BOLA DE NEVE NA SPPREV: reflexões sobre a adoção do regime celetista em entidade de direito público

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Entrevista com Igor Volpato Bedone

O entrevistado é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP, graduado pela Faculdade de Direito da USP, foi Procurador do Estado de São Paulo entre 2006 e 2016 e trabalhou na consultoria jurídica da São Paulo Previdência (SPPREV).

O objetivo da presente entrevista é obter o relato de quem lidou diretamente com as vicissitudes concretas, isto é, os efeitos cascatas (BOLA DE NEVE) derivados da contratação celetista em escala numa autarquia.

A partir da Emenda Constitucional nº 19/98 houve a tentativa de extinção do regime jurídico único, abrindo-se à Administração Direta, autárquica e fundacional a contratação de celetistas em escala. A SPPREV foi criada para a gestão do RPPS do Estado de São Paulo (LCE nº 1010/2007) praticamente quando do questionamento da abrangência dessa escolha, sendo que a ADI 2135 resgatou com efeitos ex nunc o regime único.

Atualmente, há muitas divergências quanto ao sentido do regime único, se seria homogêneo estatutário ou celetista, ou se admitiria para atribuições de apoio também o celetista, sendo em regra estatutário para funções que demandam manejo de poderes. No entanto, muitas entidades de direito público, assim como Municípios, continuam com a situação indefinida, o que gera muitos problemas jurídicos práticos, derivados da adoção do regime celetista, dado que quando se exercita função tipicamente estatal, como é a função de gerir a previdência dos servidores estaduais, haveria a necessidade da estabilidade, entre outras coisas.

Assim, a justiça do trabalho acaba aumentando a BOLA DE NEVE, reconhecendo um regime híbrido que gera uma desarmonia em relação às categorias base: servidor público estatutário e empregado público.

ENTREVISTA

Dr. Igor Volpato Bedone: primeiramente, muito obrigada pela disposição em esclarecer para o público do site direitoadm essa questão, da BOLA DE NEVE que a adoção do regime celetista para entidades que manejam atribuições tipicamente estatais provoca. Antes de tratarmos especificamente do tema, seria interessante traçar um panorama geral do RPPS estadual, explicando como a SPPREV se insere nesse contexto.

Igor V. Bedone. É uma imensa honra participar dessa entrevista e agradeço o generoso convite. Os entes federativos que possuem Regime Próprio de Previdência Social, historicamente, não organizaram entidades unificadas para gerir seus respectivos regimes e, quando o fizeram, tiveram por objetivo administrar somente o pagamento de pensões, mas não de aposentadorias ou demais benefícios previdenciários. Por muito tempo, enxergou-se a aposentadoria não como um benefício previdenciário, mas como uma mera extensão da atividade, tanto que o pagamento dos inativos continuava sendo feito pelo mesmo órgão que pagava a remuneração do servidor na atividade. Não havia folha de pagamento de inativos rodada por um órgão gestor de regime previdenciário.

O sistema assim configurado, além de impossibilitar a gestão do passivo previdenciário, ainda tinha a desvantagem de impedir a uniformização de critérios para gestão de aposentadorias e demais benefícios previdenciários, à medida que cada Secretaria e ente da Administração Indireta acabava utilizando critérios distintos.

Com os monstruosos déficits gerados pelos Regimes Próprios de Previdência Social, um dos instrumentos imaginados para a melhor gestão do sistema foi a criação de entidades previdenciárias gestoras em cada ente federativo.  Tal instrumento veio a lume com a EC nº 41/2003, que inseriu o §20 no artigo 40, da Constituição Federal.

O recado do Constituinte é o seguinte: cabe ao órgão gestor único, concentradamente, cuidar de tudo aquilo que é relativo ao Regime Próprio. Assim, se garante uniformidade e eficiência na gestão do Regime e, por consequência, melhor gasto público.

No âmbito do Estado de São Paulo, o cumprimento da exortação do constituinte derivado veio com a edição da Lei Complementar Estadual nº 1.010/2007, que criou a São Paulo Previdência – SPPrev. A São Paulo Previdência foi criada, portanto, dentro de tal determinação constitucional, com a missão de gerir todo o Regime Próprio de Previdência do Estado de São Paulo.

Anteriormente à criação da autarquia de previdência, a gestão do sistema previdenciário estava espalhada por duas autarquias que cuidavam de pensões e, no que tange aos inativos, pelas Secretarias da Administração Direta, pelas autarquias do Estado, pelas universidades, sem contar o Tribunal de Contas, Ministério Público, Poder Judiciário e Defensoria Pública.

As autarquias que cuidavam das pensões eram o Instituto de Previdência do Estado de São Paulo – IPESP e a Caixa Beneficente da Polícia Militar – CBPM.

O antigo IPESP, até a criação da São Paulo Previdência, era responsável não só pelo pagamento de pensões aos beneficiários de servidores, como também geria diversas carteiras de previdência de classes profissionais não correspondentes a titulares de cargos efetivos, dentre as quais se destacam a Carteira dos Advogados do Estado de São Paulo e a Carteira dos Serventuários de Cartórios Extrajudiciais do Estado de São Paulo. Além disso, o Instituto mantinha uma carteira predial, mediante a qual eram financiados imóveis aos servidores estaduais em condições mais favoráveis do que aquelas encontradas no mercado de varejo bancário.

