos negativos de suas medidas em termos de desorganização da racionalidade que se estabelece em políticas públicas. Tal postura alcança grande preocupação na área de medicamentos, por exemplo.

Com as novas disposições do projeto, pretende-se que o juiz examine as alternativas, as opções e seus impactos. Logo, não será mais suficiente dizer que há o direito à saúde e indicar o tratamento, mas devem ser indicados tratamentos alternativos, apontados medicamentos existentes etc.

Ocorre que o texto do art. 20 pode suscitar debates, pois ele determina tout court que “nas esferas administrativa, controladora ou judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem medir as consequências práticas da decisão”. Estabelece, ainda, o seu parágrafo único que a motivação demostrará a necessidade e adequação da medida, inclusive em face de possíveis alternativas.

A ideia é estimular que se fundamente de forma mais concreta a decisão judicial, ou, como enfatizou Marlmenstein, numa conhecida contenda (bem documentada na web) com Lênio Streck: a proporcionalidade da medida adotada não pode ser demostrada a partir de uma singela cartada, como se fosse um coringa de um jogo de baralhos (na realidade se utilizou a categoria da Katchanga Real, como esse “super trunfo” argumentativo).

Logo, sem adentrar ao debate da nomenclatura (se há escravos de jó, que jogavam katchangá ou não… com ou sem Warat…), a noção, para não perder o raciocínio, é que a proporcionalidade não é argumento de per se, mas que ela deve trazer às claras quais são os fatos concretos que são considerados na ponderação e quais são os argumentos que possuem maior peso, valor ou importância dado certo tipo de argumento contextualizado.[5]

Aliás, uma saída que já existe no ordenamento jurídico, e que foi enfatizada por Jessé Torres Pereira Jr. no evento da Federal Fluminense, seria aproveitar o fato de que o novo Código de Processo Civil é aplicado agora supletiva e subsidiariamente aos processos administrativos, e empregar o art. 489 do CPC, em cujo § 1◦ se determina que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que: (1) se limitar à indicação, à reprodução e à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; (2) empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; (3) invocar motivos que se prestaria a justificar qualquer outra decisão; (4) não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; (5) limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demostrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; (6) deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação de entendimento.

Entende-se, inclusive, mais adequada a redação dada pelo novo CPC no sentido da proibição de se invocar conceitos jurídicos indeterminados sem que haja a explicação do motivo concreto de sua incidência, em vez da redação do projeto 349, que pretende alterar a LINDB, ao proibir que se decida com base em valores jurídicos abstratos sem cotejar as consequências.

O problema de se barrar o argumento valorativo, apoiado supostamente em valores jurídicos abstratos, é que cada caso concreto possui suas particularidades e, portanto, nada obsta também que haja freios éticos, baseados, por exemplo: em moralidade administrativa, em dignidade humana etc.

Michael Sandel, numa dessas aulas magistrais da Harvard disseminada no portal Veduca, bem enfatiza o desafio do uso ora de um juízo baseado nos efeitos, isto é, nas consequências, ora de um juízo que tenha freios valorativos, éticos, e não há “bitola” que seja infalível para produzir uma decisão justa sem que se verifique o caso concreto.

Ele fornece um exemplo em que um trem está desgovernado e se o maquinista não puxar uma alavanca, irá inevitavelmente provocar a morte de cinco pessoas que trabalham nos trilhos, por outro lado, ao puxar a alavanca, haverá a colisão do trem com uma pessoa só. Assim, os alunos concordam que se puxe a alavanca e que se mate um só homem, pois, no critério escolhido: é melhor matar um do que matar cinco.

Daí, ele traz outra situação (outro contexto): uma pessoa está com problemas de saúde e cinco homens precisam de transplante de órgãos, será que seria melhor matar um do que deixar cinco morrerem, se for para usar o mesmo critério em outro contexto?

