Principais cases de reparação empresarial em Direitos Humanos e Diversidade

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Entrevista: Principais cases de reparação empresarial em Direitos Humanos e Diversidade

Entrevista

Flávio de Leão Bastos Pereira

Sabe-se que, assim como as pessoas físicas, também as pessoas jurídicas podem errar e cometer injustiças em suas condutas. As organizações, enquanto células da sociedade contemporânea, também possuem responsabilidades, submetendo-se a missões, visões e valores. Assim, empresas nacionais, transnacionais e multinacionais submetem-se a missões, têm sua visão de futuro e devem se comprometer a transmitir valores alinhados com suas políticas e objetivos, sendo tais diretrizes parâmetros que compõem a sua identidade.

O compliance é, portanto, uma dimensão de indagação que transcende a mera conformidade da atuação empresarial com as regras jurídicas do Estado de Direito, sendo perquirida a adequação da atuação empresarial, e não apenas de sua fala, com uma cultura de integridade, patamar associado à uma dimensão ética.

Do ponto de vista pragmático, também o compliance aborda gestão de riscos, pois o patrimônio imaterial, as práticas, a imagem das organizações, de cujo valor depende da legitimidade alcançada socialmente, estão vinculados ao fato delas não serem envolvidas em escândalos e incidentes que maculem sua reputação. As empresas gozam, portanto, de reputação, sendo importante assim que tenham políticas no sentido de proteger, prontamente remediar e reparar quaisquer incidentes que venham causar e que, por consequência, maculem sua imagem social e seu valor no mercado.

Atualmente, como costuma dizer o professor Flávio de Leão Bastos Pereira, nosso entrevistado, não são apenas os balanços anuais que retratam se de fato determinada companhia é “bem-sucedida”, mas é também a sua capacidade de reagir e de metabolizar seus erros no passado, fazer o mea culpa, reparar e demonstrar para a sociedade que suas práticas refletem ações compatíveis com novos valores!

Neste sentido, o site direitoadm tem a honra de entrevistar um dos maiores entusiastas e conhecedores do tema de reparação de violações em direitos humanos pelas empresas, que acaba de escrever, em coautoria com Rodrigo Bordalo, a obra de Compliance em Direitos Humanos, Diversidade e Ambiental, em que o Dr. Flávio de Leão foi responsável pela parte referente aos Direitos Humanos e da Diversidade, sendo que, na entrevista, ele irá nos relatar os mais impactantes cases de violação de direitos humanos e de reparação.

Dr. Flávio de Leão: uma honra tê-lo na coleção e no portal para essa aguardada entrevista. Inicialmente, antes da exposição dos cases, gostaríamos de disponibilizar ao público um relato de seu envolvimento entusiasmado com a elaboração da parte da obra que trata do compliance em Direitos Humanos e da Diversidade. Fale-nos aqui sobre essa sua experiência de escrever o livro e das descobertas que foi encontrando em suas pesquisas durante o processo de elaboração da obra, que a transformam esse livro nesta riqueza de informações e análises!

Desde minha pré-adolescência as grandes passagens da história violadora dos direitos humanos ocupavam meus pensamentos. Desde a Antiguidade, passando especialmente pelos piores genocídios do século XX, tais fatos jamais deixaram de ser objeto de minhas preocupações. Sempre foi algo natural.

Em situações festivas nas quais a abundância é a regra para boa parte das famílias, eu pensava naqueles que estavam nas ruas, invisíveis e violados…

Adquiri minha primeira obra sobre temáticas humanitárias aos 7 ou 8 anos de idade, numa livraria Siciliano, na Av. Paulista. O curioso é que tal obra foi útil em meu doutoramento, anos depois. Assim, sempre estudei e me dediquei, já graduado, aos Direitos Humanos.

Atuei no serviço público (Tribunal de Contas do Estado, MP, como Assistente de Desembargador no TJ; cheguei a atuar como Conselheiro Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, por pouco tempo). Até que fui para a advocacia corporativa por alguns anos. Neste momento passei a refletir sobre a relação entre o mundo empresarial e os direitos humanos.

Com as importantes oportunidades que a Universidade Presbiteriana Mackenzie sempre me ofertou, possibilitando que me dedicasse à pesquisa, deu-se uma explosão de ideias e conexões.

Outro fator importante diz respeito ao momento histórico no qual nos encontramos: não se pode mais esperar dos Estados posturas protetivas e efetivas que jamais serão ideais. A sociedade civil organizada e o setor produtivo têm grande responsabilidade no respeito, na proteção e na remediação aos direitos humanos violados.

