Como evitar a imputação de erro grosseiro pelos órgãos de controle

Introdução

Sabe-se que o fenômeno da Administração Pública do Medo tem impactos em apagão de canetas, devido à proliferação das instâncias de controle que paralisam a ação administrativa, intensificando o receio de responsabilização dos agentes públicos. Assim, a LINDB, com o art. 28, na redação da Lei nº 13.655/2018, previu que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões e opiniões técnicas nos casos de dolo ou erro grosseiro.

Para falar sobre o tema palpitante da imputação de “erro grosseiro” pelos órgãos do controle e, consequentemente, de como evitar tal imputação, do ponto de vista estratégico da gestão pública e, sobretudo, por parte do agente, o Portal DireitoAdm entrevista Marcelo Magalhães, Procurador do Banco Central, Doutor em Direito Constitucional pela Unifor, onde leciona Direito Administrativo e Constitucional e professor da pós-graduação da Unifor e da Universidade 7 de Setembro.

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à oportunidade e à generosidade de compartilhar desses conhecimentos acerca de pesquisa empírica com base nas decisões do Tribunal de Contas da União sobre erro grosseiro, em tema de grande interesse e importância para todos os que se debruçam sobre a LINDB e as eventuais disfunções do controle.

ENTREVISTA

1. Como se explica esse processo de formação do fenômeno da Administração Pública do medo e do receio, até por parte do agente público ciente, de poder ser incurso em responsabilizações?

Marcelo Magalhães.

O fenômeno do “Administração Pública do medo” surge a partir de uma atuação desordenada das instâncias de controle da Administração Pública; existe uma variedade tão diversa de agentes encarregados (Poder Judiciário, Advocacia Pública, Ministério Público, Tribunais de Conta, corregedorias etc.) e de instrumentos de controle (ação popular, ação civil pública, ação de improbidade, ações de nulidade, mandado de segurança etc.) que não é raro haver uma superposição subjetiva ou procedimental no controle de certo ato público, mormente aqueles atos que versam sobre a execução do gasto público, com destaque especial para a ordenação de despesas em licitações públicas.

A essa miríade de agentes e instrumentos de controle devem ser somados fatores de insegurança ao gestor público, como o fato de nosso direito administrativo ter passado muitos anos carente de uma melhor sistematização das regras inerentes ao poder sancionatório; como exemplos podem ser apontadas a omissão na disciplina das circunstâncias atenuantes e agravantes (que vão surgir com a Lei Anticorrupção em 2013) e a confusa abordagem sobre o bis in idem (que vem ser melhor esclarecido apenas com a reforma da Lei de Improbidade em 2021).

2. Qual seria a diferença entre ilícito funcional e falha funcional?

Marcelo Magalhães.

O ilícito funcional seria, a rigor, a conduta praticada por agente público quando presente o elemento subjetivo do dolo ou da má fé, ou seja, o desejo deliberado de causar dano à Administração Pública. Todavia, o grave descompromisso com seus deveres, que leva a erros que poderiam ser evitados com a mínima atenção ou diligência, aproxima a conduta do ilícito funcional, aquele que a reforma da LINDB chama de erro grosseiro (o TCU se refere a isso como erro grave em muitos dos seus julgados).

Já a falha funcional ocorre em escala de menor gravidade, consistindo muito vezes em falta da capacitação ou de atualização normativa do agente público, que acaba fazendo uma interpretação de norma que não é mais adequada ou já está superada. Na falha funcional o agente comete um equívoco tendo a certeza de que está fazendo a coisa certa, não há traço de dolo nem mesmo má fé. Não é à toa que a Nova Lei de Licitações praticamente impôs o dever de promover capacitação aos agentes públicos, e atribui tal responsabilidade à Alta Administração.

3. Desde 2018 até os dias atuais, como o Tribunal de Contas tem se debruçado sobre o erro grosseiro?

Marcelo Magalhães.