O que ele sugere com esses exemplos pitorescos é que não se pode simplesmente congelar os critérios para resolução de problemas quando os casos apresentam peculiaridades distintas. Os critérios tópicos não funcionam da mesma maneira em todos os contextos. Ora será melhor decidir em função dos efeitos, ora a decisão deve barrar imediatamente determinada conduta, independentemente e principalmente pelos efeitos, ou seja, a justiça da decisão ora deve focar nos resultados, a depender das particularidades concretas, ora nos limites éticos, pois há dimensões valorativas que são óbices à utilização irrestrita de critérios adequados a situações diferentes.

Por exemplo, o Estado deve criar meios, dentro das balizas do ordenamento jurídico, para impedir a utilização de trabalho escravo por empresas e, se houver contraditório, ampla defesa e definição legal,[6] as empresas não poderão alegar ou negociar os efeitos com base em uma avaliação econômica, pois a dignidade humana é, nesse caso, um valor superior que é prezado pela fiscalização estatal.

Seria demais exigir da decisão que constate que efetivamente houve o emprego de trabalho escravo tipificado adequadamente ter de mencionar medidas alternativas ou pretender mensurar os impactos da decisão no mercado, se houvesse o fim da exploração das pessoas…

Assim, ao utilizarmos esse raciocínio para tal texto normativo: a avaliação econômica é relevante, uma tendência inclusive, mas não é suficiente, por si, para dar conta de todas as situações interpretativas. Logo, é improvável que seja afastada a possibilidade de o juiz aplicar também um valor (como a dignidade humana) que limite de per se certas condutas.

Se ficarmos só num realismo consequencialista, abandonando a dimensão axiológica da interpretação (como se ela não tivesse de ser concretizada…), fomentaremos inclusive as interpretações perigosas, conforme bem alertou Emerson Gabardo, na discussão em rede, de que: como o Estado não tem recursos, logo, não haveria o reconhecimento de direitos, o que, pode, em alguns contextos, ser absurdo, dado que a Administração tem a obrigação de se planejar e se organizar para garantir os direitos existentes.

Aliás, esse foi um tipo de argumento perigoso apresentado recentemente pelo atual Ministro da Fazenda Meirelles, no sentido de que “ou mudamos a Constituição, ou não resolveremos a dívida da União”, mas não seria a União que deveria se adequar para cumprir as determinações constitucionais?

Com esse tipo de inversão viveremos num estado de exceção permanente ditado pelo primado da realidade, onde o Direito poderá ser flexibilizado ao se deparar com os obstáculos práticos de realização…

Corre-se, portanto, o risco de passarmos da discussão abstrata do conteúdo dos princípios, que deseja ser banida pelo projeto, para uma discussão que não deixa de ser especulativa também (ou seja, não perde o caráter abstrato) acerca da consequencialidade na aplicação do direito.

O art. 2◦ do projeto determina que na interpretação das normas de gestão sejam considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor, bem como as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

Os elaboradores do texto normativo chamam essa exigência de primado da realidade. Todavia, podem existir vários olhares sobre essa previsão, por exemplo: (a) desnecessária, pois já deveria estar pressuposta na interpretação jurídica feita na área da gestão, que não pode se estabelecer sem que se considere a realidade; (b) ineficaz, porque podem existir interpretações variáveis e que não deixam de ser especulativas, abstratas, portanto, sobre quais seriam os obstáculos e dificuldades; e, por fim, (c) perigosa: se for utilizada como uma brecha capciosa para se alegar que, por exemplo, como a realidade não nos permitiu cumprir adequadamente as exigências legais, então, podemos nos eximir de garantir direitos…

Isso ocorre principalmente porque o parágrafo único do art. 2◦ do projeto determina que: “na decisão sobre a regularidade de comportamento ou validade de ato, contrato, ajuste ou norma administrativa, serão levadas em conta as circunstâncias práticas que tiverem imposto, limitado ou condicionado a ação dos agentes”.

Aqui é interessante que essa determinação normativa não seja utilizada, portanto, como um pretexto para o argumento no sentido de que a realidade vence o direito… ou seja, que se as circunstâncias de cumprimento da lei forem muito penosas, vamos questionar tal requisito, ou pior, negociar o seu cumprimento por um regime de transição, conforme será visto na sequência…

Uma alegação dos elaboradores do projeto foi no sentido da necessidade de se estreitar o contato dos órgãos fiscalizadores com os órgãos fiscalizados… Mas isso já era uma tendência dos Tribunais de Contas, no sentido de intensificar um monitoramento preventivo e concomitante, baseado na orientação também, ou seja, de uma fiscalização não apenas punitiva, mas também ponderada em função das dificuldades práticas existentes.