Tratamos de um aspecto civilizacional, não político-partidário. No final, todos os ramos do direito convergem para os direitos humanos. Não há sentido, tampouco legitimidade, em atuações de profissionais do Direito que não tenham, ainda que indiretamente, o direito ao bem-estar e à felicidade que guarnece a esfera de cada indivíduo e de cada coletividade, tornando-se inadmissível qualquer espécie de discriminação.

As empresas que não compreenderem tal mudança; os indivíduos que não se desconstruírem para que se tornem melhores, estarão fora do jogo!

Vamos então começar por um tema forte, no que concerne às violações aos Direitos Humanos, e bastante em voga: marcas famosas que colaboraram com o nazismo, como: Hugo Boss, Volkswagen, Krupp, IG Farben, a Dehomag, subsidiária da IBM, e a fornecedora de cristais de Zykon-B para câmaras de gás Degussa. Como, exatamente, foi a colaboração destas empresas e também como tais companhias, que gozam de ampla projeção global, se desvincularam desse passado e conseguiram reparar e mudar suas práticas no presente?

Esta é uma questão muito importante não apenas do ponto de vista histórico, mas também sob a perspectiva da memória e verdade históricas que marcam bem a necessidade de que as corporações não pautem suas relações com Estados e governos apenas para alcançarem seus objetivos econômicos mas, principalmente, que resgatem a razão de ser das empresas, que é concretizar e/ou promover a evolução das sociedades não apenas sob o aspecto material, mas também moral, espiritual e ético.

Lembremos que as empresas geram novos comportamentos. A visão predominante desde a primeira fase da revolução industrial que concerne à alta produtividade por meio de princípios fordistas não deve ser dissociada da valorização do trabalho humano, do respeito à diversidade e da consideração às culturas presentes nos mercados nos quais estão presentes operações e se estabelecem atividades.

Mas, historicamente, regimes totalitários, ditatoriais e autoritários contam com o suporte relevante do setor econômico, tal como exemplificado na própria questão. Não sem razão, dentre os 12 julgamentos realizados entre 1946-1949 pelo Tribunal Militar de Nuremberg (não confundir com o primeiro e mais famoso dos julgamentos, da cúpula nazista – Tribunal Militar Internacional de Nuremberg), entre 8 de dezembro de 1947 e 31 de julho de 1948, foi realizado o “julgamento dos industriais”, no qual a responsabilidade das corporações foi amplamente debatida no sentido de aferir a imputabilidade penal de seus diretores, gerentes etc…

Foi o chamado “Caso 10” e que debateu o papel colaboracionista da Hugo Boss e das indústrias Krupp, por  exemplo. As penas variaram da absolvição até a condenação de executivos à pena de prisão por doze anos, muitos liberados antes de completarem todo o período de condenação. Tribunais posteriores, até os dias atuais, também debateram o tema.

Referidas corporações, anos atrás, ao final da década de 90, financiaram estudos com o objetivo de apurar e destacar seus papeis durante o Holocausto. A Volkswagen, por exemplo, usou trabalhos forçados extraídos de campos de concentração e a Hugo Boss foi responsável por confeccionar os uniformes do exército alemão na Segunda Guerra.

Tais empresas pagaram compensações às vítimas decorrentes de suas obscuras colaborações por meio de um Fundo estimado em cerca de um bilhão e setecentos milhões de dólares americanos,  Erinnerung, Verantwortung, Zukunft (Lembrança, Responsabilidade e Futuro), visando indenizar escravos, trabalhadores forçados e demais vítimas do nazismo, pelas empresas alemãs.

Também companhias não-alemãs, por suas subsidiárias, inclusive originárias de países aliados, colaboraram com o regime nazista até o final da guerra.

As empresas alemãs atuaram como parte da máquina de guerra nazista e, também, como engrenagem indispensável ao Holocausto, com plantas e fábricas montadas ao lado, ou no interior, dos campos de concentração e de extermínios da Europa (como Monowitz, por exemplo, ao lado de Aushwitz-Birkenau, na cidade polonesa de Oswiecin).

Nos anos 90, o Juiz distrital da Corte Federal de Nova Jersey (EUA), Dickinson R. Debevoise, indeferiu quatro ações coletivas promovidas em território norte-americano, indenizatórias, contra as empresas Degussa e Siemens, sob o argumento de que seriam ações ordinárias não cabíveis, uma vez que a natureza da colaboração do setor empresarial com o regime genocida deslocava o tratamento de suas responsabilidades como questão entre os Estados e governos, não como uma ação privada comum, conforme relata Raul Hilberg naquela que considero das mais importantes obras sobre o Holocausto, pioneira no mundo sobre o Holocausto, com edição brasileira de 2016 (mais de 50 anos após seu lançamento no exterior) pela Editora Amarilys, intitulada “A Destruição dos Judeus Europeus” (https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,livro-mostra-que-holocausto-foi-realizado-com-metodo-e-clareza-de-objetivos,10000067302).