O Tribunal de Contas da União criou a doutrina do “Administrador Médio”, que é o agente público proativo e diligente com a coisa pública. Se a ação se afasta do conceito de administrador médio pode estar configurado o erro grosseiro.

Em linhas gerais, O TCU tem identificado o bom gestor (administrador médio) por alguns aspectos: ele é diligente com suas atribuições, capacita sua equipe, tem zelo pelas verbas que administra (não poupa esforços para certificar a lisura dos pagamentos), não permite o dano ao erário, é criterioso com os processos de licitação e com as dispensas, coopera com o controle externo, apura ilícitos e fornece informações para que a sociedade fiscalize seus atos.

4. Qual a imputação que recai mais sobre o parecerista? Houve um avanço, a partir da LINDB, mas também o parecerista deve ficar atento, mesmo com o teor do art. 28, para não incorrer em responsabilidades por erro grosseiro?

Marcelo Magalhães.

Sim, o parecerista pode incorrer em erro grosseiro, hipótese em que poderá ser responsabilizado de forma solidária com o gestor público.

É preciso destacar ainda que as decisões da Corte de Contas federal não têm se resumido em responsabilizar o parecerista apenas em casos em que seu erro venha a influir diretamente em prejuízo ao erário, sendo conferida a possibilidade de responsabilização mesmo em casos em que o parecer induz à mera irregularidade. 

Evitar o erro grosseiro exigirá, antes de tudo, uma eficiente política de integridade no órgão ou ente público, de forma a criar um ambiente de integridade e correção, alicerçado em capacitação periódica, troca de experiências, banco de boas práticas, manualização de procedimentos e busca pela formação de uma equipe capacitada para que possa bem exercer a segregação de funções.

Ademais, o controle interno e a advocacia pública, notadamente após a aplicação da Nova Lei de Licitações, passam a ter um papel pedagógico e de detecção preventiva de falhas e irregularidades. Deve sair de cena a noção de um controle com o fim de punir e entra em campo uma atuação de “parceria” entre o controle interno, a advocacia pública e as áreas demandantes, principalmente quando se tratar de licitações públicas, onde a possibilidade de erro grosseiro é mais acentuada.

De outro lado, a criação de mecanismos de detecção de erros e de colaboração com os controles interno e externo pode levar à rápida identificação de falhas. Eventuais erros funcionais devem ser imediatamente reportados e os agentes envolvidos devem ser orientados e capacitados quando possível. A busca por evitar o erro grosseiro deve ser um processo coletivo que alcance e motive todos os envolvidos.

5. Então, como sugere que o agente público tenha ações concretas para o fito de evitar essa imputação de “erro grosseiro” pelo controle? Como e quando sugere que ele “não se omita” de agir e como ele deve agir para evitar imputações alicerçadas no conceito de “erro grosseiro”?

Marcelo Magalhães.

Desde 2019 temos decisões emanadas do TCU que apontam responsabilidade àquele que destoa do conceito de “parecerista médio”, o que se dá por atitudes como, por exemplo,

– a emissão de parecer jurídico sem abordar a inviabilidade de conceder à empresa contratada pela Administração reajuste de preço por desconformidade com o disposto em lei, ou

– quando o parecer aprovar minuta de edital contendo vícios que não envolvam controvérsias jurídicas ou complexidades técnicas, ou seja, vícios que poderiam ser facilmente sanados com uma conferência ordinária pelo parecerista.

6. O Tribunal de Contas costuma identificar como erro grosseiro aquilo que tipifica um desempenho “aquém do esperado pelo administrador médio”. Contudo, tal suposição do que se espera do “administrador médio” é efetivamente razoável ou por vezes há uma projeção ideal por parte do órgão de controle sobre o que seria a “média” esperada sem se considerar, portanto, o “primado da realidade”, isto é, as dificuldades reais e os obstáculos efetivamente enfrentados?

Marcelo Magalhães.

