Entrevista com o Dr. Dalmo de Abreu Dallari

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Dalmo Dallari
Dalmo de Abreu Dallari

Compartilho aqui a entrevista que fiz com Dalmo Dallari, que foi meu professor na Faculdade de Direito da USP (FADUSP). Trata-se de minha primeira entrevista de um grande jurista. Na época da entrevista, eu estava cursando a pós-graduação stricto e tinha sido convidada para integrar o Conselho Editorial da recém-criada Revista da Procuradoria-Geral do Município de Santos, ocasião em que o Conselho (constituído por Eliane Elias Mateus, Gilberto Marcos Antonio Rodrigues, Hubert Vernon L. Nowill, José Eduardo Martins Cardoso, Luiz Soares de Lima, Mozar Costa Oliveira, Sérgio Sérvulo da Cunha e Walter Theodosio) havia deliberado inaugurar um painel periódico de entrevistas e começar pelo ícone Dallari.

Daí, pela minha proximidade por conta das atividades acadêmicas e também física, por morar em São Paulo, recebi a feliz incumbência de realizar a entrevista, publicada em 2004. Havia o peso da responsabilidade de representar a Revista e, ainda, de explorar na entrevista os pontos relevantes da contribuição de Dalmo Dallari, um dos maiores constitucionalistas-municipalistas deste nosso País.

À época que recebi a incumbência da Revista eu estava cursando o PAE, que era o Programa de Aperfeiçoamento ao Ensino, na FADUSP, acompanhando o professor Edmir Netto de Araújo em suas disciplinas em estágio docente na Graduação, e me lembro perfeitamente quando, num intercâmbio que a Faculdade de Direito havia feito com a Faculdade de Educação da USP, houve uma professora da Faculdade de Educação que veio ao auditório do prédio anexo falar no PAE sobre as experiências da trajetória docente e deu um exemplo que me deixou ainda mais ansiosa: se alguém perguntasse para ela como seria entrevistar alguém, ela jamais poderia transmitir em explicações teóricas a complexidade da atividade de realizar uma entrevista, pois a experiência da entrevista certamente que demandaria um mergulho muito mais complexo em posturas, habilidades e percepções do que o desdobramento do assunto por si, dado que o entrevistador teria de reunir condições de extrair o melhor do entrevistado, não deixá-lo ou deixá-la acuado(a) e, ainda, explorar o que de mais interessante por meio de outrem aquele conteúdo pode alcançar, algo que só poderia ser aprimorado com a prática, jamais com teoria.

Eu ali, ainda ao final dos vinte anos de idade, sem maiores experiências como comunicadora, um pouco tímida até, mas com a grande admiração que sempre tive pelo professor Dalmo, que era para mim uma espécie de Gandhi ou líder dos direitos humanos, com acurácia técnica em suas análises, senti-me, em verdade, nada confortável com aquele exemplo que dizia que só fazendo que se aperfeiçoa e que nada iria ser suficiente teoricamente para dar de dica se o assunto fosse “como fazer uma entrevista”…

No início dos anos 2000 ainda não havia esses podcasts e grandes entrevistas em que os jovenzinhos se reúnem num bate-papo enorme com grandes personalidades e que podem ser acessados facilmente no youtube, para ver na prática o call to action. Era um período em que os trabalhos eram mais preparados, as tecnologias não propiciavam tanto acesso, logo, fui organizar um pequeno gravador, testei as fitas (minifitas) e entrei em contato, por telefone fixo, com o professor Dalmo, que, prontamente, com aquela voz de locutor que lhe era característica, me convidou para entrevistá-lo em sua residência: uma linda casa em estilo colonial no Bairro da Vila Nova Conceição.