Será que haveria necessidade de se alterar a lei de introdução às normas só para inserir tais orientações de gestão fiscalizatória?

Claro que às vezes há abusos, pois existem sobreposições de órgãos de controle que não entram num acordo sobre qual seria a melhor conduta e, por exemplo, uma conduta que tinha sido autorizada inicialmente em relação a dado requisito, depois é vista como proibida e o gestor fica à mercê dos chamados mandos e desmandos de órgãos controladores, numa situação kafkiana, isto é, de atordoante irracionalidade por parte da burocracia, que se mostra incapaz de dar um comando preciso e compreensível.

Assim, não nos parece que tal orientação possa ser caracterizada como a aplicação de um texto normativo cogente, mas se trata muito mais de uma sugestão de como compreender as complexidades com que os gestores se deparam no cotidiano da Administração Pública, o que já deveria estar pressuposto na análise da lei, pois é próprio do bom senso, algo que não pode ser imposto por lei (infelizmente)…

Regime de transição
Provoca debate também a forma como o projeto prevê um regime de transição diante da imposição de dever ou condicionamento novo a direito ou mesmo de se fixar orientação ou interpretação nova, para que haja respeito à proporcionalidade e à eficiência, sem prejuízo de interesses gerais.

O que mais causa estranheza nessa proposta é que quando esse regime não for previamente estabelecido, o sujeito obrigado terá o direito de negociar o regime de transição com a autoridade, celebrando um compromisso para ajustamento.

Apesar de o ajuste de condutas ser, realmente, um mecanismo elogiável e essa abertura para a negociação ser apresentada como a mais lídima expressão da consensualidade, vista por alguns segmentos como um avanço, não podemos deixar nos preocupar, por outro lado, com a possível manifestação do fenômeno da captura, diante dessa abertura, em que aquele que deveria ser sancionado, por exemplo, negocia o grau de cumprimento de seu dever.

Ora, melhor seria que se tratasse nesse ponto de um tema fundamental, pouco abordado no Direito Administrativo, que é a possibilidade de modulação de efeitos das decisões administrativas. A modulação potencializou, no âmbito do Direito Constitucional, o uso das ações de inconstitucionalidade, quando houve a previsão legal do assunto, mas não foi expressamente tratada no Direito Administrativo.

O Supremo Tribunal Federal sentiu-se mais à vontade, a partir dessa possibilidade, de analisar a constitucionalidade, pois há situações constituídas que, se fossem afetadas com efeitos ex tunc, causariam impactos de difícil equacionamento. Também para garantia da segurança jurídica, seria interessante que houvesse alusão expressa à modulação, o que já ocorre do ponto de vista prático.

Assim, a modulação seria uma forma de se aplicar as regras administrativas com ponderação diante de fundamentos como: a segurança jurídica, a proibição de enriquecimento ilícito, o fato consumado e a boa fé. Contudo, em vez de se colocar o interessado para negociar o cumprimento da lei, que muitas vezes disciplina assuntos indisponíveis, poder-se-ia apenas garantir o contraditório e a ampla defesa para que ele invoque seus argumentos que auxiliariam a autoridade competente encontrar uma interpretação mais ajustada às características do caso concreto.

Logo, esse mecanismo de regime de transição, tal qual previsto, oferece o risco de se constituir em uma possível flexibilização dos rigores da aplicação da lei, sem, contudo, oferecer a garantia efetiva de que o intérprete autorizado irá utilizar do equilíbrio entre interesses gerais e particulares na aplicação do texto normativo.

Ação declaratória de validade em regime de ação civil pública

Outra proposta que suscita indagações é a que prevê a possibilidade de, diante de razões de segurança jurídica de interesse geral, ser proposta ação declaratória de validade do ato, contrato, ajuste, processo ou “norma” administrativa, com efeitos erga omnes em regime de ação civil pública.

