Tombamento: relatos de casos curiosos e aspectos jurídicos controvertidos
12.12.2018 por Irene Nohara2939 acessos
Tombamento: relatos de casos curiosos e aspectos jurídicos controvertidos
Entrevista com Daniel Scheiblich Rodrigues
Tombamento é o procedimento administrativo que objetiva inscrever determinado bem, revestido dos requisitos para integrar o patrimônio cultural brasileiro, em livro próprio para efeitos de preservação. O objetivo do tombamento é de evitar a degradação do bem. Trata-se de competência material comum de todos os entes federativos.
Daniel Scheiblich Rodrigues, advogado, mestrando do PPGDPE da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que atualmente é Subsecretário de Assuntos Parlamentares do Estado de São Paulo, mas atuou durante anos na Secretaria da Cultura, tendo concluído sua passagem pela Pasta no cargo de Chefe de Gabinete, concedeu esta rica entrevista ao portal direitoadm.com.br para compartilhar de relatos curiosos e dos aspectos jurídicos controvertidos na prática do tombamento.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à oportunidade e à generosidade de compartilhar de sua experiência em relação ao relato de cases que dizem respeito ao tombamento, para analisarmos nessa entrevista aspectos práticos que nem sempre são devidamente trabalhados na literatura jurídica da área, mas que despertam a curiosidade dos pesquisadores e estudiosos do tema do tombamento.
ENTREVISTA
Em primeiro lugar, quais são os ônus que um tombamento acarreta em relação ao proprietário do bem?
Daniel Scheiblich Rodrigues. Primeiramente, Dr.ª Irene, eu gostaria de agradecer pelo honroso convite para conceder esta entrevista. Sou leitor de suas obras jurídicas e, por isso, como grande admirador de seu trabalho, posso dizer que é uma imensa satisfação poder falar para o público do portal <direitoadm.com.br>, do qual, a propósito, também sou leitor [risos]. Quanto aos ônus que o tombamento traz para os titulares dos bens protegidos, posso afirmar seguramente que são muitos e severos. É uma pena, mas o Brasil é um país sem forte tradição na preservação do patrimônio cultural e tal condição é refletida nos orçamentos públicos. Mesmo numa entidade federativa como o Estado de São Paulo, reconhecida por movimentar os maiores montantes financeiros do país na área cultural, pouca gente sabe que os recursos da Secretaria da Cultura foram fixados na Lei Orçamentária Anual de 2018 em míseros três décimos por cento da receita estatal estimada para o exercício fiscal. Os números já são bastante desanimadores em relação à cultura como um todo, mas, quando se fala especificamente sobre ações de proteção ao patrimônio cultural tombado, as cifras são extremamente alarmantes: para o exercício fiscal de 2018, a Lei Orçamentária Anual destinou algo em torno de cento e vinte e cinco mil reais à unidade gestora responsável pelas despesas da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico. Ou seja, dos quase duzentos e dezessete bilhões de reais que compuseram o orçamento do Estado, pouco mais de cento e vinte e cinco mil reais foram estabelecidos para a Unidade responsável tanto pelas pesquisas que embasam as decisões quanto pela execução dos próprios acórdãos do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, conhecido pelo acrônimo CONDEPHAAT. Por isso, quando se versa sobre os ônus dos titulares dos bens protegidos, pode-se afirmar, no que concerne aos custos de preservação, tanto no que tange às necessidades especiais de manutenção quanto às próprias obras de restauro, que as responsabilidades são integrais. Embora exista um Decreto Estadual do ano de 1979 que assegure aos proprietários hipossuficientes o direito de comunicar ao CONDEPHAAT sua carência de recursos, para que o Conselho determine a execução estatal das obras necessárias, a situação orçamentária da Secretaria da Cultura costuma representar verdadeira cláusula de reserva do possível, fazendo com que, na prática, os particulares fiquem desamparados em relação a qualquer subsídio estatal para a preservação dos bens. Trata-se, portanto, de conjuntura fática em que a pessoa física ou a pessoa jurídica de Direito Privado respondem integralmente pela consecução do interesse coletivo, ainda que não haja amparo jurídico para tal desproporcionalidade.
Há tombamento feito por diversas esferas federativas. Quais são os problemas práticos dessa situação?