O Tribunal de Contas da União tem conferido um certo subjetivismo ao conceito de “administrador médio”, o que tem sim causado certa insegurança jurídica.

É preciso observar que o TCU foi rápido em aplicar o art. 28 da LINDB, mas não tem tido a mesma pressa em aplicar os artigos da LINDB que tratam do pragmatismo e das dificuldades práticas a que se submetem os gestores no exercício de suas competências cotidianas (art. 20, parágrafo único; art. 22, caput).

O teste de fogo para a aplicação do pragmatismo versado na LINDB deverá ser o exame dos processo relativos às licitações emergências nos momentos mais críticos da pandemia de Covid19.

A conferir…

7. Entende que também a motivação deve ser um elemento a ser considerado para blindar o gestor no caso de imputação de “expectativas ideais” por parte dos órgãos de controle?

Marcelo Magalhães.

Sim, a motivação é a grande “peça de colaboração” do gestor em face do controle externo e do  controle social. É a partir da motivação, com a exposição dos fatos e do direito devidamente casados com a realidade das circunstâncias, que o gestor comprova sua boa fé e sua intenção de alcançar o interesse público.

É oportuno lembrar que independente de qualquer dever de motivar contido em lei, o gestor deve se valer da boa doutrina da teoria dos motivos determinantes, tão bem trabalhando por nomes como Marcello Caetano, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello e Celso Antonio Bandeira de Mello.

Uma motivação clara e objetiva, com evidente subsunção do fato à norma implica também em garantir transparência às condutas do gestor, que demostra, assim, estar colaborativo tanto com o Tribunal de Contas quanto com a sociedade civil.

8. Será que a motivação não funcionaria como uma faca de dois gumes, dado que em face das exigências da LINDB, o agente deve doravante ponderar a necessidade e a adequação, tendo em vista consequências jurídicas e administrativas, mas ao mesmo tempo que a motivação serve para refrear o controle com as justificativas necessárias, ela também funcionaria como uma intensificadora do controle? Quais as sutilezas práticas de uma motivação adequada para o fim de se evitar com que ela crie mais problemas do que os solucione?

Marcelo Magalhães.

A motivação deve ser clara e objetiva, evitar decisões sob condição e estar amparada em fatos e evidências. Cada vez mais se vive o tempo do “Direito a partir de evidência”, algo que parecia estar restrito aos estudiosos da Análise Econômica do Direito, mas hoje chegou para ficar mesmo em ramos como o Direito Administrativo.

Se a motivação estiver amparada em evidências, estatísticas e experiências documentadas, o gestor estará resguardando sua administração e colaborando com as administrações futuras. Veja o caso, por exemplo, da aquisição de bens para guarnecer eventual manutenção predial: tal licitação não pode mais se motivar por achismos, sendo forçoso a apresentação dos estoques que foram consumidos nos últimos anos. Veja ainda a contratação emergencial de empresa para fornecer refeições detentos com pagamento antecipado, hipótese em que deverá ficar demonstrado que a empresa só poderia atender a demanda do dia seguinte se recebesse valores de forma antecipada.

9. Por vezes o TCU considera que descumprir “normativos internos” acaba resvalando para erro grosseiro. Mas a própria Administração, na sua gestão, deve dar transparência e capacitação para os agentes públicos, para que encontrem soluções adequadas no emaranhado de atos internos, que nem sempre são coerentes, harmônicos e transparentes… Será que o agente público não estaria diante de um impasse, pois nem sempre a gestão do órgão se preocupa em divulgar e estimular uma compreensão harmônica deste “cipoal de regras e atos normativos”, dada acentuada frequência de alteração, e, ao mesmo tempo, nem sempre há por parte do controle uma ponderação que interprete as expectativas de uma conduta reputada diligente com base nos atos normativos do momento da decisão, o que prejudica a segurança jurídica?

Marcelo Magalhães.  