Referida decisão, além dos julgamentos dos industriais, em Nuremberg, desloca o debate sobre o papel das corporações nas sociedades para a seara do Direito Internacional e do Direito Público em geral. Hoje, Cortes Supremas de outros países discutem a destinação das normas de jus cogens e de direito internacional humanitário também às corporações.

Na obra Negocios Son Negocios – Los Empresarios que Financiaron el Ascenso de Hitler al Poder, o autor e premiado historiador Daniel Muchnik menciona o registro que Hitler consignou quando escrevia seu livro Mein Kampf (1924) que “…as pessoas não morrerão por seus negócios, mas por suas ideias”.

Importante que se abstraia o que é essencial na compreensão dos tópicos acima e da importante questão posta: a necessidade de que as empresas assumam sua responsabilidade na eliminação as rupturas com os direitos humanos e para efetivarem a difícil tarefa de viabilizarem novas culturas corporativas, a partir de cada funcionário, colaboradora/or, em todos os níveis hierárquicos, diretivos e acionários.

Eric Voegelin (1901-1985), filósofo alemão, após seu retorno do exilio forçado nos EUA, já que em 1938, viu-se obrigado a abandonar Viena após a apreensão pela GESTAPO da 1ª edição de sua obra As Religiões Políticas, tendo lecionado nas Universidades de Louisiana, Stanford e Ludwig-Maximilian (Munique), proferiu algumas conferências realizadas nas Universidades alemãs no ano de 1964 sobre o “problema experiencial alemão central”. Em suas reflexões, afirmou (e escreveu) que “a responsabilidade humana começa na consciência individual…a liberdade individual permite escolher entre agir de modo moral ou imoral”.

Daí a importância relacionada à responsabilidade das corporações em forjar novos graus de conscientização entre seus funcionários e na sua relação com a sociedade onde mantenha operações, que não mais podem ser consideradas legítimas se inspiradas apenas pela busca do lucro, a qualquer custo. Esta visão está superada e coloca em risco a existência do planeta e da própria humanidade.

Somente a partir de intensos treinamentos, debates críticos etc. é que se poderá consolidar culturas corporativas de respeito aos direitos humanos e à diversidade, ou seja, pela compreensão dos valores civilizatórios perenes normalmente afrontados e relegados pela passagem do tempo.

Interessante também empresas que procuram incutir nos seus funcionários as lições que aprenderam. Você poderia nos relatar algum caso de empresa na Alemanha que adota alguma política de treinamento para transmitir novos valores?

Sim. As empresas alemãs reconhecem seu papel sombrio durante o III Reich e atualmente exigem de seus funcionários, trainees e estagiários o estudo e compreensão do passado. A Cia. Siemens, por exemplo, mantém programa pelo qual seus/suas trainees obrigatoriamente passam dias no Memorial e centro de pesquisas de Ravensbrück, na Alemanha, onde a empresa manteve fábrica com trabalho escravo das prisioneiras daquele campo (Ravensbrück era um campo feminino, objeto de muitas pesquisas sobre o Holocausto a partir de um recorte de gênero).

Segundo a própria empresa, “…o fato de a Siemens permitir que as pessoas trabalhassem contra a sua vontade durante uma época em que a empresa era parte integrante da economia do tempo de guerra do regime nacional-socialista é algo que a atual alta administração e os funcionários da empresa lamentam profundamente. […] Como expressão dessa responsabilidade, a empresa hoje trabalha em estreita colaboração com o Memorial de Ravensbrück, onde todos os anos estagiários da Siemens são enviados para visitar os vários memoriais e morar no local por uma semana enquanto conversam com historiadores e testemunhas oculares. Isso gerou um diálogo muito importante que oferece aos jovens uma visão direta deste tempo histórico. Além disso, apoiamos projetos selecionados que servem para chegar a um acordo e documentar os eventos que ocorreram naquela época. Essas atividades são pequenas, mas importantes contribuições para garantir que nossa história, mesmo durante esse período difícil, continue viva e possa servir como um lembrete para o futuro.”.         

Em nosso novo livro sobre Compliance e Direitos Humanos, Diversidade e Ambiental, tal projeto é pormenorizado no capítulo referente às empresas e a memória histórica.

Link: https://www.livrariart.com.br/colecao-compliance-compliance-em-direitos-humanos-diversidade-e-ambiental/p

As empresas multinacionais chegam a ser mais fortes do que Estados nacionais! Daí a importância da responsabilidade social de autorregulação em compliance. Poderia nos fornecer, com base nos dados levantados na obra, o quanto esse segmento “trans” e multinacional é relevante em termos comparativos com os Estados nacionais?