Daniel Scheiblich Rodrigues. De fato, há casos de imóveis que figuram como objeto de duplo tombamento, entre os quais podemos citar, no âmbito paulistano, a Casa do Sítio do Tatuapé – sobre a qual recaem tombamentos concomitantes pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo, conhecido pelo acrônimo CONPRESP, e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, conhecido pelo acrônimo IPHAN –, o antigo Instituto de Educação Caetano de Campos, no qual está situada a sede da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo – caso em que há tombamentos coincidentes pelo CONPRESP, e pelo CONDEPHAAT –, e a Estação da Luz – na qual há tombamentos simultâneos pelo CONDEPHAAT e pelo IPHAN. O principal problema da sobreposição de poderes é o risco de decisões contraditórias entre os órgãos competentes dos distintos entes federados. Além disso, ainda que não sejam contraditórias as decisões prolatadas por autoridades investidas em distintos poderes, há também o risco de hipertrofiar de tal modo os trâmites burocráticos, decorrentes de procedimentos administrativos simultâneos e independentes, que as prerrogativas do titular do bem se tornem excessivamente limitadas, numa situação que se aproxima perigosamente da desapropriação indireta. Haja vista que os bens tombados pelo IPHAN são também tombados pelo CONDEPHAAT, em ato administrativo de ofício, a possibilidade de hipertrofia é enorme.
A que o Poder Público deve ficar atento, quando há a intenção de tombar um bem?
Daniel Scheiblich Rodrigues. Sempre que o Poder Público visar ao tombamento de um bem, a primeira medida que deverá adotar é a sua proteção sumária. Isso se deve ao fato de que, em decorrência das restrições a que se sujeitam os titulares de bens que venham a ser tombados, mormente na hipótese de imóveis, existe o risco de que o proprietário de uma edificação de valor cultural prefira destruí-la a ter de suportar o ônus de conservá-la sob o regime do tombamento. Por isso, no Estado de São Paulo, a mera instauração de procedimento administrativo para o estudo de eventual tombamento já é o suficiente para tutelar a inalterabilidade do bem, cuja modificação poderá causar a incriminação do respectivo agente por dano a coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico, conforme tipificado no Código Penal. Repare que as legislações estadual, de 1979, e municipal, de 1985, adotaram a mesma linha de tombamento provisório estabelecida pela legislação federal, de 1937, ou seja, aplica-se o regime de proteção sumária.
Existem limitações práticas em relação ao que pode ser alegado pelo particular dentro de um processo de tombamento? Já teve contato com algum contraditório exercido em que o particular reverteu a intenção de tombar seu bem? Qual a situação mais comum na prática?
Daniel Scheiblich Rodrigues. Embora a legislação não delimite expressamente o que pode ser alegado, o procedimento de tombamento deverá ter como objeto bens de valor arqueológico, artístico, bibliográfico, etnográfico, histórico, paisagístico ou turístico, seja por seu interesse público ambiental ou cultural, de modo que o particular poderá contestar a existência de tal valor. Haja vista que qualquer bem é vinculado a determinado contexto natural ou momento histórico, a prova da falta de valor é excepcionalmente difícil, quase leonina. Em suma, o que deve ser avaliado é se o ônus da preservação é proporcional em relação à memorabilidade do bem, pois a violação à proporcionalidade – que integra a principiologia constitucional – feriria não apenas o direito do proprietário do bem, mas também o interesse da coletividade, uma vez que o aparato estatal não deve ser manejado sem respaldo do interesse público. A propósito, eu jamais tomei ciência de um caso em que a contestação ou de recurso administrativos do titular do bem, fundamentados na carência de valor, que tenha sido responsável pela descontinuidade ou reversão do tombamento. Vale lembrar que a carência de valor difere da perda de materialidade do bem, pois, nesta segunda hipótese, o que se alega é que, embora outrora o bem tornasse palpável um fato ou contexto memorável, sua integridade material foi prejudicada de tal sorte que o bem não tem mais o condão de expressar o valor de outrora.
Além de imóveis, existem tombamento de bens móveis? Poderia nos dar exemplos de tombamentos relevantes de bens móveis?
Daniel Scheiblich Rodrigues. Os exemplos mais importantes de tombamentos de bens móveis são aqueles incidentes sobre acervos inteiros, casos em que todo um cabedal constituinte de um mesmo contexto é tombado em conjunto. Lembro-me que são tombados, pelo CONDEPHAAT, os acervos de diversos museus paulistas, assim como da Capela do Hospital da Clínicas. Contudo, o exemplo com o qual tenho mais familiaridade é o do acervo do Palácio dos Bandeirantes, onde trabalho e tenho o prazer de ver diariamente as obras; neste caso, o tombamento foi realizado pelo IPHAN.
