Terceiro setor de fachada em filme

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O filme Quanto vale ou é por quilo? aborda os desvios de um terceiro setor de fachada, que se alimenta de fomentos obtidos do governo, mas que dá pouco retorno social. O filme foi premiado com: melhor roteiro, melhor edição, melhor ator coadjuvante (Lázaro Ramos) e melhor atriz coadjuvante (Ariclê Perez).

Trata-se de mais uma produção de Sérgio Bianchi, conhecido diretor paranaense, que também produziu Cronicamente Inviável, uma sátira dramática da perversão dos costumes da classe ascendente brasileira. São filmes que incomodam, por escancarar uma parte que se solidificou historicamente no ethos nacional, constituída por pessoas que parecem pouco se acanhar com tantas distorções valorativas.

Em Quanto vale ou é por quilo?, adaptação de um conto de Machado de Assis, o enredo traça um paralelo da situação de dominação dos senhores de escravos no período colonial e a atual exploração da miséria, como atividade economicamente rentável, feita por ações solidárias “de fachada”.

Existe toda uma preocupação dos envolvidos em produzir imagens que legitimem a continuidade dos projetos, muito mais do que ocupar-se dos objetivos de utilidade pública voltados aos destinatários dos projetos sociais.

O recorte remete à indagação sobre se, apesar de todas as transformações do período colonial até os dias atuais, efetivamente houve alguma mudança no relacionamento entre as classes exploradoras e aqueles que continuam sendo permanentemente assujeitados, dos quais se extraem vantagens econômicas, curiosamente, numa situação similar à vivenciada na época da escravidão.

Uma das personagens, Arminda, descobre que o projeto de informática do qual participa foi viabilizado por meio da entrega, à periferia carente, de computadores superfaturados. Ao denunciar tais abusos, ela começa a ser perseguida por um matador de aluguel, que realiza suas atividades criminosas para atender aos caprichos e trazer dinheiro para a esposa, que reclama da condição social.

Também se expõe a dinâmica distorcida do terceiro setor, que, em vez de realizar a “suposta” democracia, acaba funcionando por ONGs que se articulam em finalidades lucrativas, mais associadas com a mentalidade do setor empresarial. Na crítica de Bianchi, as ONGs não são retratadas, portanto, como uma panaceia, como defendem alguns, para solucionar os dilemas de exclusão social no acirramento dos valores capitalistas em face de um Estado que falha em cumprir com a sua missão.

Filme recomendado por Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci, doutor em história social pela USP, e que também pode ser visto em conjunto com a leitura do texto: CASTRO, Hebe M. Mattos de. Laços de Família e Direitos no Final da Escravidão. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da Vida Privada no Brasil – Império: a corte e a modernidade nacional. Vol. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, em que há diversas narrativas, amparadas em fatos verdadeiros, com base em documentos constantes de processos judiciais, que lançam o olhar sobre a dinâmica privada de conquista das alforrias no processo paulatino de abolição da escravidão no Brasil.

Do ponto de vista do Direito Administrativo, por outro lado, a abordagem de Quanto vale ou é por quilo? é relevantíssima, pois se discute atualmente a eficácia da Lei de Parcerias no monitoramento mais adequado dos projetos financiados por recursos públicos, sobretudo do ponto de vista do controle dos fins, isto é, dos impactos sociais, para evitar o dispêndio e/ou desvio de verbas públicas nas conhecidas “pilantropias”.

Isto pois, como enfatiza Emerson Gabardo, a propósito da ‘pretensa’ crise do Estado Social, enfatizada pela adoção da controvertida noção, questionada em sua tese, de subsidiariedade:

“Não é exatamente uma crise, mas o nosso dilema não é exatamente igual ao dilema dos países europeus, ou não era, porque eu estou falando dessa transição da década de noventa para a primeira década do século XXI, e em dez anos a nossa realidade mudou bastante. Quando eu deixo de prestar direitos sociais por meio do regime jurídico administrativo, e essa é a ideia do princípio da subsidiariedade, há um sério risco para alguns princípios que são muito caros ao modelo de Estado Social, que são o princípio da impessoalidade, o princípio da universalidade, da continuidade, isonomia e o da solidariedade, em geral. Quando eu parto para uma ideia de subsidiariedade, eu não posso mais considerar esses princípios como princípios fundamentais. Eu vou dar impessoalidade, universalidade, continuidade e isonomia quando possível. E eu substituo essa ideia de subsidiariedade como caridade. Esse prestígio ao terceiro setor é muito fortemente ligado à ideia de que o Estado tem que ajudar as pessoas a fazerem caridade. E que as pessoas têm que fazer caridade, e não o Estado. Mas o problema do Estado ajudar e financiar a caridade de terceiros é que se rompe na prestação com um certo caráter público. Não público estatal, mas o caráter público na prestação, porque nós temos contratos temporários, inexistência de concursos públicos, enfim, não há profissionalização. Se no Poder Público nós temos um problema com a profissionalização, no terceiro setor esse problema é bem mais grave. Há uma dificuldade muito grande de controle de recursos. Há uma precariedade na medida em que os instrumentos com o Poder Público são temporários e, portanto, não permitem uma continuidade na execução de políticas públicas. Há, ainda, um paradoxo, porque nós não temos no Brasil um terceiro setor constituído espontaneamente, como existe nos Estados Unidos e em outros países, cuja espontaneidade solidária é muito forte. Então, o que acontece? O Estado quer criar um terceiro setor de forma artificial. O resultado no Brasil é um terceiro setor estatizado. Na realidade, ele acaba não nascendo na sociedade civil, acaba sendo um terceiro setor que nasce para pegar dinheiro do Estado, porque quem continua financiando é o Estado. O nível de financiamento da sociedade civil para o terceiro setor que presta serviços não privativos do Estado é mínimo. A maioria esmagadora dos recursos que vão para o terceiro setor no Brasil são recursos públicos. Entretanto, quando um serviço é prestado, ainda que seja excelente do ponto de vista moral, por voluntários, ele não pode ser considerado um direito subjetivo de quem o recebe. É muito difícil falar em direito subjetivo de quem recebe, se você presta nestas condições.” In. NOHARA, Irene Patrícia (Coord.). Gestão Pública dos Entes Federativos: desafios jurídicos para inovação e desenvolvimento. São Paulo: Clássica/PNUD/PensandooDireito/Uninove, 2013. p. 72-73.

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