Pesquisei seu histórico, abaixo transcrito, levantei os temas de preferência, submeti ao Conselho se havia alguma pergunta adicional que eles gostariam que fosse feita e, no dia da entrevista cheguei cedo, numa bela manhã, na residência do professor Dalmo, que me recebeu tão carinhosamente e foi absolutamente impecável tanto nas grandes respostas que deu, muito ricas e absolutamente interessantes, pois ele generosa e abertamente compartilhou de suas vivências mais impactantes em cada um dos temas que respondeu, sendo as perguntas feitas no momento da entrevista mesmo, conforme roteiro feito, então, o Professor foi respondendo espontaneamente, como também fazia questão de valorizar pela atitude e pelos temas perguntados.

A cada resposta que ele ia dando, que depois eu transcrevi e não houve necessidade de ajuste nenhum, pois ele falava com uma correção vocabular e uma precisão admiráveis, de forma ao mesmo tempo entusiasmada, mas tranquila também, eu ficava mais contente, uma vez que já sabia que a entrevista, apesar de minha inexperiência à época com entrevistas, estava realmente ficando muito rica, do jeito que eu havia sonhado!

Ainda, a cereja do bolo: quando terminamos a entrevista ele me acompanhou até o portão da casa e daí me falou: – não perca esse entusiasmo tão importante da juventude por esses temas relevantes!!!

Aquilo ficou tão forte em minha mente que pareceu um mantra para me guiar pela vida… Aquela frase que parece fixar e orientar. Aliás, não tinha como não se impactar com aquela presença tão iluminada, pois eu havia sentido essa luz especial que vinha do âmago do Professor Dalmo, que ele fazia questão de dividir com as demais pessoas, inspirando muitos e muitas a seguirem os caminhos construtivos em prol da dignidade humana, da reflexão democrática, do federalismo e dos direitos dos indígenas, questões que todos sabemos da importância, mas que demandam um verdadeiro e vocacionado sacrifício para abraçar como ele sempre fez e inspirou, eu sabia que se tratava de alguém de fato espetacular, capaz de reunir inesgotável conhecimento e peculiar sensibilidade, e, mesmo com toda minha “projeção psicológica” de tudo o que eu admirava nele, aquele arquétipo paterno-acolhedor, sábio e amoroso, divertido, humano, profundo e, ao mesmo tempo, leve, que ele congregava, tive, na entrevista, a confirmação de que tudo aquilo era absolutamente real!

Então, agora, quase vinte anos após, em um contexto de mudança de apartamento me deparo com o primeiro volume histórico da revista e, ainda bastante sensibilizada com o falecimento do Professor Dalmo, neste ano de 2022 (data de 8 de abril), percebendo que não há o arquivo digital da entrevista (nem na internet e sequer em meus arquivos digitais), resolvi digitar e compartilhar trechos dela abaixo para o público do site no setor de entrevistas!

O conteúdo original é referenciado da seguinte forma:

NOHARA, Irene Patrícia. Entrevista com o Dr. Dalmo de Abreu Dallari. Revista da Procuradoria Geral do Município de Santos. Ano I, nº 1, p. 15-24, 2004.

