Regime Diferenciado de Contratação: a “Caixa Preta” dos Jogos Mundiais
12.08.2011 por Irene Nohara471 acessos
Há quatro anos que se sabe que o Brasil irá sediar a Copa e, em 2011, é editada a Medida Provisória nº 527, tendo sido recentemente aprovado o projeto de lei de sua conversão no Congresso Nacional, para, entre outras coisas, instituir um Regime Diferenciado de Contratações – RDC, que está em vias de sanção presidencial.
O regime diferenciado é aplicável exclusivamente para licitações de obras referentes à realização da Copa das Confederações, de 2013, da Copa do Mundo, de 2014, Olimpíadas e Paraolimpíadas, de 2016, e aeroportos de capitais de Estados distantes até 350 km das sedes destes eventos.
O pretexto de relevância e urgência da medida provisória é a proximidade dos jogos mundiais, que serão sediados no Brasil, e a necessidade de adequação da infraestrutura às exigências de entidades internacionais. Segundo o projeto, são objetivos do RDC ampliar a eficiência nas contratações públicas e a competitividade entre os licitantes.
Alega o governo que o RDC é modalidade de contratação de obras e serviços cujo objeto central é tornar o processo mais célere, com menos riscos em relação à qualidade e aos custos do objeto contratado, sendo os riscos compartilhados com a empresa executora. Segundo o discurso oficial, o modelo elevaria a capacidade de acompanhamento dos órgãos de controle interno e externo.
A opção pelo RDC deverá constar expressamente do instrumento convocatório da licitação, para fins de afastar a incidência da Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos). O RDC prevê, ainda, um sistema no qual, em vez de o governo, será a empresa participante da licitação que elaborará os projetos básico e executivo, além de, posteriormente, realizar o objeto do contrato. A Administração Pública ficará tão somente com a atribuição de estruturar um “anteprojeto” que contenha elementos necessários à elaboração da proposta.
Também é previsto um sistema de “orçamento fechado”, no qual o gasto previamente estimado somente será tornado público após a realização da licitação. Na realização do certame apenas os órgãos de controle terão acesso às informações. Segundo alega o governo, a medida previne conluio entre empresas e outras práticas anticoncorrenciais.
Entretanto, conforme bem observou Roberto Gurgel, Procurador-Geral da República, “não há despesa pública protegida por sigilo”. Enquanto o governo deixa nas mãos das empreiteiras o planejamento de seus futuros contratos, a pretexto de viabilizar inovações e soluções criativas, e, em tese, mais baratas; a fragilização da transparência e a ampliação da margem de discricionariedade podem favorecer, em realidade, à concorrência desleal, abrindo mais espaço à corrupção e ao superfaturamento, pois não se pode deixar de considerar que o controle social, feito pelo povo e pela imprensa, é sempre um componente relevante do jogo democrático.
Será que o povo brasileiro gostaria de fato que, a pretexto da proximidade dos eventos esportivos e, sobretudo, diante da inércia do País em planejar e executar de forma organizada, dentro do regramento preexistente, a infraestrutura necessária (tendo em vista todo atraso nas obras licitadas), houvesse a criação, por medida provisória, convertida de maneira célere, de sistema licitatório ad hoc, isto é, só para as obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas?
Se o RDC traz todas as vantagens apontadas, por que ele não foi discutido e aprovado antes, em sede de projeto de lei que alterasse a Lei de Licitações, com o debate dialogado, em sessões públicas nas quais fossem ouvidos especialistas em licitações, órgãos de controle, setores que realizam licitações da Administração Pública, segmentos de arquitetura e engenharia, respeitando-se o tempo necessário para a criação de culturas organizacionais adaptadas às inovações legislativas, em suma, sem tanto atropelo e, mais ainda, de forma genérica, isto é, para toda e qualquer licitação, não só para a Copa ou Olimpíada?
O sigilo antidemocrático e anti-republicano, materializado em mera previsão genérica do “modo de fixação” do valor estimado da contratação, com base em “anteprojeto de engenharia” de cláusulas abertas, viola o princípio licitatório do julgamento objetivo, que garante impessoalidade e competitividade às licitações.
O governo enuncia as seguintes vantagens do RDC: criação de um regime de contratação integrada (turn key), no qual o contratado assume a execução de todas as etapas da obra e os riscos associados, sendo vedado aditivo por falha na elaboração dos projetos e nas etapas de sua execução; possibilidade de prêmios e sanções pecuniárias, para o atendimento de prazos e para a qualidade dos serviços; inversão de fases (o que já é estabelecido em caráter facultativo nas parcerias público-privadas); instituição de fase recursal única (que acontece no pregão); pré-qualificação permanente e sistema de registro de preços de obras e serviços.
Apesar da alegação de impossibilidade da celebração de aditivos na contratação integrada, a Medida Provisória nº 527 prevê as seguintes exceções: para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro decorrente de caso fortuito ou força maior, por necessidade de alteração do projeto ou das especificações para melhor adequação técnica aos objetivos da contratação (por exemplo, a pedido da FIFA e do Comitê Olímpico Internacional) e a pedido da Administração Pública, observados os limites legais.
O acréscimo para melhor adequação técnica aos objetivos da contratação é “diferenciado”. Os demais não são novidade. Não custa refletir que, conforme amplamente divulgado, o primeiro orçamento anunciado a propósito dos Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro, em 2007, foi de 388 milhões de reais, mas os gastos finais alcançaram a cifra total de 3,7 bilhões de reais, ou seja, quase dez vezes mais.
Ademais, não é convincente o argumento de que a União Europeia e os Estados Unidos utilizam tais mecanismos, pois o fato deles utilizarem não é atestado de que o sistema não dê maior margem de subjetivismo. Depois, diante do ranking da Transparência Internacional, enquanto os países da União Europeia e também os Estados Unidos (com a nota 7,1) foram, via de regra, bem pontuados, na percepção geral de corrupção, o Brasil recebeu, em 2010, a nota 3,9 (de zero a dez, sendo as maiores notas atribuídas a países menos corruptos, como Dinamarca, Finlândia e Suécia, que se classificaram acima de 9).
Portanto, em países com percepção generalizada de corrupção, melhor que não se corra o risco da fragilização nos controles, que, no caso do RDC, se dá por meio: (1) da diminuição da transparência; e (2) da falta de critérios claros e objetivos estabelecidos pela Administração Pública para o certame.
Espera-se que essa iniciativa de criar regras ad hoc para licitações de obras da Copa e das Olimpíadas não abra precedente para a flexibilização de regras de licitação em outros tipos de empreendimentos, numa utilização do irrazoável “jeitinho brasileiro”: de criar exceções, baseadas em pseudo-justificativas, que evitam a responsabilidade pela falta de planejamento, o que se deu, no caso concreto, com a arbitrária mudança das regras do jogo no meio da partida.
Independentemente do mau exemplo que qualquer país já possa ter dado em situação semelhante, é imperioso que haja o respeito às regras de um Estado Democrático de Direito, pois não é a primeira vez na história do Brasil que regras ad hoc são criadas no improviso, o que torna o direito imprevisível e, portanto, injusto para a maioria. O povo quer os eventos, mas provavelmente deseja também pagar o quanto eles valem: nem mais, nem menos!
Artigo produzido para a Carta Forense do mês de agosto. Acesse: Irene Nohara | Carta Forense