Sem dúvida. A contínua edição de normas legais e infralegais exige cada vez mais atualização por parte dos agentes públicos, notadamente em áreas sensíveis, como as licitações e as licenças ambientais.

É dever inerente à Alta Administração de cada órgão ou ente público fornecer a devida capacitação aos seus servidores e garantir, quando for o caso, o cumprimento das prerrogativas funcionais e a justa e equilibrada divisão de tarefas.

Quanto ao tema da interpretação dos normativos, temos que lembrar que a LINDB acabou por salvaguardar a boa fé daquele que decide com base nos normativos da época da prática do ato, conforme se observa de seu art. 24.

10. Para além da determinação ao órgão, é possível, com motivação, deixar de cumprir orientação do Tribunal de Contas? Quando a orientação é mais no sentido da “recomendação” do que de uma “determinação”, será que essa recomendação acaba sendo, na prática, “facultatória”, em vez de algo que se possa cumprir apenas parcialmente, sob pena de se incorrer em controles mais rigorosos, ou há uma tolerância por parte do órgão de controle para compreender as diversas opções motivadamente apresentadas pelo gestor mesmo diante de suas expectativas?

Marcelo Magalhães.

Na prática, os órgãos de controle não têm feito essa ponderação do escopo e da abrangência da recomendação e da determinação. Algumas recomendações poderiam vir a ser entendidas futuramente como jurisprudência já firmada, da qual o gestor não poderia se furtar a observar, sob pena de agir de forma desidiosa.

Essa falta de clareza entre a recomendação e a determinação contribuiu para o Direito Administrativo do Medo e o “apagão das canetas”.

Ao que tudo indica, a LINDB também foi atenta a essas situações, tendo em conta que baliza a irretroatividade de nova interpretação sobre situação pretérita, conforme vemos do seu art. 23.

11. Qual a diferença entre cooperar com o controle externo ou se dobrar ao controle externo, quando este quer assumir o papel do gestor? Identifica haver, por parte do Tribunal de Contas da União, um certo “protagonismo” que não poderia ser assumido por um órgão de controle, resvalando para a situação indesejada do ativismo de contas?

Marcelo Magalhães.

O TCU, infelizmente, tem ido além de mero protagonismo, tendo tomado muitas decisões que, na prática, assumem o lugar da corregedoria interna do órgão. Há aplicação de sanção até em agente público que não administra bens ou valores e que não está no conceito de gestor público, tendo sido apenas por falha funcional ínsito ao seu órgão interno de corregedoria.

Cabe deixar claro que qualquer Tribunal de Contas tem competência para aplicar a sua lei orgânica e não o estatuto funcional de qualquer que seja o agente público.

Em casos de intromissão, é dever da advocacia pública combater o excesso do controle externo.

12. O apagão das canetas é um fenômeno que inibe a criatividade do agente público… Pois ele se paralisa com esse receio de responsabilização. Contudo, diante das transformações rápidas, a última coisa que se poderia esperar do gestor é a paralisia. Como fazer com que os órgãos de controle não façam uma interpretação tão esgarçada do “erro grosseiro” a ponto de considerar tantas hipóteses como de culpa grave, dado que enquanto a LINDB possui uma presunção de boa-fé por parte do gestor, nem sempre o TCU abraça essa presunção de boa-fé em suas decisões?

Marcelo Magalhães.

Infelizmente, muitos julgados do TCU ainda não incorporaram que o espírito da LINDB é proteger o gestor de boa-fé, daí o uso de institutos como o pragmatismo e o consequencialismo.

Alguns julgados insistem em dar um visão equivocada ao art. 28 da LINDB, como se o controle externo tivesse ficado a cargo de punir o erro grosseiro, o que está absolutamente em desacordo com o espírito dos novos artigos da LINDB.

O que o art. 28 quer nos dizer é que a regra é não considerar que uma falha funcional leve ao agente o campo de aplicação das sanções mais gravosas, e sim que, apenas diante do dolo e da má fé deliberadas é que se pode cogitar de uma responsabilidade pessoal em patamares mais elevados.