ENTREVISTA

O Dr. Dalmo de Abreu Dallari nasceu em Serra Negra, no Estado de São Paulo. É bacharel (1957), Doutor e Livre-Docente (1963) em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Passou a integrar o corpo docente desta faculdade em 1964. Em 1974, venceu o concurso de títulos e provas para professor titular de Teoria Geral do Estado; prosseguiu suas atividades universitárias ministrando aulas no curso de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e, em 1986, foi escolhido para ser diretor, cargo em que permaneceu até 1990. Desempenhou destacada e corajosa posição na resistência democrática e oposição ao regime militar, dedicando-se ativamente à defesa dos Direitos Humanos. É membro-organizador da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo – da qual foi presidente, da Associação Brasileira de Juristas Democratas, do Instituto dos Advogados de São Paulo, do qual foi vice-presidente, e presidiu a fundação da Escola de Sociologia e Política. Foi Secretário dos Negócios Jurídicos da Prefeitura do Município de São Paulo, na gestão da prefeita Luiza Erundina. É autor de inúmeros livros, dentre os quais: O município brasileiro; da atualização do Estado; Elementos da Teoria Geral do Estado (obra clássica, de inúmeras reedições, utilizada como manual na disciplina de Teoria Geral do Estado na maioria dos cursos de Direito de todo o País); o renascer do direito: direito e vida social, aplicação do direito, direito e política; O pequeno exercito paulista; O futuro do Estado; Que são direitos da pessoa?; Que é participação política?; Constituição e constituinte; O direito da criança ao respeito; O Estado Federal, entre outros. O desempenho de suas importantes atividades não possui fronteiras, pois foi Vice-Presidente da Comissão Internacional de Juristas, com sede em Genebra; é professor visitante da Universidade de Paris e coordenador da Cátedra UNESCO/USP de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância. Como membro da Comissão Internacional de Juristas, chefiou duas missões, destinadas a verificar denúncias de graves violações dos direitos dos direitos humanos, uma da Cachemira, no norte da Índia, e outra na Indonésia. Estudioso consagrado do federalismo, foi muitas vezes convidado para ministrar palestras no exterior, em função dos conhecimentos acumulados e da utilidade destes para os países que estudavam novas fórmulas de distribuição do poder político. Participou de discussões na Assembleia Constituinte de Moçambique, quando estava sendo elaborada a primeira Constituição daquele novo país africano. Em 2003 recebeu da Presidência da República o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, na categoria Educação para os Direitos Humanos. É também especialista na questão de proteção às minorias e tem uma atuação destacada na proteção aos índios. Em 20 de abril de 204 foi homenageado e condecorado pela Funai com a Medalha do Mérito Indigenista pelo resultado do trabalho desenvolvido em benefício da causa indígena.

Revista – Primeiramente, eu gostaria de agradecer, em nome de todos os Conselheiros da Revista da Procuradoria-Geral do Município de Santos, a oportunidade de inaugurar nosso painel periódico de entrevistas com um entrevistado que, no universo jurídico nacional e internacional, dispensa apresentações: Dalmo de Abreu Dallari. Gostaríamos que o Senhor nos contasse um pouco de seu histórico no envolvimento com questões municipais.

Dr. Dallari – Antes de mais nada, eu gostaria de agradecer à Procuradoria Municipal de Santos por me dar essa oportunidade de um diálogo. Na verdade, eu tenho uma ligação muito grande com o Município, já pelo fato da minha origem num pequeno município, que é o de Serra Negra, mas além disso, também, do ponto de vista teórico, eu sempre considerei extremamente importante a formação jurídica municipal, porque é onde há o relacionamento mais direto entre o povo e o governo, e é onde há mais possiblidade de vida comunitária e de percepção do exercício e da negação de direitos, de maneira que dou uma importância muito grande à Procuradoria Municipal.

Revista – O Senhor até expõe, em inúmeros trabalhos, que desde a origem, na própria Colônia, havia uma estrutura de poder local que representava uma espécie de federalismo em potência, antes mesmo da Constituição de 1891. Como isso se desenvolveu?

Dr. Dallari – Logo após o Descobrimento do Brasil, vieram portugueses, depois outros estrangeiros; avia o problema da organização dos serviços, e o Governo português, que teoricamente governava o Brasil, estava muito longe e durante muito tempo não tinha interesse pelo Brasil; depois tomou interesse por alguns pontos específicos em função de algumas riquezas, especialmente da mineração. Então, como é que se resolviam os problemas dos serviços locais, que eram necessários? Isso tudo foi resolvido a partir da organização do poder local. Vieram fazendeiros, como principais ocupantes da terra, que se uniram para a solução de sues problemas imediatos; por exemplo, o problema dos transportes, o problema de construir pontes, o problema de cuidar da saúde das pessoas e prestar socorro, até mesmo o problema de segurança. Tudo isto era assunto resolvido no nível local, então as pessoas se reuniam e sempre havia alguém com mais liderança que era escolhido como chefe ou governante e que acabava encarnando o poder local.