A proposta é que, por meio dessa ação, haja a possibilidade de estabilização. Ocorre que um dos problemas da previsão dessa ação é que não houve separação entre atos concretos e atos normativos, sendo que a distinção gera a necessidade de tratamentos tecnicamente diferentes, daí fica confuso se haverá uma ação civil pública, que geralmente possui uma tutela mandamental, ou uma mera ação de caráter mais declaratório…

Para Carlos Ari Sundfeld, conforme debate ocorrido na mesa redonda sobre o PLS, o objetivo seria criar, à semelhança da ação declaratória de constitucionalidade (ADC), uma ação declaratória de validade dos atos ou contratos, para que, com efeitos erga omnes, o Judiciário reconheça a legalidade e possibilite, assim, o bom andamento das atividades administrativas.

É problemático, no entanto, procurar criar uma ação específica, sobretudo numa alteração da lei de introdução às normas no direito brasileiro. Se a ideia é, no fundo, criar uma espécie de ação civil pública, certo seria promover uma alteração na Lei da Ação Civil Pública e não na lei de interpretação às normas… Outrossim, há dúvidas sobre a eficácia dessa ação, que se pretende com efeitos erga omnes, para garantir a pretendida estabilização, ou seja, o valor da segurança jurídica. Isso se dá, pois algumas irregularidades de contratos e de um processo não ocorrem somente em um momento anterior, quando da celebração ou da realização da licitação, mas podem acontecer irregularidades também no curso da execução do contrato, o que não resguardaria, no fundo, o investidor da possibilidade de questionamentos futuros.

Aliás, se a ideia é oferecer maior estabilidade, essa alteração talvez consubstancie um mecanismo insuficiente ou, ainda, se for mecanismo eficaz irá provocar judicialização, pois todos os investidores terão ganas de obter então um reforço de estabilização com a declaração de validade do seu contrato ou de determinada medida.

Ainda, como ficaria a presunção de legitimidade dos atos administrativos ou os prazos previstos para invalidação, que no âmbito federal gravitam em torno de cinco anos, diante dessa ação declaratória com natureza de ação civil pública? Note-se que o Judiciário também não é dos mais céleres nessa declaração…

No fundo, o mais interessante seria tentar mudar essa cultura administrativa de desrespeito à segurança jurídica, pois de nada adianta ter novas leis se as práticas não forem alteradas… O ideal seria, portanto, que se estimulasse o Poder Público a assegurar os contratos e obedecer aos prazos de invalidação presentes nas leis.

E se entrarem com essa ação para vedar a invalidação, mas depois se descobre que ocorreu, dentro do prazo decadencial, um vício que não era aparente, mas que traz à superfície uma grave nulidade?

Claro que a invalidação depende de um juízo de prudência, sendo possível que a Administração Pública aplique outras sanções, que não a rescisão contratual, por exemplo, isso decorre inclusive de uma possibilidade prevista em lei, mas se entende que tentar encerrar o controle pela via da judicialização pode gerar mais problemas do que efetivamente solucioná-los…

Ainda, conforme dito, se for vantajoso do ponto de vista econômico todos os grandes investidores irão desejar obter uma declaração erga omnes, por ação civil pública, de que o contrato é regular, o que atinge a presunção de legitimidade dos atos, atravancando ainda mais o Poder Judiciário com ações que podem ser inclusive desnecessárias, ainda mais diante dos riscos de surgirem irregularidades posteriores…

Talvez seja uma medida boa para os advogados da área do Direito Administrativo, porque daí em diante haverá inúmeros agentes econômicos com vontade de entrar com uma ação dessa natureza e o Judiciário irá discutir inúmeros contratos e medidas antes mesmo de oferecerem problemas jurídicos.

Inclusive quando da discussão do projeto, houve a crítica de que o Ministério Público firma TACs e mais TACs, muitos dos quais não coerentes. Então, estabeleceu-se no projeto que se o MP não for o autor, será citado, inclusive para aderir ao pedido.