13. Quais as últimas considerações ‘de esperança’ que faz para o agente público que agora possui a seu favor a LINDB ou as ponderações feitas pela Reforma da Improbidade, para que ele se sinta mais empoderado para agir diante das possíveis retrações das disfunções e excessos por parte do controle?

Marcelo Magalhães.

O controle passa a também ser controlado. Vejamos que agora as decisões do controle judicial ou externo passam a ter a obrigação de apresentar as alternativas em caso de nulidade de ato ou contrato.

Os tempos atuais são regidos pela confiança, vivemos a sociedade da economia da confiança, onde ser confiável gera ótimos incentivos e abusar da boa fé alheia leva a penas rigorosas, não somente no âmbito jurídico, mas também nas relações pessoais (quem não conhece um caso de “cancelamento” nas redes sociais).

Enfim, normas como a que reformaram a LINDB, o novo regime da improbidade administrativa e a nova lei de licitações trazem mais esperança para o direito administrativo e para o bom gestor, aquele que deseja acertar e alcançar o interesse público.

De um lado, o controle passa a ter o dever respeitar e compreender as limitações do gestor e as circunstâncias de sua tomada de decisão, de outro lado o direito sancionatório passa a ter contornos mais claros e há uma ampla aceitação da proporcionalidade e da razoabilidade na análise das condutas e das sanções aplicáveis.

Eu estou certo de que aqueles que lutam pelo interesse público terão dias melhores.

Muito obrigada, Marcelo!

lindb

Como é amplamente divulgado, a LINDB sofreu alteração em 2018 para inclusão de uma dezena de dispositivos novos orientados para a interpretação do direito público. Trata-se de projeto que foi proposta do Senador Anastasia, do PSDB, tendo sido formulado a partir do labor de dois advogados e professores renomados da área do Direito Administrativo: Carlos Ari Sundfeld e Floriano Azevedo Marques Neto.

O projeto de lei contou com poucos debates em audiência nas Casas Legislativas, de modo que, no momento de sua aprovação, ele provocou a imediata reação de inúmeras associações, como a ANAMATRA, a AJUFE, a ANPR, a CONAMP e o SINAIT em favor de seu veto integral. O então-Presidente Michel Temer acabou vetando algumas partes muito controvertidas do projeto, sobretudo o dispositivo que pretendia criar uma ação declaratória de validade de contrato, com rito de ação civil pública, que provocaria uma acentuada judicialização (algo que se criticava…).

Atualmente, o projeto está aprovado, na Lei nº 13.655/2018, não como inicialmente engendrado, mas segue suscitando polêmicas acerca do seu conteúdo, pois se problematiza se os dispositivos são úteis, se eles são novidades ou mesmo se são aptos a resolver os problemas de segurança na interpretação do direito público…

No geral, pode-se observar que os novos dispositivos interpretativos da LINDB concentram um instrumental que pode ser ampliador do questionamento que pode ser feito aos órgãos de controle (isso ocorre, pois, para o advogado, abre-se um repertório bastante profícuo de atuação), mas, por outro lado, por parte destes órgãos de controle, a LINDB apresenta inúmeros e controvertidos desafios.

O “estado de coisas”, isto é, o “diagnóstico” identificado, no discurso dos que defenderam o projeto, foi preciso – realmente, era (e ainda é…) necessário discutir os seguintes pontos:

  • superposição de controles, nem sempre justos;
  • decisionismos infundados, sem a devida motivação, critério ou mesmo equilíbrio;
  • falta de articulação interinstitucional ou na mesma instituição, quase sempre sujeita a mandos e desmandos;
  • decisões com consequências prejudiciais aos contratos, fulminando a desejada segurança jurídica dos negócios celebrados com o Poder Público;
  • necessidade de maior consensualidade nas decisões de controle;
  • o “medo” que os gestores acabam tendo em função de possíveis distorções dos órgãos de controle, o que gera paralisação pela ausência de vontade de “inovar” diante dos riscos que isso representa, ainda que na margem de discricionariedade administrativa; e
  • urgência de contenção do ‘elemento surpresa’ nas imposições enfrentadas, que também devem ser feitas de forma equilibrada no tocante às consequências, sem desproporção, com previsibilidade etc.

