Infraestruturas de Transporte no Brasil

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Infraestrutura de transporte no Brasil

Entrevista com André Nakamura

André Luiz dos Santos Nakamura é Procurador do Estado de São Paulo e defendeu recentemente seu doutorado em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em tese orientada pelo titular em Direito Econômico, Gilberto Bercovici, tendo sido aprovado com louvor e distinção por conta de sua brilhante tese sobre Infraestrutura de transportes como instrumento estatal de promoção do desenvolvimento econômico e social. A banca foi composta por André Ramos Tavares, também titular do Departamento de Direito Econômico da USP, Luis Fernando Massonetto, José Francisco Siqueira Neto e Irene Nohara.

Primeiramente, parabéns pela excelência do trabalho e pela disposição de fazer um teaser para o público do site para esclarecer alguns pontos desse relevante tema.

Poderia nos explicar os principais problemas que a infraestrutura de transportes enfrenta no Brasil, tendo em vista as deficiências que podem ser associadas com seu processo histórico de desenvolvimento?

A.L.S. Nakamura. O Brasil, desde o início de sua história, tem cometido uma sequência de erros na formulação da sua política pública de infraestrutura de transportes. Em razão do seu passado exportador de matérias primas, edificou toda uma infraestrutura de transportes cuja finalidade era apenas escoar a produção destinada à exportação; não foi erigida uma infraestrutura de transportes para interligar o Brasil e atender ao mercado interno. Após a industrialização do Brasil, quase todo o investimento estatal se concentrou no modal rodoviário, com o consequente sucateamento dos modais ferroviário e aquaviário. Consequentemente, o Brasil não tem ferrovias e hidrovias em quantidade relevante para realizar o transporte de pessoas e cargas para médias e longas distancias; o transporte no Brasil, realizado predominantemente por meio do modal rodoviário, é caro, ineficiente e insuficiente, gerando um aumento do custo dos transportes, refletindo na competitividade dos nossos produtos perante o mercado internacional. E hoje não temos espaço fiscal para o investimento em infraestrutura e o modelo de parcerias com a iniciativa privada não tem suprido o necessário investimento estatal.

O que aconteceu com as ferrovias no Brasil desde as primeiras iniciativas de criação até os dias atuais?

A.L.S. Nakamura. O crescimento da malha ferroviária entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX foi significativo; em 1875, tínhamos 1.801 km de ferrovias; em 1895, tínhamos 12.967 km e em 1920, 28.535 km. Entretanto, desde o início, havia vários problemas no setor ferroviário: os traçados das linhas não eram feitos por critérios técnicos, mas políticos, visando à valorização de propriedades lindeiras às ferrovias; não houve uma padronização de bitolas, o que inviabilizou qualquer tentativa de integração entre as malhas ferroviárias. As ferrovias foram abandonadas em razão da expansão do modal rodoviário, fortemente impulsionado pelo poder econômico da indústria automobilística e projetado para ser um substituto das ferrovias. O mercado interno ainda era muito pequeno e quando as exportações começaram a diminuir a partir da década de 30, houve uma diminuição do uso das ferrovias e início dos déficits operacionais; a inexistência de uma produção relevante voltada para o mercado nacional que pudesse ser transportada pelas ferrovias contribuiu para a sua deterioração após a queda do sistema econômico fundado na exportação do café. A partir do momento em que as ferrovias começaram a se tornar um negócio não lucrativo, os concessionários pressionaram o governo para que este assumisse a administração da malha ferroviária por meio de encampações; foi criada a Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA) e a Ferrovia Paulista (FEPASA) que encamparam todo o setor ferroviário e seus déficits. Nos anos 90, num ambiente de grande acolhida do ideal neoliberal, foram privatizadas todas as ferrovias mediante a assinatura de contratos individuais de concessão de serviços e arrendamento de ativos operacionais que previam apenas as metas de aumento de produção e redução de acidentes, sem o do dever de expandir a infraestrutura e prestar o serviço de transporte de pessoas ou de mercadorias para potenciais interessados, o que resultou num uso da infraestrutura ferroviária apenas para fins particulares

Quais os principais problemas derivados do fato de ser o modal rodoviário o protagonista tanto no setor de transporte como no setor de movimentação de passageiros?