Houve no Estado de São Paulo toda uma discussão sobre a questão do tombamento da imagem de Nossa Senhora de Aparecida, dado que ela tinha de se deslocar em procissões, o que poderia gerar um desgaste ou degradação. Como foi resolvida no Estado essa questão?
Daniel Scheiblich Rodrigues. O caso da imagem de Nossa Senhora de Aparecida exigiu bastante cautela porque se trata de um bem que – como você bem disse – exige deslocamento, de modo que reconhecíamos haver restrições à própria imposição de limites ao uso do bem. Em novembro de 2014, eu tive contato profundo com os autos do procedimento administrativo que levou ao tombamento da imagem em âmbito paulista e me lembro de que a Arquidiocese de Aparecida, representada pelo Dom Raymundo Damasceno Assis, protocolizou uma contestação que nos deixou bastante pensativos. À época, o CONDEPHAAT estudava o tombamento não apenas da imagem de Nossa Senhora de Aparecida, mas também do porto onde ela havia sido encontrada, além da basílica e do seminário missionário locais, embora a recomendação imediata do colegiado se referisse apenas ao tombamento da imagem, tendo os autos sido desmembrados para a continuidade, em apartado, do estudo referente aos outros itens. Evidentemente, o tombamento implicaria em cuidados restritivos para a realização de peregrinações que envolvessem o deslocamento da imagem; mesmo assim, o Grupo de Estudos de Inventário e Reconhecimento do Patrimônio Cultural e Natural, a Consultoria Jurídica e a Assessoria Técnica do Gabinete da Secretaria da Cultura – da qual eu fazia parte, sendo-me atribuída a tramitação do caso – se alinharam em relação à viabilidade jurídica e aos imperativos de interesse coletivo relativos ao tombamento. A conclusão a que chegamos era a de que o tombamento jamais poderia vedar a exposição e a fruição do bem, pois estas eram suas principais finalidades; contudo, ao CONDEPHAAT incumbiria estabelecer tecnicamente as condições adequadas para seu uso litúrgico, que não deveria ser restritivo a ponto de comprometer o direito constitucional à liberdade religiosa, mas também não poderia deixar desprotegido o caráter cultural daquela obra artesanal de madeira, que tem como acessórios o manto confeccionado para a festa de coroação realizada no início do século XX, bem como a própria coroa, doada por ninguém menos que a Princesa Isabel. Eu mesmo preparei para o Secretário da Cultura, Marcelo Mattos Araujo, a decisão que conheceu da contestação subscrita pelo Dom Raymundo Damasceno Assis, mas lhe negou provimento. Aproximadamente um mês depois, finalizamos o procedimento administrativo e publicamos a decisão de tombamento na véspera do Ano Novo. Apesar das dificuldades que a preservação de um bem móvel tombado traga para seu titular, entendo que, desde que não haja desapropriação indireta ou qualquer outra perpetração desproporcionalmente restritiva, é possível conciliar a realização teleológica do bem e o interesse social existente em sua preservação. Sei que uma das medidas adotadas pela Igreja Católica, para assegurar a preservação daquele patrimônio cultural, é a utilização de uma réplica em determinados atos públicos, limitando o uso do bem original a determinadas ocasiões de menor risco à sua integridade. Parece-me uma solução adequada do ponto de vista do Direito Cultural.
O §1º do art. 216 da Constituição dá o fundamento jurídico constitucional do tombamento, enfatizando que a proteção do patrimônio cultural brasileiro também pode ser feita por meio de inventários, registros, vigilância e pela desapropriação. Poderia explicar como se dão os inventários, qual a diferença entre registro e tombamento e em que hipótese a desapropriação pode ser utilizada para efeitos de promoção e proteção? Existem outras formas de acautelamento e preservação, conforme induz a interpretação desse dispositivo constitucional?