Cabe destacar que empresas transnacionais e multinacionais diferem-se entre si principalmente no que tange à fonte de seu capital: se detido por um único Estado (transnacionais), ou se detido por dois ou mais Estados (multinacionais).

A capacidade lucrativa dos grandes grupos se tornou ilimitada. Considerando seu poder econômico, passaram a influenciar e mesmo a cooptar os Estados, ditando suas políticas públicas, sua legislação etc.

Segundo resultados de pesquisas realizadas pela organização Global Justice Now (2016/2017), dentre 100 das principais potências econômicas no mundo, 69 são corporações, superando países e seus PIBs, como  Espanha, Austrália, Países Baixos, Coreia do Sul, México, Suécia, Rússia e Bélgica, apenas para citarmos alguns.

Portanto, não se pode mais ter a expectativa única de que os Estados manterão e exercerão sua responsabilidade de proteção aos direitos humanos. As empresas tornaram-se potenciais atores da ruptura com os direitos humanos; porém, podem assumir o papel relevante e de modo eficiente, para a promoção do respeito e defesa dos referidos direitos.

Isso nem chega a ser tão recente assim, não é? Pois antes mesmo de casos recentes, como o da Royal Dutch Shell, que gostaríamos que relatasse, podemos pensar na VOC e nas companhias responsáveis por agir, em conjunto com os Estados nacionais europeus, no processo de colonização e do quanto elas foram fortes e impactantes a intensificar as agruras e violências ocorridas no passado?

Realmente. Desde o período das colonizações, empresas e Estados colonizadores atuaram em conjunto sob referido sistema econômico que funcionava às custas das vidas, culturas, identidades, crenças e intenso sofrimento de milhões de pessoas.

Novamente voltamos ao mesmo ponto: um sistema econômico pautando a opressão dos povos dos demais continentes fora do eixo EUA-Europa. Lembremos que as dinâmicas colonizadoras que conduziram à marcha para o Oeste dos EUA e também do Brasil, exterminando povos indígenas nas Américas e possibilitando a exploração das riquezas e terras espoliadas, são as mesmas dinâmicas verificadas pela invasão nazifascista rumo ao Leste da Europa, com escravização, extermínios, explorações de terras e riquezas. O expansionismo de empresas multinacionais e dos mercados, durante o século XX, já era caracterizado.

Conforme a historiadora e pesquisadora britânica Carroll P. Kakel III, em sua obra The American West and the Nazi East: a comparative and interpretive perspective (Londres: Palgrave Macmillan, 2013), que cito em meu primeiro livro sobre o genocídio dos povos indígenas, estes se opunham a tal avanço colonialista, assim como os povos do Leste da Europa ao avanço nazista, ambos alvos de extermínios inspirados por objetivos econômicos, racialistas e discriminatórios.

Os objetivos colonizadores, em ambos os períodos históricos, eram a exploração de riquezas minerais e da mão-de-obra escrava, tal como citamos acima, conforme praticado nos campos de concentração, restando comprovado que as condições predominantes no presente dependem diretamente da compreensão do passado.

O problema é que atualmente existem no mundo em torno de 40 milhões de pessoas escravizadas; mais de 150 milhões de crianças estão sujeitas ao trabalho infantil; dentre 24,9 milhões de pessoas sob trabalho forçado, 16 milhões são exploradas no setor privado, segundo as Nações Unidas (Link), apenas para citarmos alguns dados.

Assim, a compreensão sobre os sentidos e valores que despontam do entendimento do passado muito colabora para a percepção clara sobre o papel do setor privado, corporativo, no combate a tais males e rupturas. Não sem razão, a ONU vem se movimentando de modo contundente, especialmente a partir da década de 90, para consolidar de modo definitivo a perspectiva horizontal dos direitos humanos.

A opressão, a violência, a escravização brutal e o extermínio em face dos povos originários de distintos continentes são decorrências típicas dos processos de expansão dos regimes de produção capitalistas ao longo da história moderna e também contemporânea, fato que demonstra como as temáticas expansão econômica transnacional e violação dos direitos humanos, são historicamente interconectadas.

O caso da Royal Dutch Shell é marcante, pois a empresa foi acusada de colaborar com regime ditatorial no continente africano, no Estado nigeriano.

Uma das etnias do país, o povo Ogoni, populações indígenas que habitam o sudeste do país há mais de 500 anos, enfrentou impactos devastadores por conta das atividades da companhia extrativista, desde a década de 50. Foram alvos de violência e discriminações de toda a espécie pelos governos da época, que favoreciam as atividades nada sustentáveis da empresa. A região onde sempre viveram, rica do ponto de vista ecológico, foi devastada pelas extrações de petróleo pela empresa, com comprometimento dos reservatórios de água potável, poluição do ar e ameaças ao modo de vida dos Ogonis.