Revista – Muitas vezes acabava criando coisas, à revelia do que era determinado pela Metrópole, não é?

Dr. Dallari – Sim, até exercia função legislativa, função jurisdicional, porque teoricamente vigoravam as leis portuguesas. Havia um conjunto de leis que deveria resolver os problemas, que eram as Ordenações do Reino, que continham regras a respeito de governo local, mas essas regras eram pouco conhecidas, e as pessoas que estavam aqui no início não tinham formação jurídica, tinham alguma memória do que acontecia em Portugal e de alguma forma tentavam imitar, mas como não tinha texto da lei, não tinham conhecimento especializado, não tinham a experiência, faziam adaptações… Na verdade, criavam, improvisavam soluções; daí o nascimento do Direito Municipal, quer dizer: o Direito Municipal nasceu a partir da realidade, a partir da necessidade de uso e ocupação do território e harmonização dos interesses. Então, na verdade, foi o primeiro Direito efetivamente usado no Brasil: o Direito Municipal.

Revista – como um Direito de fato brasileiro!

Dr. Dallari – Sim, e isso depois evoluiu, o Direito Municipal cresceu bastante e nunca deixou de ter um peso muito grande. É interessante verificar que, quando nós tivemos a primeira Constituição, a de 1824, já há referências expressas a esse poder local, e quando se chega, em 1891, à primeira Constituição republicana, não houver qualquer resistência à afirmação do poder local, até mesmo como poder autônomo. O Município já foi declarado autônomo na primeira Constituição republicana, quer dizer, nós já tínhamos de fato um poder municipal muito vigoroso, com larga experiência, e já tínhamos um Direito Municipal muito desenvolvido. Isso então dá uma autoridade muito grande a este Direito Municipal; ele não foi uma concessão do governo central, foi uma criação da base social brasileira.

Revista – Passando para sua experiência concreta de atuação no Município, como foi o período de Secretário de Negócios Jurídicos na gestão da ex-Prefeita Luiza Erundina?

Dr. Dallari – A minha participação no governo de Luiza Erundina foi muito interessante como experiência. Foi a única participação que já tive até hoje em um governo. Eu sempre andei muito próximo dos governos em termos de vigilância, de cobrança e, eventualmente, de colaboração, mas sem “as amarras” de um cargo. Quando a Prefeita Luiza Erundina me convidou, eu aceitei porque achei que seria uma boa oportunidade para ver de perto como as coisas funcionam e, eventualmente, exercer alguma influência. Aliás, um aspecto que eu acho também muito interessante nessa iniciativa da Procuradoria Municipal de Santos é busca de elementos além da legislação. Eu tenho percebido que ela se orienta, em suas publicações e promoções, no sentido de proporcionar uma formação mais completa. O positivismo jurídico é um vício tradicional que nós herdamos da França do século XIX, que faz com que o Direito seja reduzido à lei, com que a busca da justiça seja substituída pela legalidade, e acabamos tendo um legalismo formal. Sobre este ponto, eu posso dar um depoimento que é muito curioso; até hoje eu não escrevi sobre isso, não houve oportunidade. Quando eu assumi a Secretaria de Negócios Jurídicos na Prefeitura, nos primeiros contatos com outros secretários eu ouvi muitas críticas à Procuradoria, se dizia que é o setor “do não pode”. O Secretário dizia: “Tudo o que eu quero fazer, lá vem o Procurado dizendo isso não pode”. E eu disse aos Procuradores, e quero dizer isso agora: tive a felicidade de ter um apoio muito grande da Procuradoria, a partir da Procuradora Ana Emília C. Alves, mas também dos Procuradores. Nós dialogamos muito. Uma das coisas que eu disse logo de início foi: não vamos ser a Secretaria do “não pode”, nós vamos ser a Secretaria do “como pode”, para averiguarmos quais são as restrições, mas também quais as possibilidades. Um Secretário ou a Prefeita querem fazer determinadas coisas e da maneira como eles querem fazer é ilegal; mas há interesse público. Então, nós temos a missão de dizer: assim não pode, mas com aquele ajuste pode, ou seja, como eu encontro os caminhos legais para realizar alguma coisa que é de interesse público. E a Secretaria realmente funcionou nesta linha, e a Procuradoria deu uma colaboração extremamente valiosa e importante e, ao mesmo tempo, deixou de ser a Procuradoria do “não pode”.