Daniel Scheiblich Rodrigues. Os artigos 215 e 216 da Constituição Federal são trunfos do Estado Democrático de Direito, que fortalece o exercício da cidadania por meio da valorização da identidade cultural do povo brasileiro. Em 2012, a Emenda Constitucional n.º 71 incluiu ainda o artigo 216-A na Seção da Constituição que trata da cultura nacional, especificamente para tratar do Sistema Nacional de Cultura. A Constituição do Estado de São Paulo também aborda com profundidade a temática da cultura nos artigos 259 e seguintes. Por esse motivo, podemos dizer que o ordenamento jurídico brasileiro normatizou a ideia de cidadania cultural. Os inventários, então, são instrumentos que permitem a catalogação, a descrição e até mesmo a interpretação de modos de vida ou formatações culturais relevantes para exteriorização da identidade de determinado nicho social. Se bem utilizados, os inventários podem fornecer os elementos necessários para o bom direcionamento das políticas culturais. O IPHAN desenvolve um trabalho importantíssimo de inventariança nacional, compilado no Inventário Nacional de Referências Culturais. No Estado de São Paulo, a Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico, conhecida pela sigla UPPH, dispõe de um centro permanente de estudos voltados para a inventariança e para o reconhecimento do patrimônio cultural paulista. Diferentemente do tombamento, o inventário não impõe restrições ao direito de propriedade, mesmo quando trata de bens materiais. O registro, por sua vez, limita-se à proteção conferida a bens imateriais, mas, por ser equivalente ao tombamento, pode implicar – pelo menos em tese – em restrições a certas atividades. A desapropriação é uma das medidas permitidas pela Constituição, com vistas à preservação de bens de reconhecido valor cultural, embora, para evitar novos custos de manutenção, a Administração Pública raramente se valha desta prerrogativa. Para falar a verdade, não me recordo de caso algum em que o Poder Público tenha motivado o ato desapropriatório na necessidade de preservação do patrimônio cultural. Quanto ao acautelamento, a legislação federal de proteção ao patrimônio cultural prevê que, em se tratando de bens móveis tombados, a Administração Pública pode, no exercício da autoexecutoriedade, promover o sequestro das coisas que se tentarem exportar sem a devida autorização. As legislações municipais, às quais incumbe regulamentar a concessão de licenças e alvarás que envolvam obras de Engenharia, também podem prever casos de embargo, quando se detectarem prejuízos ao patrimônio cultural. Apesar disso, em geral, as medidas de acautelamento costumam ser adotadas judicialmente, pelo bom trabalho que o Ministério Público desenvolve nesta seara.
Em diversos casos de tombamento, há uma série de restrições nas reformas e restauros. No entanto, os próprios órgãos públicos entram em conflito quanto às exigências legais. Por exemplo, acessibilidade, determinações de segurança do Corpo de Bombeiros etc. Poderia nos relatar algumas situações similares e como equacionar essas questões?
Daniel Scheiblich Rodrigues. Sim, é muito comum que o Corpo de Bombeiros determine adequações que conflitem com as diretrizes de restauro existentes para imóveis tombados. Nestes casos, ponderando-se as regras de segurança que visam a garantir a vida e a integridade física das pessoas com as posturas de restauro que visam a preservar as características originais do bem, há de se dar preferência para a segurança. O mesmo vale para os casos de normas de acessibilidade, que visam a assegurar o direito de igualdade. Em geral, pelo menos no Estado de São Paulo, a Administração Pública tem conseguido obter, junto aos órgãos de controle, maiores prazos para a adaptação dos imóveis preservados, de modo que se possa realizar um projeto de restauro que consiga viabilizar as condições de intervenção de Engenharia menos impactantes no que concerne às características culturais mais elementares da edificação. E isso exige estudo, exige tempo. As Promotorias de Justiça do Patrimônio Público e Social e do Meio Ambiente, por exemplo, são bastante sensíveis à necessidade de dilação de prazos nos inquéritos civis, de modo que, sem prejuízo da garantia de segurança e de acessibilidade para os usuários, não haja descaracterização do bem protegido, o que lesaria o patrimônio cultural.
Como você interpreta essa tentativa de alguns movimentos no sentido de tombar o mico-leão-dourado ou o fundo do mar? Haveria uma distorção? É adequado usar do tombamento para fins ambientais?
Daniel Scheiblich Rodrigues. Esses casos são interessantes porque, à época em que foram suscitados em sessões do CONDEPHAAT, o colegiado era presidido pela grande ambientalista Fernanda Falbo Bandeira de Mello, com quem eu convivi durante anos na área cultural e por quem eu tinha grande respeito – ela faleceu em 2017. Entendo que a pauta ambiental é extremamente importante não apenas para o país, mas também para a humanidade, e compreendo a necessidade de se adotarem medidas urgentes para que ainda possamos reverter alguns dos males que temos infligido ao planeta, mas há mecanismos jurídicos adequados, no âmbito do Direito Ambiental, para que tutelemos a fauna e o ecossistema. O Direito Cultural, quando abraça o patrimônio natural como objeto de sua proteção, o faz para fins paisagísticos e turísticos, o que justifica o tombamento da Serra do Mar, por exemplo. Logo, por mais virtude que haja na tentativa de ampliar a tutela ao mico-leão-dourado e do fundo do mar, há um desvio de finalidade quando se busca uma medida exclusivamente ambiental por meio do Direito Cultural. Além disso, como bem pontuou à época a advogada Marília Alves Barbour, que coordenava a UPPH, a fiscalização do fundo do mar parece estar fora do campo funcional daquele órgão.