A.L.S. Nakamura. Logisticamente, não é adequado o predomínio do modal rodoviário sobre o modal ferroviário e aquaviário. Deveriam as grandes distâncias serem percorridas por meio das ferrovias e/ou hidrovias e as rodovias deveriam ser os elos daquelas às demais localidades. O modal rodoviário resultou num transporte caro e ineficiente, colocando o Brasil em grande desigualdade competitiva com os demais países industrializados. O custo logístico – soma dos gastos com transporte, estoque, armazenagem e serviços administrativos – consome 12,7% do PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil, sendo estimado em R$ 750 bilhões; nos Estados Unidos, o custo logístico corresponde a 7,8% do PIB. A maior parte do custo logístico é formada pelo transporte que equivale a 6,8% do PIB (R$ 401 bilhões). O transporte por caminhões é o mais inadequado também do ponto de vista ambiental, tendo em vista que ocasiona 40 mil metros quadrados de desmatamento por quilômetro, índice é muito superior se comparado aos 38,4 mil metros quadrados de desmatamento por quilômetro de uma ferrovia e zero de uma hidrovia. Ademais, é a modalidade mais poluente, por demandar mais unidades de veículos para o transporte da mesma quantidade de mercadorias, se comparado aos trens e aos barcos. Anoto, contudo, que a predominância do modal rodoviário também é resultado da concentração geográfica dos locais de produção, baixa produtividade e ausência de um mercado interno que demande grandes movimentações de cargas e pessoas para gerar a renda necessária para que os altos custos de implantação de hidrovias e ferrovias fossem amortizáveis.

Quais as vantagens do transporte dutoviário? Qual a dimensão comparativa da malha dutoviária brasileira, em relação a outros países?

A.L.S. Nakamura. O modal dutoviário tem grandes vantagens não encontráveis em outros modais, como grande capacidade, operação ininterrupta, baixos custos variáveis, segurança, confiabilidade, inexistência de embalagens, armazenamentos e fretes de retorno, bem como de congestionamentos ou dificuldades físicas. Nos Estados Unidos, esse modal é o terceiro responsável pelo transporte de cargas, com uma participação em 2010 de 21,5%, o que representa quase 1.573 bilhões de TKUs (tonelada quilômetro útil), contra 3,4% no Brasil, algo em torno de 22 bilhões de TKUs. A malha dutoviária americana alcança mais de 2,6 milhões de quilômetros, dos quais 2,3 milhões são gasodutos, contra apenas 22 mil quilômetros no Brasil – 16º do ranking mundial, atrás de países como Argentina (38 mil) e México (40 mil), entre outros. Os dois maiores sistemas de dutos brasileiros são os controlados pela Transpetro, subsidiária da Petrobrás, com 14 mil quilômetros, e o gasoduto Brasil-Bolívia, operado pela Transportadora Brasileira Gasoduto Brasil-Bolívia (TBG), com 2,6 mil quilômetros em território nacional

Pelo que defendeu no trabalho, o Brasil é um país cortado por inúmeros rios, porém, ainda é pouco aproveitado todo esse potencial hidroviário. Como avalia esse gargalo? Por que falharam os projetos que objetivavam um melhor aproveitamento do transporte aquaviário no Brasil?

A.L.S. Nakamura. Tanto o transporte fluvial como o marítimo foram, ao longo da história do Brasil, relegados a segundo plano, em razão do descaso governamental e do protagonismo do modal rodoviário. Trata-se do modal de transporte mais subdesenvolvido do Brasil, sendo um grande desperdício de um potencial fluvial muito promissor. O transporte fluvial, apesar de ser mais lento que o transporte rodoviário, tem um potencial de cargas muito maior que o realizado por meio de caminhões, considerando-se o volume possível de ser transportado em cada viagem. Entretanto, não houve um investimento prioritário nas hidrovias, em razão do seu maior custo de implantação, se comparado ao modal rodoviário, desconsiderando-se que os custos do transporte hidroviário, tal como o ferroviário, são muito menores, se comparados ao rodoviário. Os portos brasileiros foram abandonados pelo Estado sob o falso pressuposto que se tratava de um assunto de interesse exclusivo dos setores exportadores. A falta de investimentos levou ao sucateamento de toda a infraestrutura portuária brasileira.

Poderia comparar o desenvolvimento da infraestrutura de transportes no Brasil em relação aos Estados Unidos?

A.L.S. Nakamura. Nos Estados Unidos, houve um desenvolvimento por etapas dos modais de transporte. O primeiro modal a receber os investimentos foi o hidroviário; após, foi iniciada a construção da malha ferroviária que conseguiu abranger todo o território americano, com a finalidade de se integrar ao sistema hidroviário e terminais portuários e, por fim, foram implantadas as rodovias, com o objetivo de complementar os modais existentes e com limitações de percursos, para não se tornarem concorrentes das ferrovias. A América do Norte tem uma extensão de norte a sul de 3.985 km. Só a malha ferroviária americana tem uma extensão de 226.612 km e está totalmente integrada entre os portos, pontos de transbordo e conexão de cargas, bem como os principais centros de consumo. A rede hidroviária corta o país de norte a sul (pelo rio Mississipi) ligando o Condado de Clearwater (Minnesota) ao Golfo do México. A participação do transporte rodoviário na matriz de transporte americana é de 26,6%, a ferroviária é de 41,8% e a hidroviária é de 15%.