Neste ponto, o debate sobre a necessidade de conter excessos, desproporções e desequilíbrios dos controles é um debate no qual os advogados possuem uma casuística enorme das distorções e injustiças enfrentadas no seu cotidiano, é quase que um “desabafo” só o fato de poder expor e se sentir também identificado com outros casos de injustiça…

Contudo, ao analisar tecnicamente os dispositivos da LINDB, que supostamente se voltariam, então, a equacionar os problemas de “segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”, percebe-se, que, não obstante um diagnóstico preciso, a TERAPÊUTICA, isto é, a SOLUÇÃO apresentada em termos de inovações legislativas é composta, em grande medida, por “SOLUBLEMAS”, isto é, soluções que estão longe de resolver os problemas diagnosticados, muito pelo contrário: são SOLUBLEMAS porque elas não deixam de produzir novos problemas, dada a mesma imprecisão, o mesmo decisionismo, a mesma insegurança e de alguns outros pontos mais problemáticos e especulativos que derivam da análise do novo texto normativo da LINDB…

Assim, por exemplo, “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em VALORES JURÍDICOS ABSTRATOS sem que sejam consideradas as CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS da decisão”, conforme art. 20 da LINDB, acrescentado pela Lei nº 13.655/2018. Ainda, o parágrafo único do art. 20 da LINDB determina que a motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma, inclusive em face das possíveis alternativas.

Em primeiro lugar, o consequencialismo já deveria estar pressuposto na ação administrativa (mas, dirão muitos, não custa ressaltá-lo…). Contudo, essa redação, já tivemos oportunidade de criticar em um pequeno texto escrito sobre a LINDB, é bastante estranha, pois pode gerar uma falsa percepção de que os argumentos consequencialistas pragmáticos são mais importantes do que os argumentos de substrato valorativo, o que é uma (possível) interpretação bem problemática.

Começa que: sempre que se faz uma aplicação jurídica, o valor abstrato é aplicado ao caso concreto… Isso é o primeiro passo que se aprende em hermenêutica com base na semiótica, pois o conceito abstrato perde sua abstração numa aplicação/manifestação concreta…

Exceto em visões absolutamente platônicas, geralmente, é consenso, caso se parta do triângulo semiótico – que engloba os vértices: (a) termo, palavra ou expressão linguística; (b) conceito ou ideia; e (c) manifestação concreta ou fenomênica na realidade –, que a aplicação fenomênica do conceito é sempre concreta, nunca abstrata…

Então, o órgão decisor sempre irá se manifestar numa aplicação concreta de valor jurídico abstrato… sendo estranha essa redação: “não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos”, pois sempre a decisão se dá com base em uma aplicação concreta, com base na realidade. Os apoiadores dessa alteração chamaram essa análise de: primado da realidade, o que não é nenhuma novidade…

Daí, muito se costuma argumentar: mas, o problema é usar de conceitos indeterminados, como “dignidade humana”, algo indefinido, sem maior segurança técnica quanto à sua concretude…

Trata-se também de argumento problemático, pois o caso concreto é sempre mais rico do que a suposta tentativa de se fechar um texto normativo… Mesmo os termos mais definidos como “homem” ou “ser humano”, podem oferecer problemas interpretativos em situações concretas da vida, como, por exemplo, numa escavação em que se encontra ossadas que ainda não se configuram como hominídeo e nem como primata do gênero pan, mas, ainda assim, apresentam similaridades, por exemplo, como os homo sapiens, isso deixará os antropólogos intrigados, ainda que o conceito de homem seja algo supostamente preciso (aliás, essa análise é bem conhecida da obra de Genaro Carrió…)….

