O século XXI se abre à humanidade abalado pelas grandes incertezas ante à dissolução dos pontos de apoio que garantiam segurança às estruturas organizacionais, tais como: soberania do Estado Nacional, princípio do desempenho como vetor do desenvolvimento social e a crença no progresso por meio da ciência e da tecnologia.

O universo do risco, diante das modificações contemporâneas processadas, entre outras, em função da indústria química, da microeletrônica, da tecnologia nuclear e das manipulações genéticas, foi ampliado e a humanidade foi confrontada pela necessidade de reflexão acerca de um potencial de ameaça tradicionalmente inimaginável e que desafiou as categorias até então utilizadas para o pensamento e a ação.

Com a análise das Guerras Mundiais, os problemas ambientais com efeitos supranacionais provocados pela ação humana, a globalização e as transformações nas relações sociais, a coletividade se deparou com uma situação de transnacionalização dos chamados “riscos civilizacionais”.

Da confrontação dos modelos de desenvolvimento herdados da modernidade com a finitude dos recursos naturais, surgiu o primeiro embrião da noção de desenvolvimento sustentável (com marco no relatório de Brundtland, da década de oitenta, relacionado com a preservação dos recursos para presentes e futuras gerações) e, consequentemente, da ideia de sustentabilidade, que posteriormente se disseminou para outras áreas além da questão ambiental, sendo hoje consenso que há sustentabilidade no tripé: meio ambiente, transformação econômica e impactos sociais.

O vocábulo sustentável é, no universo organizacional, associado com compromissos de responsabilidade social. Empresas mais atualizadas já não enxergam a sustentabilidade como freio às suas ações, mas procuram traduzir a concepção em termos de “vantagens competitivas”.

Isso se deve ao fato de que problemas com a sustentabilidade e suas consequências jurídicas e sociais são catastróficos também para as empresas, seja numa ação na justiça, em um inquérito civil no Ministério Público, ou até mesmo numa notícia, na imprensa, de que suas práticas causam males sociais e ambientais.

O problema maior é que a definição do que seja arriscado do ponto de vista coletivo não é algo que se possa verificar sem a intermediação de um discurso científico, mas, de outro ângulo, também o discurso científico, por si só, não é suficiente para definir questões que interessam a toda coletividade e que gravitam em torno dos perigos que a sociedade aceita correr em nome do “progresso”.

Assim, por exemplo, a consideração da saúde pública, passa a ser deslocada da seara da regulação estatal, no âmbito da Anvisa, e os segmentos empresariais mais competitivos começam a se adiantar na definição dos riscos voltados à saúde, trazendo para próximo e, até para dentro mesmo, do ambiente empresarial especialistas, isto é, cientistas ou técnicos, que possam auxiliar na definição de suas estratégias, ou mesmo que ajudem na construção de linhas técnicas de argumentação e de discurso da empresa diante da ocorrência de algum “sinistro”, não só para que as atividades empresariais não provoquem males à saúde pública, mas sobretudo diante de outros “efeitos colaterais” ponderados, tais como: os procedimentos judiciais, a redução do prestígio, a depreciação dos seus produtos e de sua marca e a perda do mercado.

A sociedade de risco provoca uma reação de autorregulação que representa um adiantamento da empresa às consequências da regulação estatal, uma vez que no marco econômico da ordem capitalista, empresas mais atualizadas são aquelas que se apresentam à sociedade como precoces em relação aos riscos que suas atividades provocam e que procuram, com isso, construir uma imagem mais legítima, a qual não deixa de representar uma vantagem competitiva em relação às demais.

Nesse contexto, expõe Ulrich Beck (Sociedade de Risco, 2010, p. 28), a esfera pública e a política transcendem o espaço público e passaram a ser pauta de discussão da intimidade do gerenciamento empresarial.

Para o Estado e, principalmente, para a sociedade civil, é importante esse processo de adiantamento da empresa, pois é indiciário de que, sponte própria, ela está se orientando para uma atuação com responsabilidade social; porém, por outro lado, também deve haver precaução para que a ação empresarial não provoque assimetria de informações, o que gera a conhecida captura regulatória na fixação dos critérios normativos exclusivamente em favor do setor empresarial.

Nesta linha, a sociedade não pode ser ingênua ao deixar de considerar que segmentos empresariais fortes, com expressão econômica maior até do que verdadeiros Estados nacionais, têm condições (técnicas, financeiras e políticas) de produzir “contradiscursos” realizados no intuito de forjar o conhecimento (ciência e pesquisa), disseminando versões interessadas pelos meios de comunicação, com o objetivo precípuo de evitar consequências financeiras de perigos que potencialmente exijam ações e medidas compatíveis.

Em suma, paralelamente à produção do discurso empresarial, que se orienta e se mune também de elementos de legitimidade, o que é elogiável, deve haver nos Estados Democráticos também espaços públicos abertos para discussão de critérios regulatórios cogentes que distribuam as consequências dos riscos para além da equação na qual enquanto poucos lucram com os riscos produzidos, muitos são os afetados por eles.

Artigo originalmente publicado no Jornal Enfoque Jurídico, de maio de 2011.

CITAÇÃO:

IMPRESSA: NOHARA, Irene Patrícia. Risco e sustentabilidade da empresa: regulação estatal e autorregulação empresarial. Enfoque Jurídico, São Paulo, mar. 2010, p. 6.

PONTO DE VISTA – digital. Disponível em: http://www.enfoquejuridico.com.br/artigo/risco-e-sustentabilidade-da-empresa-regulacao-estatal-e-autorregulacao-empresarial

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