É assunto polêmico, na atualidade, a significativa mudança na abrangência do princípio da separação de poderes, diante da tomada de uma postura mais ativa do Poder Judiciário em face da inércia dos demais Poderes em criar condições para a implementação de direitos consagrados na Constituição. Este posicionamento, que em tempos mais remotos já foi combatido e apelidado de “governo dos juízes“, surte efeitos significativos no Supremo Tribunal Federal, que assumiu recentemente no Brasil papel intervencionista em prol da efetivação dos direitos sociais que são garantidos, em termos coletivos, a partir da categoria das políticas públicas.
Note-se o conteúdo das seguintes decisões, amplamente noticiadas: TRF da Primeira Região obriga o Estado de Goiás a implementar projeto de aterro sanitário em Alto Paraíso; Juiz Federal do Trabalho determinou prazo de 120 dias para que o Estado de Sergipe realize concurso público para preenchimento de cargos em todas as unidades de saúde do Estado, sob pena de multa diária de 50 mil reais; Tribunal de Justiça mantém decisão que obriga Município de Aracaju a incluir no orçamento de 2008 previsão para a construção de pelo menos um cemitério público; e STF manteve decisão que obriga o Estado do Tocantins a construir unidades especializadas de internação de adolescentes.
Decisões com esse conteúdo jamais seriam proferidas há décadas atrás, uma vez que o Judiciário se recusaria a entrar na discricionariedade, isto é, na conveniência e oportunidade de atos e omissões dos Poderes verdadeiramente políticos ou governamentais. Governo, em acepção ampla, inclui não apenas o Poder Executivo, mas também o Poder Legislativo, o qual, em regimes democráticos, tem papel fundamental na discussão das grandes linhas das políticas públicas, que são implementadas pelas leis e principalmente pela discussão das dotações orçamentárias.
Também parece que está sendo rompida, pela via da jurisprudência, a resistência que era efetivada pelo argumento da “reserva do possível“. Como a implementação dos direitos de segunda geração, ou seja, dos direitos sociais pelo Poder Público, dá-se mediante o oferecimento de comodidades ou utilidades à coletividade, devido a seu conteúdo de caráter prestacional, eles envolvem na sua grande maioria dispêndio de recursos.
Ora, como pode o Poder Público, que possui receitas finitas, dar conta de um infindável rol de necessidades sociais? Seria o Poder Judiciário a instância mais legítima a fazer a programação dos gastos prioritários? Como fica a democracia se o Poder que deveria se restringir a aplicar a lei aos casos concretos passar a optar pelas políticas públicas mais importantes?
Estas são questões cuja resolução é de difícil equacionamento, mas a jurisprudência vem sinalizando para um posicionamento que afasta o argumento conservador de que enquanto os direitos individuais seriam plenamente justiciáveis, isto é, tuteláveis pela via jurisdicional, os direitos sociais, salvos alguns poucos casos garantidos de forma mais evidente nas leis e na Constituição, não configurariam verdadeiros direitos públicos subjetivos, mas em muitas das hipóteses meras expectativas de direito a depender da decisão política dos demais Poderes.
Nota-se, portanto, que há uma tendência à transposição do argumento conservador quanto à eficácia das normas de caráter programático, especificamente daquelas que veiculam direitos de segunda geração, e esse movimento se desdobra para o mesmo desfecho, pelo menos, em três vertentes pronunciadas:
- nos avanços da hermenêutica jurídica, aplicados ao âmbito do direito constitucional, especialmente no tocante à abordagem dos direitos fundamentais;
- a atualização da teoria do controle dos atos administrativos, no Direito Administrativo; e
- a proliferação das ações coletivas, que possuem tutela mandamental, no âmbito do direito processual.
Com os avanços do pós-positivismo, que foram incorporados de forma mais explícita à hermenêutica constitucional, o Direito como um todo foi arejado a partir da constatação de que o ordenamento não é mais visto como conjunto coeso de regras apto a resolver todos os conflitos de interesses submetidos ao Poder Judiciário, mas que o ordenamento possui princípios e direitos fundamentais que por vezes contemplam conteúdo conflitante, os quais devem ser ponderados a partir do juízo de prudência e da argumentação rumo a um mínimo de consenso, dentro da idéia de Estado Democrático de Direito.