Por outro lado, os termos mais abstratos como “dignidade humana” na aplicação concreta podem ganhar uma precisão que extrapola o grau de especulação. Isso se dá porque não se interpreta apenas o texto normativo, mas a interpretação também ocorre no mundo dos fatos, daí a crítica que a hermenêutica contemporânea faz em relação à insuficiência da subsunção como operação lógico-formal apta a garantir equilíbrio na decidibilidade (pois esta é questão que envolve razão prática e não lógica pura)…

Por exemplo, recentemente, a criatividade sem bom senso nos trouxe um caso de explícita violação à dignidade humana: a Associação Mato-Grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção, em parceria com inúmeras organizações e entidades públicas, estruturou um desfile chamado de “adoção na passarela” no Shopping Pantanal, para 200 pessoas, em que crianças eram expostas (com apoio das lojas de roupas e calçados que doaram itens a serem usados no desfile, ainda ajudando no embelezamento das crianças), em local de consumo para mostrar o quão bonitas e desenvoltas eram, para que fossem adotadas.

A organizadora do evento chegou a afirmar que o juiz havia permitido a realização do desfile… Que eles não pretendem “brincar com as crianças”, mas que tinham o respaldo do Judiciário… Ainda, quis-se argumentar que dois adolescentes, respectivamente, de 14 e 15 anos “foram adotados”…

Neste caso, qualquer intérprete jurídico, com o mínimo de bom senso, o que nem sempre ocorre, perceberia que se trata de explícita violação à dignidade humana. Ser tratado com dignidade significa não ser reificado, isto é, não ser tratado COMO COISA, substituível por outras coisas, comparáveis em uma esteira/passarela de desfiles, como se o que se quisesse comprar, em vez das roupas das crianças, fossem as próprias crianças (os produtos a serem expostos para doação)… Quando um ser humano é visto como produto a ser exposto e exibido como mercadoria em um Shopping Center isso explicitamente viola sua dignidade, pois as pessoas são “fins em si”, não são meios para o deleite e o arremate de outros.

As pessoas possuem sentimentos, são únicas, possuem suas idiossincrasias, possuem um mundo interior próprio, não são produtos a serem selecionados pela aparência em meio a outros numa passarela de adoção… Imagine do ponto de vista psicológico: o quanto isso pode afetar a auto-estima das crianças que, já abandonadas, foram postas em desfile para doação…

Aí os consequencialistas (os desequilibrados – claro… pois consequencialismo também é especulativo… aqui se quer referir aos que focam mais em questões econômicas e que acham, por outro lado, que valores, ética, integridade, dignidade podem ser no fundo óbices à capacidade inventiva humana… que precisa ser mais flexível…) poderiam dizer: – ah, mas você prefere que elas fiquem “mofando” para adoção, sem que o “gestor” bem intencionado “inove” e faça bons negócios para todos os envolvidos, alavancando o shopping, intensificando as vendas (vai que essas duzentas pessoas comprem mais, gostem das roupinhas e sapatos “gratuitamente” cedidos nessa ação “do bem”…) e, ainda, produzindo duas adoções que não ocorreriam se essa “criatividade toda” não fosse tolhida pelo “medo” incutido de um ordenamento muito inflexível, que prefere valores abstratos a consequências práticas… Diriam, ainda, que é mais importante que sejam consideradas as consequências práticas do que valores jurídicos tão abstratos como “dignidade humana”…

Mas isso é SOLUBLEMA!!! Valorizar mais as consequências práticas é algo tão indefinido e inseguro quanto aplicar valores… dado que a pergunta que se faz é: – consequências práticas para quem? Consequências práticas para o que?