Fonte: Anistia Internacional

Durante a década de 90, vários massacres e prisões foram cometidos pelos sucessivos governos militares da Nigéria, com apoio e por solicitação da empresa. Suas terras chegaram a ser declaradas “zonas militares”.

Em 1996 foi proposta a primeira medida judicial em território norte-americano. Tal processo objetivou responsabilizar a Shell pela execução de nove Ogonis e outros abusos. Foi distribuído a um tribunal federal dos Estados Unidos da América com base no denominado Alien Tort Statute (Estatuto do Alienígena ou do Estrangeiro, por uma tradução mais consentânea com nosso linguajar técnico) que, em tese, permitiria processar empresas por violações ocorridas no exterior, conforme explico em nossa nova obra.

Em 1998 é proferida decisão sobre o caso pela qual decidiu-se que seria mais apropriado que o caso fosse distribuído no Reino Unido, portanto, indeferido; contudo, referida decisão registra que a Shell é sujeita à jurisdição norte-americana.

Recurso foi apresentado e no ano de 2002 a Suprema Corte dos EUA decidiu que o caso poderia prosseguir nos EUA. Em 2005, um juiz federal nigeriano decidiu que a queima de gás no Delta do Níger violava os direitos à vida, à saúde e à dignidade dos povos da região.

Em junho de 2009, uma ação promovida pela família de Ken Saro-Wiwa contra a empresa Shell Oil em maio de 1999, acusada de causar devastação nas terras Ogonis, bem como do assassinato, tortura e outros abusos sobre vários Ogonis, foi concluída com um acordo pelo qual a empresa pagou acordo de US $ 15,5 milhões, feito que correu perante o Tribunal Distrital para o Distrito Sul de Nova York.

Em junho de 2017, novo processo é iniciado contra a empresa, desta vez perante um tribunal holandês, visando a investigação acerca do envolvimento potencial da Shell na execução dos conhecidos nove Ogonis, condenados pelo Estado nigeriano. Apesar dos apelos internacionais para que se poupasse a vida dos nove Ogonis que combatiam as atividades da Shell Oil em suas terras, eles foram executados.

A Suprema Corte do Reino Unido decidiu em fevereiro de 2021 que, apesar da Shell operar na Nigéria por meio de subsidiária não-inglesa, tampouco registrada no Reino Unido, seria admissível um processo contra a companhia, por duas comunidades nigerianas brutalizadas durante décadas de operações da Shell, vale dizer, desde 1958.

Ações de ordem políticas vêm sendo adotadas na Nigéria, como por exemplo o pedido formal de aplicação de sanções contra a Shell, apresentado à Câmara dos Representantes da Nigéria, em face de dois vazamentos de petróleo mais recentes e sem que um adequado processo de limpeza e recuperação fosse implantado pela corporação.

Bonavides costuma falar das multinacionais como movimentos neocoloniais. Muitas empresas se alimentam da colaboração com golpes de Estado que suscitam direta ou indiretamente, prejudicando por vezes populações locais. Há exemplos de cases analisados atualmente nas Supremas Cortes internacionais que indagam da responsabilidade de tais organizações? Tecnicamente, como vendo sendo encarado esse movimento nos Direitos Humanos do prisma internacional e nacional?

Casos existem, sim. Aliás, recentemente, a empresa Volkswagen reconheceu sua responsabilidade histórica na colaboração com a ditadura, mediante Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com o Ministério Público Federal, com o Ministério Público Estadual e com o acompanhamento de importantes entidades, como por exemplo o Núcleo da Memória Política de São Paulo, que desenvolve importantes trabalhos e projetos para a preservação da memória política no Brasil, especialmente em relação à ditadura civil-militar instaurada pelo golpe de Estado de 1964.

Em 14 de março de 2021, em cumprimento às cláusulas do citado TAC, a Volkswagen publicou nos periódicos O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo informe publicitário pelo qual “lamenta profundamente as violações de Direitos Humanos ocorridas” durante a ditadura militar, de 1964 a 1985, “e se solidariza por eventuais episódios que envolveram seus ex-empregados e seus familiares, em total desacordo com os valores da empresa“.

A VW foi a primeira empresa, no Brasil, a enfrentar seu passado de colaboração com um regime violador dos direitos humanos, dentre outras que atuaram da mesma forma, não sem antes também efetuar, por meio do trabalho de historiador, o detalhamento de suas condutas, enquanto empresa, à época do regime de exceção.