Revista – O Senhor participou de inúmeros eventos no exterior, envolvendo a questão federal. Pode nos relatar alguma experiência marcante?

Dr. Dallari – É, na verdade, eu tive a oportunidade de discutir o federalismo em vários momentos importantes e em vários lugares diferentes no mundo. Por exemplo, eu discuti esse tema na Itália. Lá o problema da centralização ou descentralização é muito agudo, basta lembrar que lá há uma diferenciação cultural muito acentuada. É bem mais acentuada do que a que há no Brasil. Por exemplo, um italiano da Calábria, ou da Sicília, ou da Sardenha, às vezes tem dificuldades de entender a fala de um italiano do norte, ou de Veneza, de Milão e assim por diante. E há costumes diferentes. A Itália é um Estado unitário, quer dizer, não é um Estado federal. A Itália adotou, então, um sistema de regionalização. Ela usa regiões, e há certas regiões que têm um estatuto especial. São regiões em que o Poder Legislativo é mais  amplo, e há outras que têm um estatuto mais restrito, porque são mais diretamente influenciadas e governadas mesmo pelo governo central. Então esse é um problema muito sério na Itália, e várias vezes eu recebi convites para falar sobre essa questão e explicar melhor o que é o federalismo, porque a Itália nunca teve uma organização federativa, mas acabou adotando uma organização regionalizada, o que, de certo modo, e até certo ponto, é inspirada no federalismo, mas não é  federalismo. Uma das razões é que os italianos têm muito medo de que a concessão de autonomia excessiva para as regiões acabe levando a sua independência.  A Itália só conseguiu sua unidade como Estado no século XIX, e ela tem muito medo de voltar atrás, de conceder autonomia demais…

Revista – Quer dizer, a preocupação seria basicamente com a diversidade cultural?

Dr. Dallari – Sim, há uma diversidade cultural muito acentuada. As influências sofridas por cada região são muito diferentes. No norte, em Piemonte, por exemplo, a Itália está pertinho dos povos germânicos e sofre essa influência; quando eu chego no extremo sul,  vejo outras influências, por exemplo, influências africanas ou gregas. Além disso, a presença espanhola, no sul da Itália, foi muito forte. Ainda hoje vemos, na Sicília, na Sardenha, ruas com nomes espanhóis, quer dizer, há um remanescente desta antiga situação, mas que influiu sobre os costumes, sobre a legislação local e daí a necessidade pela busca de equilíbrio.

Revista – A proteção às minorias, que é uma questão muito abordada na Europa, não desperta no Brasil a mesma ordem de preocupações, o senhor concorda?