Nesta perspectiva, desenvolveu-se o juízo de razoabilidade e de proporção, ferramenta da razão prática usada para a ponderação de qual o grau de restrição dos direitos fundamentais em face dos objetivos constitucionais impostos por uma Constituição dirigente. O Poder Judiciário não é “a boca da lei“, no sentido de aplicador das decisões já tomadas pelo Legislador, porque ao juiz é conferida enorme responsabilidade na ponderação dos direitos e na efetivação do Estado Democrático de Direito, a partir de princípios constitucionais dotados de objetividade.
A segunda via de efetivação jurisdicional dos direitos sociais ocorre a partir do avanço da teoria do controle dos atos administrativos. Sabe-se que na atualidade a doutrina administrativa mais abalizada promoveu uma relevante revisão no conceito de discricionariedade administrativa. Discricionariedade não significa arbítrio do agente administrativo para a tomada de decisões que se afastam de interesses coletivos. Como a Constituição Federal é a Lei Maior, dotada de força normativa condicionante da legislação infraconstitucional, discute-se também o grau de discricionariedade que possui o Legislador na implementação das políticas públicas, especialmente diante da positivação de princípios como o da eficiência.
Como os princípios são dotados de carga normativa, a partir da visão pós-positivista, a positivação da eficiência pela Emenda Constitucional nº 19/98 gerou também o controle dos meios escolhidos diante das finalidades públicas constitucionais. Assim, tal princípio representa um parâmetro que torna os atos administrativos controláveis, se ineficientes, diante das finalidades objetivadas.
Contudo, nenhuma dessas vias seria sentida de forma tão pronunciada se não tivesse ocorrido verdadeira revolução no âmbito do processo, que ganhou instrumentos de tutela coletiva de caráter pronunciadamente mandamental. São justamente as ações civis públicas que veiculam obrigações de fazer, sob pena de cominação de multa, como, por exemplo, no caso de Aracaju, em que se constatou que a superlotação dos cemitérios públicos ocasionou a proliferação de cemitérios clandestinos na zona de expansão da cidade, provocando graves danos ao meio ambiente e à saúde pública. Diante deste fato obteve-se decisão, confirmada pelo Tribunal de Justiça de Sergipe, na qual não só os cemitérios clandestinos foram interditados, mas também foram exigidas das autoridades públicas as seguintes decisões – eficientes e aptas a tutelar os bens envolvidos: (1) o oferecimento de alternativas de transporte e sepultamento à população afetada, enquanto não houvesse a construção de cemitério público; e (2) a inclusão no orçamento de previsão de construção de, pelo menos um, cemitério público.
Esse movimento é positivo, pois força o Estado a implementar políticas públicas coerentes com os objetivos constitucionais prementes, assim como se deu no Estado de Tocantins, em decisão mantida pelo STF, na qual se obrigou a construção de unidade especializada de internação, em face da prioridade que a Constituição e o Estatuto da Criança e Adolescente – ECA dão às políticas públicas de garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes.
O denominado intervencionismo judiciário não é blindado a críticas, existem mesmo os perigos advindos de tais substituições, contudo, perigo maior, não há como negar, é o de os agentes políticos não implementarem políticas públicas compatíveis com os direitos sociais assegurados na Carta Constitucional, por isso há mais motivos para comemorar do que lamentar o fato de o Poder Judiciário acordar para o papel, conjunto com os demais Poderes ou contra a inércia deles, de realização máxima dos preceitos democráticos e dos direitos fundamentais.
Artigo originalmente publicado no Jornal Carta Forense, de 3 de novembro de 2008.
CITAÇÃO:
DIGITAL: NOHARA, Irene Patrícia. Políticas públicas e discricionariedade administrativa. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=2904.