Na obra coletiva “Empresariado e Ditadura no Brasil”, lançada em 2020 e organizada por Pedro Henrique Pedreira Campos, Rafael Vaz da Motta Brandão e Renato Luís do Couto Neto e Lemos, pela Editora Consequencia, Ary Cesar Minella escreve como “…a relação de empresas específicas com o golpe e o período de ditadura civil-militar ocorreu de diversas maneiras: apoio ideológico, político, financeiro, material e incluiu, em alguns casos, o apoio à prisão e tortura.” (p.9).

Note-se que, em face dos exemplos históricos acima mencionados, a imagem e reputação das corporações fica comprometida, por décadas a fio. Atualmente, o mundo corporativo, via de regra, começa aos poucos a perceber a importância da democracia e da diversidade, fatores inclusive que, quando efetivamente estimulados, geram, comprovadamente, maior lucratividade em suas atividades, sendo certo que tal movimento não é linear e se mostra diretamente relacionado ao grau evolutivo de uma sociedade.

No que tange aos aspectos técnicos sobre a crescente movimentação no sentido da consolidação da conscientização da importância do respeito, da proteção e da remediação por danos impostos aos direitos humanos, pelas corporações, cada vez mais se desenvolvem as bases teóricas, normativas e também de soft-law incidentes na matéria, como os princípios orientadores para empresas e direitos humanos da ONU; as diretrizes do Pacto Global e também para as Empresas Multinacionais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), além dos objetivos do desenvolvimento sustentável. No Brasil, não podemos esquecer, ainda, das Diretrizes Nacionais Sobre Empresas e Direitos Humanos (Decreto n° 9.571, de 21 de novembro de 2018).

Como pensar em articular um sistema de compliance em Direitos Humanos para que as organizações na globalização causem mais benefícios do que malefícios, sobretudo à população local? Existem cases de práticas bem-sucedidas e que servem de exemplo neste sentido: de respeito e promoção dos valores associados aos Direitos Humanos?

Parece-me que a mudança da cultura corporativa é essencial, com o rompimento de paradigmas e abandono de preconceitos. As empresas tornam-se parceiras e protagonistas da preservação dos direitos humanos a partir da mudança pessoal de cada funcionário, colaborador, fornecedor, parceiro comercial etc., ou seja, mediante a introjeção sobre a necessidade de respeito aos demais profissionais da companhia, dos parceiros e de toda a própria sociedade.

Nova cultura, novos valores. É preciso clara visão sobre o relacionamento com a sociedade palco das operações empresariais, bem como acerca de seus valores e modos de vida. Cuidamos aqui de um entendimento de cunho sociológico e antropológico, dentre outros.

As ações bem-sucedidas dependem do caso concreto. Gosto muito do exemplo fornecido pela premiada estilista mexicana Carla Fernandez, cujo Ateliê respeita integralmente o trabalho de costura das mulheres indígenas do México, bem como por trabalhar a partir de visões inclusivas em seus desfiles. Como a indústria da moda, além de ser a maior do mundo, influencia comportamentos, identidades e culturas, ela possui grande capacidade de tornar visível e, portanto, menos vulneráveis, referidas parcelas das populações.

Fonte: Freepik

Agora vamos para pauta igualmente bombástica: em pleno ano de repercussão internacional do movimento Black Lives Matter, da necessidade de reflexão sobre a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, ainda, nas vésperas do dia da consciência negra, aqui no Brasil: um cliente negro (João Alberto Freitas) é espancado até a morte por um serviço terceirizado de segurança contratado pela rede Carrefour de Supermercados, em Porto Alegre… Como o compliance da diversidade e o due diligence auxiliam a remediar e evitar a ocorrência de casos como esse?

Este caso, apesar de não ser o primeiro que envolve violência e discriminação contra cidadãs/ãos pretos e pardos no Brasil, tornou-se um referencial por ocorrer no mesmo ano da comoção global no caso George Floyd, além do cruel assassinato ter sido integralmente gravado, transmitido em horário nobre e chocar o Brasil.

Afinal, como pode uma rede multinacional, líder no Brasil, manter parceria comercial com uma fornecedora de serviços de segurança com profissionais tão despreparados? Como a rede mantem funcionários que permaneceram tão insensíveis diante de cenas tão desumanas?

Ainda, associado à constatação de casos anteriores que também envolveram situações de flagrante desrespeito aos direitos humanos e de crueldade e desrespeito aos animais (casos célebres…), demonstram a necessidade de urgente e constante treinamento de seus funcionários e prestadores de serviços. Para tais circunstâncias, urgem um intenso programa de implantação de compliance em direitos humanos, com treinamentos por etapas, capazes de gerar sensibilização e capacidade de raciocínio crítico.