Dr. Dallari – Nos últimos anos tem havido uma preocupação maior com a questão das minorias, mas, na verdade, há muitos problemas graves a serem superados, a começar pelos preconceitos, embora muitas vezes isso passe como inexistente. Esa questão é muito forte praticamente no mundo inteiro! Ainda agora, no início do ano de 2004, eu estive na China; fique lá durante doze dias e fui a diversos lugares da China. Comecei em Beijing, que é no norte, depois fui a Xangai, depois fui a Cantão, no extremo sul, e o que se verifica lá é que há uma hegemonia clara, manifesta, de uma etnia, que é a etnia han, e eles não conseguem disfarçar as restrições às outras etnias. É um problema de que os jornais habitualmente não tratam, mas eu já tinha alguma informação e lá pude constatar que isso é realmente muito forte. Há uma restrição muito grande às outras etnias porque são minoritárias. A etnia han é amplamente majoritária, mas esse problema das minorias nós encontramos sensível e ostensivo mesmo nos países da Europa! Então, a França, por exemplo, com a qual eu tenho bastante contato, vive permanentemente esse problema. Há uma tentativa de disfarce, de fazer de conta que ele não existe, mas o problema existe. Na França, em grande parte, é consequência do antigo estatuto colonial. Os antigos colonos vão à França com certa facilidade, mas são recebidos com extrema reserva e muitas e muitas vezes com claras restrições. Assim, a gente vê na França as minorias árabes e negro-africanas sofrendo muitas restrições, mas isto também se estende a latino-americanos. Essa restrição às vezes se manifesta de maneira curiosa. Eu tive uma experiência pessoal, por acaso, mas acabei verificando como isso funciona. Eu tive um infarto na França, mas eu era vinculado à Universidade de Paris, de Nanterre, era inscrito num serviço social francês, contribuía para esse serviço. Então, fui encaminhado ao hospital nessa condição, mas verifiquei que a funcionária que me atendeu, quando viu que eu era brasileiro, me atendeu mal e deu um resmungo dizendo: “Esses latinos vêm aqui só para usar nossos serviços”. Na Inglaterra também ocorre isso, sobretudo aos originários das antigas colônias inglesas, por exemplo, os indianos.

Revista – Isso tudo ocorreu com o Senhor, que é descendente de europeus e tem uma aparência bastante similar à deles. Imagine, então, o que não ouvem aqueles que são mais diferenciados e que lá se encontram por diversas razões…

Dr. Dallari – Pois é, eu sou também cidadão italiano, cidadão europeu, mas isso me dá uma possibilidade de observação muito curiosa, pois  vivo as duas situações: eu já verifiquei isso, por exemplo, chegando à Europa e apresentando o passaporte europeu. Eles nem lêem o passaporte, enquanto às vezes um colega que está junto comigo é superexaminado, o que é muito desagradável…

Revista – Recentemente o senhor foi condecorado com a Medalha do Mérito Indigenista. Conte-nos um pouco mais de seu envolvimento com a causa indígena.

Dr. Dallari – Eu venho trabalhando com os índios há cerca de trinta anos; fui aos poucos me envolvendo, a começar pelos meus trabalhos na Faculdade de Direito. Desde logo, mostrei minha preocupação com o direito das minorias e com os direitos humanos de maneira geral. Por causa disso, antropólogos que trabalhavam com índios começaram a me procurar. Eu também vivi uma transição muito curiosa em relação a isso, porque, no início, os antropólogos tinham muta restrição aos advogados, exatamente por causa do legalismo, e diziam isto: “A lei é toda para proteger o invasor de terras, o latifundiário, e o advogado não percebe que ele está a serviço desta gente que vai roubar a terra do índio, matar o índio”. E infelizmente acontecia isso mesmo, os índios não ganhavam uma só causa, eles perdiam todas!!!!

Revista – O Senhor acha que a Constituição de 1988 mudou esse cenário?

Dr. Dallari – A Constituição mudou, mas, muito mais do que isso, o que mudou foi a mentalidade das pessoas de formação jurídica! Hoje nós temos advogados, juízes e promotores que são muito sensíveis à questão indígena. A par disso, este aspecto muito importante: a Constituição dedicou um capítulo aos direitos dos índios, reconhece até o direito à diversidade cultural. Mais ainda, ela deu atribuições expressas ao Ministério Público para defesa dos direitos indígenas. Na parte da Constituição em que é feita a enumeração das funções institucionais do Ministério Público, aparece lá expressamente referida a defesa dos direitos indígenas.