Nos Estados Unidos a política pública de implantação de infraestrutura de transporte era apenas parte de uma política desenvolvimentista mais ampla. Simplesmente fazer linhas de trem sem que exista atividade econômica que vá demandá-las é o caminho para o fracasso, como mostra a experiência ferroviária brasileira. O modelo de concessão de ferrovias e hidrovias americanas tinha a seguinte configuração: as concessionárias recebiam terras devolutas (homestead laws) como forma de pagamento e eram obrigadas a vendê-las em pequenos lotes; tal operação era fundamental para o projeto ferroviário e hidroviário americano, visto que geravam novos povoados que começavam a desenvolver atividades econômicas que geravam a demanda pelas ferrovias e hidrovias. Dessa forma, a venda dos lotes, além de se constituir em receita para as concessionárias, formavam os povoados que iriam ser os clientes das ferrovias e hidrovias, tornando o empreendimento economicamente viável. A política pública de acesso à terra por meio do Homestead Act de 1862 que legitimou a propriedade de todos os que a cultivassem por mais de cinco anos, estimulando a atividade econômica e a povoação de todo o seu território. Com o povoamento de todo o território, havia a possibilidade de expansão sustentável das ferrovias e hidrovias, em razão do crescimento das atividades econômicas.

O Brasil, diferentemente dos Estados Unidos da América, implantou uma infraestrutura ferroviária para servir aos setores exportadores do café, sem qualquer preocupação em fomentar a atividade econômica em outros locais do território nacional mediante povoação e acesso à terra. Com a crise do setor exportador, nos anos 30, o único cliente das ferrovias deixou de demandá-las, razão pela qual estas entraram em decadência e foram incorporadas pelo Estado em uma grande socialização de prejuízos privados. Como havia (e ainda há) uma grande concentração da produção nacional no sudeste e sul do país, não houve o estímulo para a construção de ferrovias e hidrovias que cortassem todo o território nacional.

Como se dá o financiamento da infraestrutura de transportes nos Estados Unidos?

A.L.S. Nakamura. O financiamento da infraestrutura de transportes nos Estados Unidos da América tem várias fontes. É muito comum a utilização de fundos providos pelo produto da tributação de combustíveis; existem vários fundos de infraestrutura de transportes, por áreas, tais como o Highway Trust Fund (HTF) e o Airport and Airway Trust Fund (AATF). Outra forma muito utilizada para a obtenção de valores para o financiamento da infraestrutura é por meio da emissão de títulos públicos, os denominados project bonds.  Estes podem ser emitidos de forma simples, qual seja, a mera emissão de títulos públicos para o pagamento futuro, bem como de forma garantida, utilizando-se como lastro os valores a serem gerados pelo empreendimento de infraestrutura, como pedágios, ou parte dos valores arrecadados pelos tributos incidentes sobre a venda de combustíveis. Outra forma relevante de financiamento de infraestrutura nos Estados Unidos é a denominada TIFIA – Transportation Infrastructure Finance and Innovation Act. Trata-se de um fundo público, financiado pelos valores do Highway Trust Fund – HTF, que pode financiar parte de projetos de infraestrutura, mediante a garantia de pagamento decorrente da vinculação da receita a ser gerada pelo empreendimento. O TIFIA empresta valores para órgãos públicos, governos locais, empresas privadas da área de transporte e qualquer ente que, efetivamente, atue em projetos de infraestrutura de transportes terrestres. Percebe-se, assim, que o sistema de financiamento de infraestrutura estadunidense é predominantemente estatal, financiado com fundos públicos alimentados pelo produto da arrecadação de tributos incidentes sobre combustíveis, por meio da emissão de títulos públicos destinados à arrecadação de valores para a infraestrutura (project bonds), bem como pela TIFIA que nada mais é do que um financiamento público mediante o uso de recursos do Highway Trust Fund – HTF, em projetos financeiramente viáveis.

Como poderia o Brasil equilibrar os modais de transporte e como esse equilíbrio contribuiria para o desenvolvimento econômico e social?

A.L.S. Nakamura. O equilíbrio entre os modais de transportes passa por vários caminhos. Primeiramente, deve haver a promoção do desenvolvimento social e redução das desigualdades regionais, como forma de expandir as atividades econômicas para todo o território nacional. Havendo uma maior expansão territorial da atividade econômica, haverá demanda para que possam as rodovias e hidrovias serem economicamente viáveis. Os novos investimentos estatais visando à expansão da infraestrutura devem ser concentrados nas hidrovias e ferrovias, sem se descuidar da manutenção da malha rodoviária existente.