Uma coisa é a consequência econômica para o shopping, que aumenta vendas e pretende promover ações que repercutam positivamente na sua imagem (se bem que, nesse caso, ocorre exatamente o oposto, gera um “solublemaço”: pois a passarela da adoção, pela violação à dignidade, provoca, no fundo, um risco enorme de dano reputacional ao shopping onde essa ação ocorreu…)… Ou consequência de adoção: geraram duas adoções? Ou consequência de danos psicológicos das crianças expostas como mercadoria e frustradas por não serem arrematadas, mesmo que produzidas, com as belas roupinhas, para o evento? Ou a consequência de violação de leis protetivas às crianças e adolescentes? Afinal, de que consequência se trata?

A aplicação jurídica é um fenômeno complexo, então, falar em considerar as consequências pode ser algo tão especulativo ou até AINDA MAIS especulativo do que a aplicação (sempre concreta) dos valores jurídicos abstratos.

A mesma questão tive oportunidade de levantar no último debate que participei sobre a LINDB, em que apontei que a Súmula Vinculante 5 soluciona o problema econômico de Erário da AGU, no tocante àquela questão, pois caso houvesse as invalidações todas dos cinco anos de PADs sem advogados, dentro do conteúdo da súmula anterior do STJ, haveria impactos de mais de um bilhão de gastos em reintegrações de servidores condenados em PAD, sem esse rigor de defesa técnica…

Mas, e do ponto de vista daqueles que foram demitidos sem que se apontasse tecnicamente, por exemplo, uma prescrição intercorrente ou uma nulidade, pois não houve uma defesa mais precisa?!? Não haveria também necessidade do consequencialismo, isto é, consequencialismo do sentido de ampla defesa e das garantias constitucionais, pois a Súmula foi editada meses após e justamente em reação à Súmula do STJ que exigia a presença de advogado em todas as fases do PAD!?!

Pior, fala-se em esferas administrativa, controladora e judicial, enfiando todas essa situações no mesmo balaio… sem se considerar inúmeras peculiaridades próprias… Por exemplo, se se trata de esfera administrativa, há a busca pela verdade real, daí a decisão tem maior amplitude de ponderação, na sua motivação, se se trata de esfera judicial, depende, pois se for judicial derivada de indagações de índole dispositiva, em processo civil, por exemplo, a própria decisão do juiz, enquanto instância de controle, estará adstrita a uma série de limitações processuais, sem poder alcançar a amplitude toda de demonstrar todas as POSSÍVEIS ALTERNATIVAS… sob pena de ser até invalidada pela instância superior…

Então, o debate sobre os sentidos dos dispositivos da LINDB está só começando… até porque, apesar da ampla margem de novas perspectivas para serem questionadoras da justeza do controle, ainda assim, serão os órgãos de controle que, ao cabo, enquanto intérpretes autênticos de aplicação do ordenamento, darão o teor interpretativo na aplicação concreta de cada um desses dispositivos, formando um repertório a guiar o intérprete…

Sem dúvida que, para aqueles que atuam no questionamento dos controles, como é o caso dos advogados, abre-se um leque bem grande de oportunidades argumentativas e de momentos negociais… Em suma, não se trata de debate fla x flu ou de torcida contra e a favor, até porque a lei já existe (e de forma muito distinta do projeto original)… Também, uma vez que existe, ela ganha vida própria interpretativa, não adianta querer “chamar de sua” e não permitir que outras pessoas analisem suas potencialidades e inocuidades concretas… pois o alargamento ou a sua restrição de sentido ainda será alvo de construção tanto jurisprudencial, como de influência doutrinária, algo que está SÓ COMEÇANDO…

Trata-se apenas de uma reflexão sobre se a lei criada é apta a resolver a situação caótica de incerteza jurídica que impulsionou a sua criação, isto é, se ela apresenta SOLUÇÕES efetivas e aptas…, sendo que, da problematização dos possíveis sentidos derivados do seu texto normativo, em muitos dos casos, ela apresenta apenas “SOLUBLEMAS” interpretativos… Supostas soluções que provocam outra miríade de problemas…

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