Revista – Voltando à questão sobre sua atuação na causa, pois, infelizmente, nossa indagação sobre a Constituição atrapalhou um pouco o desenvolvimento da pergunta anterior, e com certeza os leitores da Revista adoraria saber de sua experiência na causa indígena… O Senhor estava falando sobre o legalismo…

Dr. Dallari – Os antropólogos tinham restrições porque verificaram que os advogados eram legalistas ferozes, e esse legalismo normalmente ia contra os índios, mas também nos tribunais os índios eram sempre derrotados. E isto começou a mudar de vinte anos para cá, com a entrada de advogados indigenistas, advogados mais sensíveis à questão indígena e que foram levando aos tribunais outra visão, chamando a atenção dos juízes. Houve até um momento muito interessante, durante a Constituinte de 88, quando se começou a discutir qual deveria ser a justiça competente par aos assuntos indígenas. Nós aqui de São Paulo já tínhamos algumas decisões a favor dos índios. Eu trabalhei várias vezes com dois antigos alunos que são extremamente dedicados à questão indígena, que são: o Doutor Marco Antônio Barbosa e sua mulher, Carla Antunha Barbosa, dois advogados que frequentavam as aldeias guarani, especialmente as do litoral norte de São Paulo. Então começamos a trabalhar juntos e obtivemos várias decisões a favor dos índios, e os juízes começaram a se sensibilizar com a questão indígena. Nós tivemos um caso muito bonito, aqui em Santo Amaro, em que um juiz, que é hoje desembargador, chamado Antônio Ruli Júnior, tomou uma atitude fantástica. Discutia-se uma questão de uma área indígena em Parelheiros, que era na comarca de Santo Amaro, e o juiz disse: “eu quero conhecer melhor esse assunto, então, eu converto o julgamento em diligência e vou à área, para saber o que está acontecendo”. E nós vimos esta coisa, que para nós era surpreendente, além da imaginação: um juiz andando pela mata, pela trilha, para saber exatamente qual era a situação e poder decidir com justiça. E, afinal, esse juiz acabou decidindo a favor dos índios, não por ser bonzinho, mas porque ele foi lá ver como é que eram as coisas. Então, o que aconteceu, foi que na Constituinte nós já tínhamos várias decisões a favor dos índios, de juízes estaduais paulistas; por isso nós achávamos que a competência deveria ser da justiça estadual sempre que houvesse o questionamento de direitos indígenas. Mas colegas que trabalham no Mato Grosso, no Amazonas, no Pará, no Maranhão, nos alertaram para o fato de que nessas regiões o Judiciário era muito dependente do governador, que, por sua vez, era muito dependente das oligarquias locais, e mostraram que não havia um único caso de decisão favorável ao índio, e sistematicamente restrições muito graves aos direitos indígenas. Então nós nos convencemos de que o melhor seria a competência da Justiça Federal; por isso, a Constituição dá atribuição à Justiça Federal.

Revista – As pessoas realmente precisam saber disso, isto é, que foram esses os pressupostos fáticos que deram ensejo à essa atribuição!

Dr. Dallari – Exatamente, fala-se pouco disso, mas houve uma ampla discussão nesse sentido. Não foi por acaso.

Revista – Quais são as suas principais atividades no momento?

Dr. Dallari – Bom, eu costumo até fazer brincadeira dizendo que eu devo estar decepcionando muito o ex-Presidente Fernando Henrique, porque numa entrevista ele disse que os aposentados são vagabundos… Eu não consigo ser… Eu trabalho mais do que antes da aposentadoria. Atualmente desenvolvo uma atividade muito intensa de palestras, conferências, participação em debates, bancas examinadoras, continuo ser orientador de pós-graduação e gosto imensamente de ter contato sobretudo com estudantes, de maneira que é frequente eu viajar duas vezes por semana, para diferentes pontos do Brasil, para ter contato não só como estudantes, advogados, juízes e promotores, mas também com entidades e grupos comunitários sem especialização jurídica.

Revista – O Senhor, que leciona há tantos anos, consegue identificar modificações no perfil dos estudantes, especialmente os de Direito?