A existência de uma infraestrutura de transportes equilibrada e eficiente é um pressuposto necessário ao desenvolvimento nacional. A ausência de uma rede eficiente de transportes é um dos gargalos que impedem o desenvolvimento econômico e social do Brasil. O Brasil, em razão de seu elevado déficit de infraestrutura, tem vários pontos de estrangulamento que o impedem de crescer economicamente. A competividade dos produtos brasileiros é baixa em razão dos altos custos do transporte.

Uma infraestrutura que permita o transporte eficiente é pressuposto para que se iniciem em determinadas localidades atividades econômicas, geração de emprego e investimentos privados, diminuindo os custos de produção, fomentando a abertura de novos postos de trabalho. Em razão da globalização, se um país não tiver infraestrutura, as forças produtivas podem se dirigir para outro país, onde exista uma infraestrutura melhor.

Infraestruturas de transportes permitem um melhor acesso dos alunos aos estabelecimentos de ensino, com consequente redução de faltas de alunos e professores, refletindo nos índices de evasão escolar. Os índices de saúde da população melhoram com uma infraestrutura de transportes adequada, em razão da diminuição da quantidade de acidentes, com quedas significativas nas taxas de mortalidade, melhor acesso aos estabelecimentos de saúde, aumentando a eficiência de políticas públicas preventivas; também, uma rede eficiente de transporte coletivo nas grandes cidades ocasiona melhorias consideráveis nos índices de poluição, com efeitos diretos nos índices de mortes e doenças a ela associadas.

A desigualdade social é diminuída em decorrência da construção de uma infraestrutura de transportes, tendo em vista que as propriedades dos mais pobres se valorizam em razão de uma nova infraestrutura de transportes. Percebe-se que uma infraestrutura de transportes pode melhorar índices de emprego, escolaridade, saúde, bem como diminuir a desigualdade social.

Sua tese é rica em dados empíricos, quais foram aqueles dados que mais te surpreenderam quando da realização da pesquisa? Teve alguma descoberta que te intrigou nesse processo de elaboração da tese?

A.L.S. Nakamura. Tinha a consciência de que a infraestrutura de transportes existente no Brasil era precária, mas não tanto. Segundo o Fórum Econômico Mundial, dentre 137 países avaliados, ocupamos o 73º lugar no item qualidade da Infraestrutura em geral, 103ª na qualidade de rodovias e estradas, 106º lugar em qualidade de portos, 95ª qualidade de infraestrutura aeroportuária, 88º posição na qualidade de ferrovias. Por fim, o Brasil ainda é o 4º País mais corrupto do mundo.

Uma das descobertas que me intrigaram é o fato de que mais de 83% do financiamento da infraestrutura de transportes do Brasil é realizada pelo Estado (em especial pelo BNDES), mesmo com o grande número de concessões e parcerias público privadas que foram realizadas nos últimos anos. Ou seja, praticamente não existe investimento privado em infraestrutura no Brasil e a causa principal são os altos juros da dívida pública brasileira.

Poderia nos sintetizar as propostas para que a infraestrutura de transportes brasileira melhorasse?

A.L.S. Nakamura. Deve haver a instituição imediata de uma política pública de investimentos estatais em infraestrutura que deve ter a mesma prioridade, inclusive na alocação de recursos, que os demais direitos sociais possuem. Hoje não existe espaço para o investimento em infraestrutura; parcela relevante do orçamento público é vinculada a finalidades sociais, como saúde e educação, bem como ao pagamento de servidores públicos e juros da dívida pública. Sem a definição de uma fonte de recursos para a infraestrutura, o Brasil permanecerá como um dos países mais atrasados em qualidade e quantidade de infraestrutura de transportes.

O Brasil precisa rever sua política econômica de juros altos e cortes de investimentos estatais para formação de superávits primários; deve haver a utilização de crédito para o investimento estatal em infraestrutura. A contribuição de melhoria e a desapropriação por zona devem ser utilizadas pelo Estado, visto que podem se apresentar como importantíssimas fontes de recursos para obras de infraestrutura. A corrupção é um ralo por onde escoam vultosas quantias em obras de infraestrutura, razão pela qual deve ser combatida. O planejamento estatal da infraestrutura precisa ser unificado e institucionalizado. E, por fim, dever-se-ia realizar a vinculação das receitas decorrentes dos tributos incidentes sobre combustíveis para um fundo com a finalidade de financiar as obras de infraestrutura de transportes no Brasil.

André Luiz dos Santos Nakamura

Procurador do Estado de São Paulo e Doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

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