A auditoria em direitos humanos (human rights due diligence) é essencial no caso, na medida em que traduz a ideia de realização de uma ampla auditoria para que se tenha uma clara visão dos gaps da companhia quanto à formação de seus funcionários e fornecedores; importante fator, nesta seara, diz respeito ao fato de que a due diligence deve ter a participação dos grupos sociais impactados pela atividade empresarial.

Também treinamentos constantes e periódicos sobre racismo estrutural; misoginia; homotransfobia etc., devem ser realizados.

Fonte: como posicionar sua marca – issoai.com.br

Aliás, no tocante à população negra, há atualmente os algoritmos racistas. Vimos que esse ponto também foi enfocado na obra. Como se dá essa lamentável dinâmica?

Os algoritmos resultam de regras previamente elaboradas para viabilizar a execução de tarefas. Neste sentido, são diretrizes previamente estabelecidas, com maior ou menor complexidade, e que permitem ao sistema realizar a função de modo automático, porém sem consciência sobre a operação realizada.

Neste sentido, por exemplo, quando efetivamos uma busca na internet usando como termo “obras jurídicas sobre direitos humanos”, os algoritmos previamente estabelecidos e dispostos na base de dados permitirão o resultado da pesquisa conforme tenha reconhecido e associado os termos digitados com as referências presentes em sua base de dados previamente alimentada.

Assim, quando constatado que buscas realizadas por usuários na rede mundial de computadores e nos respectivos sites de grandes empresas de tecnologia apresentarão como resultado padrões relacionados a homens brancos, ou a cabelos lisos de mulheres caucasianas, sempre que o termo de busca implicar ideias positivas, conectadas à beleza, ao paradigma de um homem bem-sucedido, ocorrendo o inverso quando as mencionadas buscas têm por referências o universo relacionado à negritude, à população LGBTQIA+, ao universo feminino, especialmente diante das intersecções discriminatórias (a mulher preta ou parda, por exemplo), novamente voltamos ao ponto central: o ser-humano. Os algoritmos naturalizam as violações e projetam o mundo sob o ponto de vista dos profissionais criadores de tais linguagens.

Homens pretos ou pardos são reiteradamente presos, sem qualquer motivação, apenas por conta de reconhecimentos faciais realizados por meio de sistemas e câmeras digitais que normalmente associam pessoas “foragidas”, com pessoas pretas ou pardas. Na verdade, temos nesta situação informações e bancos de dados previamente desenvolvidos e implantados que projetam o racismo estrutural inerente às estruturas sociais brasileiras e que condicionam o comportamento, consciente ou não, dos profissionais que desenvolvem tais linguagens para a Inteligência Artificial e para o mundo digital.

Aqui também o treinamento crítico e reflexivo em direitos humanos para tais profissionais revela-se conditio sine qua non para a redução de riscos para a empresa e para os consumidores de seus serviços, além dos terceiros atingidos por eventuais algoritmos discriminatórios. 

Fonte: Freepik

Como as simbologias estéticas e lúdicas podem auxiliar ou prejudicar a autoestima de uma população? Vimos que esse caso tão emblemático das bonecas de outras etnias e cores é analisado também e gostaríamos de saber mais sobre.

Da mesma forma que os algoritmos racistas refletem estruturas relacionais conscientes e inconscientes da sociedade dominante, desenvolvida sobre padrões eurocêntricos e hegemônicos, também a historicamente a fabricação de brinquedos, dentre eles as tradicionais bonecas, em seus diversos modelos, sempre seguiu apenas um padrão étnico e socioeconômico: o europeu de classe média e de classe alta.

Como resultado, sociedades multiétnicas, multiculturais e assimétricas como a brasileiras sempre mantiveram milhares de crianças de distintos grupos raciais, étnicos, nacionais etc. e por várias gerações, sem se reconhecerem nos referidos brinquedos, instrumentos sabidamente indispensáveis ao perfeito e adequado desenvolvimentos dos infantes, com alta-estima em ordem e com a clara percepção de pertencimento, elemento vital para a geração de pessoas participativas e conscientes de seus direitos.

Assim, alguns movimentos foram criados em diversos países, entre eles o toys like me (https://www.toylikeme.org/), dos Estados Unidos, que buscou demonstrar às crianças portadoras de deficiência que elas são iguais a todas as demais crianças, com direitos igualmente garantidos e com plenas capacidades.

No Brasil, as indústrias de bonecas seguiram a experiencia e passaram a produzir bonecas pretas, pardas, cadeirantes, cegas etc. (https://economia.uol.com.br/empreendedorismo/noticias/redacao/2016/09/30/nada-de-barbie-empresa-faz-bonecas-de-pano-negras-cegas-e-cadeirantes.htm). Grande avanço, mas ainda há mais para se avançar.

