Silenciamento e silêncio da burocracia: “quem cala, se omite”
28.05.2011 por Irene Nohara391 acessos
Em análise do discurso, costuma-se dizer que apesar de o silêncio “não falar”, ele significa. Nas sociedades que vivenciaram regimes autoritários a população conviveu ainda com uma forma mais extremada de atitude estatal: o silenciamento, sendo este considerado a proibição implícita ou explícita de sustentação de “outro discurso”.
Atualmente, mesmo com a proibição constitucional à censura, não se pode dizer que a democracia seja uma realidade pronta e acabada, mas algo que se constrói, havendo parâmetros indiciários de uma ambiência mais ou menos democrática, seja nas relações do Estado com os cidadãos ou mesmo entre a sociedade. Basta refletir, por exemplo, na polêmica autorregulação do CONAR envolvendo os limites éticos da propaganda infantil, quando ela promove a erotização das crianças ou se comunica imperativamente a partir de frases do tipo: “não fique de fora” ou “peça já para a mamãe comprar”.
As liberdades garantidas pela Constituição não são absolutas, mas talvez um dos maiores desafios do Estado Democrático de Direito é perscrutar critérios razoáveis para a restrição delas, para evitar que sejam fulminados núcleos essenciais de direitos igualmente protegidos.
Já o silêncio do Estado é aquela circunstância de ordem mais passiva, onde a burocracia fica inerte em vista de uma requisição do cidadão ou mesmo em face de um dever de agir. O agente público inerte poderá ser responsabilizado pela sua omissão, sendo garantido ao cidadão prejudicado pleitear diretamente a responsabilidade do Estado.
Em havendo a requisição do administrado e ante a ausência de resposta, situação clássica de silêncio administrativo, o Direito Administrativo brasileiro não adota o adágio “quem cala consente”, que pode ser extraído do silêncio circunstanciado do art. 111 do Código Civil.
Adota-se, primeiramente, a solução que a lei determinar para aquele caso. Se não houver lei específica, a doutrina grosso modo sugere que, se passar o prazo previsto para a prática do ato (disciplinado em leis específicas ou de forma subsidiária pela lei genérica de processo administrativo), o administrado supra a inércia do Poder Público pleiteando em juízo um provimento que poderá ditar a solução para o caso concreto, em havendo vinculação, ou dar prazo para que a Administração decida, diante da discricionariedade.
Note-se que há sistemas que já adaptaram suas burocracias para exigir mais da inércia da Administração Pública. Na Europa, como relata Thiago Marrara (RDPE 27/203-217), existe Diretiva de Serviços, aprovada em 2006 pelo Conselho da União Europeia, que impõe a necessidade de cooperação de autoridades, por meio de um sistema de balcão único e da resposta positiva ao silêncio administrativo nas expedições de alvarás liberatórios ao desenvolvimento de atividades particulares.
O balcão único possibilita que empresas, principalmente as de pequeno e médio portes, como academias de ginástica ou restaurantes, resolvam seus problemas burocráticos de abertura de filial em outro país perante órgão único, sem ter de se desdobrar em diversos órgãos estatais para a obtenção de autorização administrativa de funcionamento no país de destino dos serviços, o que reduz custos financeiros e temporais.
Mais relevante ainda: a Diretiva reconhece a autorização tácita ou fictícia. Para evitar engavetamentos e toda sorte de inércia por parte dos Estados, que acabam vedando ou, no mínimo, atrasando a entrada de prestadores de serviços estrangeiros em território nacional, se a Administração Pública não cumprir o prazo fixado para a expedição da licença ou autorização, esta será considerada deferida, o que gera simplificação e aceleração na burocracia.
Sem deixar de considerar os riscos que a adoção de sistema semelhante pode envolver no Brasil, que tem suas particularidades culturais, não se pode negar que a resposta positiva da Diretiva promove objetivos de integração e de incremento da concorrência nos serviços prestados, que tem potencial de contribuir para a diversificação do mercado.
Em suma, silêncio não se confunde com silenciamento. Enquanto o silenciamento envolve censura, que é proibida pela Constituição, por violar a liberdade de expressão de pensamento – sendo que esta última não pode ser considerada direito absoluto, o silêncio é a verdadeira omissão estatal, na qual, no direito público brasileiro, ao contrário da solução da Diretiva de Serviços da União Europeia, ainda não há, via de regra, tanto espaço para o “quem cala, consente”.
Artigo originalmente publicado no Jornal Enfoque Jurídico, de dezembro de 2010.
CITAÇÃO:
IMPRESSA: NOHARA, Irene Patrícia. Silenciamento e silêncio da burocracia: quem cala se omite. Enfoque Jurídico, São Paulo, dez. 2009, p. 8.