Há exemplos, no Estado de São Paulo, de pessoas de baixa renda proprietários de imóveis tombados? Como proceder diante do custo de manter um imóvel tombado?
Daniel Scheiblich Rodrigues. Sim, temos exemplos de imóveis residenciais que estão sob a titularidade ou a posse de famílias hipossuficientes, como é o caso dos conjuntos arquitetônicos da Vila Itororó e da Vila Maria Zélia, no Município de São Paulo. Às vezes, não se trata de famílias cuja condição financeira se enquadre tecnicamente em patamares de pobreza, mas sim de rendas familiares incapazes de fazer frente aos elevados preços de uma obra de restauração. De qualquer modo, os proprietários ou possuidores sempre podem noticiar as necessidades de reparo ao CONDEPHAAT, que tem o poder de determinar a execução das obras de Engenharia. Ainda que o orçamento estadual não possibilite a imediata contratação dos serviços de restauro, o particular terá cumprido seu dever de adotar as medidas cabíveis, dentro de suas possibilidades, para impedir a deterioração do bem. Aliás, em se tratando de hipossuficiente, a notificação ao CONDEPHAAT é um dever, pois a inércia causadora de deterioração pode configurar responsabilização penal por deterioração culposa, uma vez que, embora o Código Penal não preveja a culpa como elemento subjetivo de lesão ao patrimônio cultural, a legislação penal especial que trata de crimes contra o meio ambiente tipifica a hipótese culposa de deterioração de bem protegido por ato administrativo.
Em uma visão de futuro, tendo em vista os escassos recursos que os órgãos públicos dispõem para zelar e cuidar de todo patrimônio cultural brasileiro, há sugestões de adaptação do tombamento para que ele seja mais efetivo e equilibrado do ponto de vista das exigências feitas e da viabilidade de que todos os envolvidos sejam contemplados com deveres razoáveis e exequíveis?
Daniel Scheiblich Rodrigues. As técnicas de restauro exigem know-how bastante qualificado, que, a depender das especificações históricas e estéticas do bem, pode ser dominado por um número muito restrito de profissionais. Isso invariavelmente encarece a prestação dos serviços. Porém, uma solução seria a adoção de fundos especiais de despesas voltados para o patrimônio público, os quais ainda são um tema de discussão tímida no Brasil. Se os fundos existissem em todos os entes federados que ativamente promovem tombamento e sua lei instituidora contasse com disposições generosas em relação à origem de suas receitas, eles poderiam ser um excelente instrumento para a atuação estatal em casos em que a hipossuficiência do titular ou possuidor de bem tombado é combinada com a insuficiência do orçamento público anual. Na verdade, os fundos são assunto de pouca repercussão porque o brasileiro ainda não compreende bem o poder da cultura para o exercício da cidadania plena – não é verdade? Estou certo de que, se o Poder Público se valesse do fomento estatal para fomentar significativamente a cidadania cultural – e não apenas as artes propriamente ditas – muitos dos problemas decorrentes da falta de autocompreensão de nosso povo seriam solucionados.
Muitíssimo obrigada Daniel Scheiblich Rodrigues pela rica e aprofundada discussão sobre tombamento, ficamos muito contentes com sua disponibilidade em compartilhar com o público do portal direitoadm de seus conhecimentos e relatar casos e experiências que fazem parte de nossa história e das formas de preservação do rico patrimônio cultural paulista e brasileiro!
Daniel Scheiblich Rodrigues
Graduado em Direito, pós-graduado em Direito Processual Civil e mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado, Subsecretário de Assuntos Parlamentares do Estado de São Paulo; membro titular do Comitê de Elegibilidade e Aconselhamento da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano S/A (EMPLASA). No Estado de São Paulo, foi Vice-Presidente da Comissão de Avaliação da Execução dos Contratos de Gestão das Organizações Sociais da Área da Cultura e Chefe de Gabinete da Secretaria da Cultura