Novamente aqui, a transformação, a meu ver, parte do espectro individual, do profissional. Os empreendedores e profissionais do mercado precisam acreditar na inclusão. A partir daí, a empresa transforma sua cultura por não mais admitir a intolerância. É um movimento crescente e movido por “sinapses”: sinapses humanistas.

Fonte: https://www.toylikeme.org

Por fim, não poderíamos deixar de perguntar: assim como os negros, também as mulheres sofrem exclusões sociais e preconceitos numa sociedade que além do racismo estrutural também é bastante misógina e significativamente machista. Como as empresas podem se articular para contribuir para que haja uma cultura de igualdade e de respeito a diversidade e como isso ajuda a própria empresa?

O Brasil é o quinto pais do mundo que mais mata mulheres, dentre um universo de 195 países que existem no mundo, 193 membros das Nações Unidas, exceto pelo Estado do Vaticano e a autoridade Palestina, observadores.

Ora, resta evidente que temos também aqui uma questão estrutural e que é refletida pela sociedade, com comportamentos e linguagens machistas com as quais nos acostumamos desde a mais tenra idade.

Tal cenário implica em que também nossas instituições apresentam claras características machistas (além de racistas), como se pode observar pelos casos de violência contra a mulher que, uma vez objeto de processos judiciais, por exemplo, geram novos danos existenciais às mulheres já antes vitimadas.

Há pesquisas que tenho acompanhado de perto que revelam que a violência institucional contra a mulher, não raro, geram danos ainda maiores se comparados com os danos impostos pelos agressores, tal como revelado por especialistas, como no caso das pesquisas desenvolvidas pela Professora Artenira Silva, uma das grandes autoridades na temática, atualmente no Brasil.

Neste sentido, as empresas, compostas por profissionais que crescem e se desenvolvem sob tal cenário, não ficariam imunes ao machismo estrutural e que se revela em posturas individuais danosas, como o assédio sexual e moral, além da imposição social da dupla jornada de trabalho e com salários inferiores para funções idênticas àquelas desenvolvidas pelos homens, o que demonstra o aspecto estrutural deste mal.

Aliás, a falta de representatividade feminina nas esferas de Poder também confirma o que digo acima. Se pensarmos nas chamadas overlapping discriminations (discriminações sobrepostas), como no caso da mulher preta ou parda, além da indígena, a situação é ainda pior.

Este tema precisa ser discutido nas empresas, para que condições de ascensão na carreira, para promoções etc. sejam viabilizadas sob condições inclusivas; que as empresas mantenham canais seguros de denúncias contra os citados assédios etc.

Mas, acima de tudo, nós, homens, precisamos definitivamente nos desconstruir: precisamos abandonar o velho e ultrapassado homem machista e misógino, nutrindo o respeito devido às mulheres, seres-humanos que são e com infinita capacidade para melhorar um mundo que, há milênios, sob domínio masculino, falhou em muitos aspectos, exatamente por impor uma ininterrupta opressão às mulheres por meio de distintos sistemas (políticos, religiosos, econômicos, sociais, culturais etc.).

Cuida-se, aqui, novamente da compreensão de que as corporações, no âmbito de sua grande capacidade de transformação econômica, o SEJAM também sob o prisma social e humano!

Voltando às ideias do pensador Eric Voegler, “…uma sociedade é um ser humano ‘em ponto grande’ e a sua qualidade está determinada pelo caráter moral de seus membros…”. As corporações não são imunes a esta verdade.

Dr. Flávio: muito obrigada! Foi um enorme prazer entrevistá-lo e temos certeza que essa obra será um grande sucesso editorial e, principalmente, uma contribuição muito rica para a construção de um mundo melhor: mais includente, protetor, solidário e, portanto, respeitador dos Direitos Humanos!

Flávio de Leão Bastos Pereira

Advogado, Pós Doutorando pela Università Mediterranea di Reggio Calabria, Itália (2021), com bolsa integral. Professor e Pesquisador com Doutorado e Mestrado em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Formação em pós-graduação (especialização) em Telecomunicações (GVLaw, 2002); Direitos Humanos (Pablo de Olavide, 2006); Genocide and Human Rights Studies (University of Toronto, 2014). Professor Universitário desde 1996. Artigos publicados. Conferencista no Brasil e no exterior. Team-coordinator e Coach em competições internacionais (Nuremberg Moot Court, Nuremberg/Alemanha - 2015;2016 e 2017). Juiz da Inter-American Moot Court na American University, Washington/USA, 2017).

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