Direito Administrativo e Economia Política: retrato do divórcio e da consequente miopia jurídica

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O Direito Administrativo brasileiro se desenvolveu acentuadamente a partir da década de 30 no Brasil. Nesta época conturbada houve a transição de uma economia agrária, marca indelével da recém-vivenciada República Velha, para uma economia que se voltava à industrialização e à urbanização.

A Constituição de 1934 foi a primeira do Brasil a incorporar no seu bojo direitos de caráter social. Iniciou-se, portanto, no País, a revisão do modelo liberal de Estado para um paradigma intervencionista e esta mudança acarretou a ampliação da importância do Direito Administrativo, sobretudo por meio dos seguintes institutos: poder de polícia, que se estendia do controle da segurança para os campos da assistência social, higiene, saúde, isto é, para o campo econômico; atos administrativos, que são editados com maior pujança diante do aumento da atividade estatal; e serviços públicos, que começam a ser vistos como novas atribuições estatais.

A partir de então, a disciplina adquire maior autonomia, que no Brasil é associada à influência francesa. O trabalho jurisprudencial do Conselho de Estado, do contencioso administrativo francês criou inúmeros dos institutos do Direito Administrativo e promoveu a sua paulatina diferenciação do direito privado. Tais institutos foram posteriormente sistematizados pela contribuição das doutrinas italiana e alemã.

Com a influência do modelo burocrático de gestão, que foi absorvido pelo DASP, a Administração Pública passa a ser vista como uma organização (Weber) sujeita ao permanente processo de racionalização. Este movimento era inevitável diante da transformação do capitalismo brasileiro, derivado de sua industrialização (tardia, diga-se).

Observa-se, contudo, que a partir da década de 40, ao mesmo tempo em que surgiam no cenário organizacional brasileiro projetos econômicos para um modelo de desenvolvimento do País; lamentavelmente o Direito Administrativo se distanciou de tais debates, tendo em vista a influência da visão de que a política deveria se “divorciar” da chamada Ciência da Administração (como se defendia nos primórdios de desenvolvimento da Administração – Taylor), e, ainda, de que o Judiciário não deveria se imiscuir em decisões governamentais políticas.

Esta última orientação foi positivada nas Leis Maiores, conforme se depreende dos artigos 68, da Constituição de 1934, e 94, da Carta de 1937, que igualmente vedavam ao Poder Judiciário conhecer de “questões exclusivamente políticas”.

Também contribuiu para tal separação, a pretensa cientificização do Direito Administrativo, dentro de um viés positivista permeado pelo cartesianismo, na transformação da discricionariedade em um conceito jurídico onde o administrador, visto como um “aplicador da lei”, não poderia estender seu campo de visão para além dos próprios dispositivos legais, sendo-lhe, de certa forma, impossibilitado perquirir as razões políticas e, consequentemente, jurídicas da existência das regras.

Daí o retrato do lastimável momento de separação entre Direito Administrativo e Economia Política. Contudo, tal “divórcio” é bastante artificial, à medida que o vínculo é indissolúvel. Cada vez que se fala em um novo modelo de política econômica, que não deixa de ser analisado na economia política, os tecnocratas acabam modificando, por projetos de reforma encaminhados ao Legislativo, e por ele aprovados, toda a feição do Direito Administrativo, deixando os juristas do direito público atônitos, diante da miopia forçada por um paradigma de ciência que tirou o “pano de fundo” da contextualização da matéria, analisada de forma fragmentária.

Por outro lado, as medidas transformadoras acabam sendo incompletas, pois o diálogo entre tecnocratas e juristas é somente restabelecido em momentos de crise e reforma – e não como deveria acontecer, isto é, de forma permanente, em todos os canais de interlocução da sociedade, começando pela expressão atenta das universidades –, o que provoca estranhamentos e rejeições recíprocas.

Quando tais rejeições se tornam insuperáveis, surge a questão para o Poder Judiciário decidir, a exemplo do que está acontecendo no julgamento pelo STF das Organizações Sociais, no qual a comunidade jurídica assiste o rascunhar de interpretações sobre o “novo” contexto econômico (ou o velho, com “roupagem” argumentativa pretensamente modernizada, exatamente como acontece, para que não se perca a força imagética da expressão, no ciclo de ‘moda’ retrô em pleno início de século XXI, no qual a indústria do consumo ainda tem ousadia de insinuar o arbitrário sabor de novidade incorporado em um ou outro elemento acessório diferenciado) que legitima as alterações no Direito Administrativo.

Em suma, é imperioso que o vínculo entre Direito Administrativo e Economia Política seja restabelecido, para que a comunidade jurídica possa enxergar com maior clareza o cenário de construção de cada uma das medidas de reforma. Este é um dos caminhos para que seja retomado o senso de orientação perdido, desde meados do século XX, tornando, por conseguinte, seguro o tráfego na rota traçada pela Constituição dirigente de 1988.

Artigo originalmente publicado no Jornal Enfoque Jurídico, de julho de 2011.

CITAÇÃO:

IMPRESSA: NOHARA, Irene Patrícia. Direito Administrativo e Economia Política: retrato do divórcio e da consequente miopia jurídica. Enfoque Jurídico, São Paulo, jul. 2010, p. 8.

PONTO DE VISTA – digital. Disponível em: http://enfoquejuridico.com.br/edicao-5-julho20112

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