Objetiva-se que a declaração de validade possa abranger a adequação e economicidade dos preços ou valores previstos no ato, contrato ou ajuste… Tal perenização pode não ser eficaz, ainda mais diante de áleas subsequentes que podem provocar a possibilidade de revisão contratual, inclusive em favor do investidor – então, como estabilizar essa questão para o futuro?

Ora, se for no tocante ao passado, já há mecanismos jurídicos que permitem obter indenizações, caso haja alguma injustiça… Então, não haveria necessidade dessa garantia extra…

No art. 29 está estabelecido que poderá ser imposta compensação razoável por benefícios indevidos ou prejuízos anormais e injustos resultantes do processo ou do comportamento indevido, com a possibilidade de celebração de compromisso processual. Aqui também a redação não é muito esclarecedora, porque essa compensação já decorre inclusive da equidade, sendo que toda ação que cause dano ou benefício indevido deve ser corrigida e a indenização deve ser paga ao prejudicado.

O art. 25 do projeto, por sua vez, determina que a revisão quanto à validade do ato ou negócio cuja produção já houver se completado levará em conta as orientações gerais da época, não podendo considerar inválida situação plenamente constituída. Essa determinação também não é novidade, pois isso já existe tanto na lei de processo administrativo, que, em âmbito federal, não admite retroatividade de novas orientações, como na própria jurisprudência, que reconhece o princípio da segurança jurídica.

Pontos positivos do projeto
Até esse ponto da análise não se conseguiu enxergar quase nenhuma grande vantagem em termos de efeitos das alterações sugeridas pelo projeto na lei de introdução às normas do direito brasileiro, mas há dois aspectos elogiáveis do projeto: (a) a enunciação de maiores restrições à responsabilização pessoal de agente por decisões ou opiniões técnicas; e (b) a previsão de consulta popular para todos os atos normativos.

Quanto ao novo tratamento sugerido para a responsabilização, presente no art. 27 da lei, há a previsão de que o agente público só responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

Já havia na jurisprudência do Tribunal de Contas fixando tais parâmetros de dolo ou erro grosseiro, sendo que o projeto determina que não se reputa erro grosseiro a interpretação razoável em jurisprudência ou doutrina por órgãos de controle ou judiciais.

Arnaldo Godoy, que participou das discussões do projeto elogiou bastante essa mudança, pois disse que conhece agentes que são responsabilizados em face do Tribunal de Contas da União ou das corregedorias porque os pareceres ou opiniões que emitiram não passaram pelo escrutínio daqueles que controlam os atos da Administração, razão pela qual o art. 27 auxilia a afastar algumas injustiças.

Ele mitiga, pois, a possibilidade de configuração de uma espécie de delito de opinião. Neste ponto, enfatizou Carlos Ari Sundfeld, que divergência jurídica não pode ser considerada como sinônimo de ilicitude.

Um ponto de inflexão é que o projeto determina, no art. 27, § 2◦, que o agente público que tiver que se defender, em qualquer esfera, por ato ou comportamento praticado no exercício normal de suas competências terá direito ao apoio da entidade, inclusive nas despesas com a defesa.

Entendemos justo, mas, por outro lado, também há o risco de, no curso da defesa, feita pela entidade, se constatar que o agente agiu fora da competência, daí a solução sugerida é que ele arque com os custos. Por isso, houve no trâmite uma sugestão no sentido de inserção do § 3º ao art. 27, de modo a prever o ressarcimento pelo agente público das despesas com sua defesa judicial, caso se reconheça, em definitivo, a ilicitude da conduta.

Outro ponto positivo do projeto foi a tentativa de estender a consulta popular para todos os atos normativos, conforme art. 28. Trata-se de determinação que prestigia a interlocução e abre espaço para a democratização da atuação administrativa.

Na discussão da CCJ do Senado sugeriu-se inclusive que seja feita a consulta de preferência pela forma eletrônica, o que democratiza o debate. Excepcionou-se, em caso de relevância, a possibilidade de a consulta ser realizada quando da edição do ato, mas ele ainda assim deve confirmá-lo em 120 dias.