Dr. Dallari – Tem havido oscilações em função da situação nacional, em função da temática nacional e até internacional. Eu não aceito a afirmação de que alguns fazem de que o estudante de hoje está alienado, despolitizado. Isso absolutamente não é verdade! O que acontece é que a maneira de atuar, os instrumentos buscados são diferentes. Eu vou dar um exemplo que é bem concreto. Há poucos anos, quando estavam fazendo emendas constitucionais de encomenda, concentrando poderes demais nas mãos do Presidente da República, restringindo a autonomia do Judiciário e abrindo, também, o Brasil para o capital especulador estrangeiro, eu comecei a sugerir aos estudantes a criação de Núcleos de Defesa da Constituição. Um desse núcleos, que foi criado, é o do Paraná. Este núcleo evoluiu tanto que se transformou na Academia Brasileira de Direito Constitucional, e isto é trabalho dos estudantes… Este núcleo do Paraná até já realizou um congresso internacional e trouxe para o Paraná grandes figuras, como, por exemplo, o Canotilho. Outros grupos foram implantados e o último deles foi na Universidade Estadual de Londrina.

Revista – Para finalizar, que conselhos o Senhor daria àqueles que ensinam, estudam, pesquisam ou se interessam pelo Direito?

Dr. Dalmo – Eu acho que especialmente quem tem alguma vinculação com o Direito deve manter os olhos bem abertos para a realidade social, para a efetivação do Direito. Nós ainda temos um componente positivista muito forte em nossa formação. Isso a gente vê em faculdades de Direito. Os civilistas que me desculpem, eu não sou de forma alguma inimigo de civilistas e reconheço que há civilistas brilhantes, e sensíveis, mas é especialmente na área do Direito Civil que se percebe mais esta presença legalista, formalista e individualista. Assim, não é raro identificar que o professor de Direito Civil entra em sala de aula com o Código na mão e vai lendo o Código para os alunos, vai explicando artigo por artigo, mas na verdade ele está relendo o Código… Como se os alunos fossem analfabetos, porque para ele o Direito é a lei. Então, o que eu gostaria de dizer aos meus colegas é isto: percebam que o Direito é muito mais do que a lei, o Direito está nas relações sociais, o Direito nasce da pessoa humana, para a pessoa humana. Quer dizer, o Direito tem um fulcro basicamente humanista. Ele é uma necessidade humana fundamental. Os seres humanos têm necessidade da convivência, e esta impõe necessidade de regras, que devem ser justas, e o fim do Direito é o ser humano. Então, é necessário que os profissionais que atuam não percam isso de vista e, no momento da aplicação, não se atenham à formalidade estrita da lei. Percebam que muitas vezes a lei é injusta. Mais do que isso: percebam que a correção das injustiças pode ser feita dentro do próprio Direito. Lembrando-se, coisas que muitos não se lembram, que a Constituição é uma lei. Se a lei ordinária leva a uma injustiça, os princípios constitucionais dão o caminho para a correção da injustiça no momento da aplicação. Eu não vou contra a lei, se fizer a adaptação segundo os princípios constitucionais. No caso brasileiro, isto é muito claro, porque a Constituição estabelece expressamente que a dignidade humana é um princípio fundamental.

Revista – É verdade… E agora as pessoas dão maior significação ao princípio da dignidade da pessoa humana, para aquilo que sempre existiu… O Senhor concorda?

Dr. Dallari – Essa pouca importância dada aos princípios é consequência do positivismo, que dizia isto: que o princípio seria mera sugestão, apenas uma norma orientadora, quando na verdade o princípio é uma obrigação constitucional. É norma constitucional de máxima eficácia e, segundo vários autores que têm trabalhado com isso, o princípio tem importância até mais acentuada, na medida em que ele condiciona a aplicação de outras normas. A partir dos princípios, é perfeitamente possível fazer aquilo que deve ser a primeira e constante preocupação de todo profissional do Direito: a realização da justiça.

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