Ocorre que o projeto determina que se não houver essa confirmação, o ato normativo deixará de vigorar, o que pode gerar insegurança jurídica. Contudo, tal risco é afastado se pensarmos que a consulta popular não é, como regra geral, vinculante, mas deve conferir uma resposta com base nos argumentos apresentados, o que é bom, pois agrega transparência também.

Conclusões

Para finalizar, então, independentemente do desfecho do projeto, entendo que o debate é necessário, pois há realmente, no cenário atual, uma situação de insegurança jurídica, acrescida ao ativismo judicial (desmedido).

Ocorre que, não obstante o cenário que legitimou a proposta ser preocupante, a solução apresentada não será suficiente para alterar efetivamente essa situação. São pontos problemáticos do projeto: essa negociação do regime de transição por parte do interessado e também a ação declaratória da validade de ato ou contrato, com efeitos erga omnes.

Ademais, segurança jurídica é princípio que possui suas ambivalências. A segurança jurídica, conforme já tivemos oportunidade de defender em artigo científico,[7] é um princípio cujo peso de aplicação varia em função de cada caso concreto, pois ela tanto pode ser utilizada para realização de justiça no caso concreto, se houver boa fé, uma irregularidade menor e ausência de prejuízo a interesses coletivos, como ela pode provocar, a depender do contexto, a estabilização de uma injustiça.

As modificações sugeridas não são aptas a alterar a situação da insegurança diagnosticada, sendo algumas, conforme visto, uma repetição daquilo que já existe e outras, ainda, incapazes de gerar:

  1. coerência sistêmica, que era uma pretensão do auge do pandectismo, mas que, diante das descobertas da nova hermenêutica, representa uma vã tentativa, pois não adianta tentar criar todo um repertório de textos normativos que se pretendam coerentes se a interpretação terá sempre seu grau de criatividade concreto, o que não é de todo um aspecto negativo; e
  2. a eliminação da incerteza jurídica, conforme pretensão extraída do próprio texto do projeto, o que é impossível por conta da textura aberta da linguagem, somada à incontrolabilidade dos parâmetros de decidibilidade, que são sopesados com resultados distintos em face das diferentes características dos casos concretos (em variados contextos, ou, como diria Wittgenstein II: nos distintos jogos de linguagem).

Talvez seria mais eficaz discutir, no âmbito da Administração Pública, práticas de gestão mais comprometidas com a consequencialidade, bem como incentivar a autocontenção judicial nos casos de configuração da discricionariedade administrativa, o que já resolveria parte dos problemas de instabilidade na interpretação do Direito Administrativo. Essas são as minhas observações para o debate do projeto 349.

Agradeço, por fim, ao Emerson Moura pelo convite que me foi feito para reflexão conjunta desse importante tema no seminário.


[1] Desde a época de Hely Lopes Meirelles, já se observava que uma peculiaridade da interpretação feita no Direito Administrativo é a presença da discricionariedade. In. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 50. Há um item próprio da obra que ressalta as peculiaridades da interpretação na área, mesmo naquela época em que não se aprofundavam as análises do pós-positivismo.

[2] BONAVIDES, Paulo. A constituição aberta. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 285.

[3] NOHARA, Irene Patrícia. Limites à razoabilidade nos atos administrativos. São Paulo: Atlas, 2006. p. 38.

[4] GADAMER, Hans Georg. Verdade e método. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 64.

[5] Para os versados em teoria da linguagem: é Wittgenstein II, que afasta a pretensão de se extrair isomorfismo a partir de uma lógica pura, quase matemática, dos jogos linguísticos. Trata-se da dimensão pragmática da linguagem.

[6] Também não seria certo o Estado, sem assegurar ampla defesa, contraditório, com base em conceitos indeterminados, sem a mínima tipificação e, ainda, infralegais impor sanções de forma autoritária, como já tivemos ensejo de questionar uma portaria inconstitucional, que foi afastada por liminar pelo STF. Mas a alegação foi jurídica e não somente econômica.

[7] NOHARA, Irene Patrícia. Ensaio sobre a ambivalência da segurança jurídica nas relações do Estado da realização de justiça à faceta perversa do argumento. In. MARRARA, Thiago (Org.). Princípios de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2012. p. 62-94.

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