A Caixa Beneficente da Polícia Militar, por sua vez, além de gerir o pagamento de pensões a dependentes de militares também era responsável por sua assistência médico-hospitalar e odontológica, feita mediante convênio com entidade privada. Para a manutenção dessa atividade, era cobrada uma contribuição compulsória no valor de 2% dos vencimentos do militar, que foi declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Com a determinação do constituinte derivado de criar um órgão gestor único do Regime Próprio de Previdência Social e com a proscrição expressa de criação de mais de um Regime Próprio em cada ente federativo, a São Paulo Previdência não poderia, por um lado, gerir carteiras de previdência cujos integrantes não fossem titulares de cargo efetivo e, por outro lado, não poderia desenvolver nenhuma atividade que não fosse a gestão previdenciária.

Nesse sentido, o antigo Instituto de Previdência do Estado de São Paulo tornou-se o Instituto de Pagamentos Especiais do Estado de São Paulo – IPESP, conforme determinação do artigo 9º, da Lei Estadual nº 14.016/2010, para gerir as Carteira dos Advogados do Estado de São Paulo e a Carteira dos Serventuários de Cartórios Extrajudiciais do Estado de São Paulo, que entraram em liquidação, bem como para gerir os antigos financiamentos imobiliários feitos pela Carteira Predial. A Caixa Beneficente da Polícia Militar- CBPM, por sua vez, ficou com a missão exclusiva de cuidar da assistência médica e odontológica dos dependentes de militares, deixando de realizar qualquer atividade de caráter previdenciário.

A São Paulo Previdência, portanto, assumiu o pagamento das pensões que, anteriormente, era dividido entre as duas autarquias referidas e, além disso, assumiu a concessão, manutenção e pagamento de aposentadoria dos entes da Administração Direta, autárquica e fundacional. Esse é o teor do artigo 3º, da Lei Complementar Estadual nº 1.010/2007.

Inserimos o caso da SPPREV por conta de sua rica experiência, mas isso se aplica também a Municipalidades e outros entes públicos que adotem o regime celetista. Gostaríamos, então, de saber quais os principais problemas derivados dessa situação?

Igor V. Bedone. Na lei de instituição da autarquia (LCE nº 1010/2007), foi previsto o regime jurídico celetista para admissão de pessoal (artigo 21). O principal problema reside no fato de que a SPPREV exercer uma função estatal típica – gestão da previdência de servidores – sendo que, muitas vezes, ela é absolutamente incompatível com o regime celetista. Ademais, com a Súmula do TST conferindo estabilidade a tais servidores, a demissão só pode ocorrer por justa causa, e as hipóteses previstas na CLT não são adequadas para uma relação entre o Estado e seu colaborador (empregado público que, na verdade, deveria ser estatutário). O processo para demitir esse servidor acaba sendo híbrido, regido uma parte pela CLT e outra pela legislação de processo administrativo, criando imensas dificuldades práticas e insegurança jurídica. No âmbito estadual não se sabe nem quem toca o PAD (a própria autarquia ou a Procuradoria de Procedimentos Disciplinares)… Ademais, os postos comissionados da autarquia – empregos públicos comissionados – não raro são preenchidos por servidores da Administração Direta (Secretaria da Educação, Fazenda, Polícia Militar) e há grande dúvida quanto ao seu enquadramento previdenciário (se mantém a filiação com o RPPS do Estado ou se precisam filiar-se ao RGPS por assumirem posto regido pela CLT). Outra dificuldade refere-se às parcelas remuneratórias, pois a CLT tem como pressuposto uma relação contratual, o que não ocorre na relação Estado-empregado público, havendo dúvidas também quanto à aplicabilidade de convenções coletivas, ao fazimento de horas-extras, compensação de horas, jornada de trabalho e muitos outros temas.

Como o senhor enxerga as decisões da Justiça do Trabalho para adaptar essa situação à realidade. Foram boas, necessárias ou adaptações que provocam efeitos prejudiciais em cascata?

Igor V. Bedone. De um lado, ao garantir a estabilidade aos empregados públicos de autarquias (Súmula nº 390, TST), a Justiça do Trabalho dá a eles uma proteção necessária para o desempenho do mister público. Não há como conceber posições estatais típicas – fiscais de renda, procuradores jurídicos, professores, gestores de previdência – sem a proteção estatutária, como ocorre na SPPREV e em milhares de municípios brasileiros. Por outro lado, a Justiça do Trabalho concede parcelas remuneratórias típicas do servidor estatutário que não deveriam ser concedida ao celetista, tanto por incompatibilidade entre os regimes, como também por ausência de previsão desse tipo de gasto, com impacto significativo nas contas públicas.

Há, então, soluções que geram ainda mais problemas, poderia nos exemplificar quais?

Igor V. Bedone.  É o caso de concessão de ATS (quinquênios e sexta-parte), que a Constituição do Estado prevê somente ao estatutário. Erroneamente, também se dá ao empregado público licença-prêmio e, recentemente, chegou-se ao absurdo de conceder tempo de licença-gestante do regime estatutário para empregadas públicas. É o que, na gíria dos advogados públicos, se chama de “melhor dos dois mundos”.

Qual a situação mais angustiante e que mais lhe deixou perplexo por conta desse regime híbrido construído na Justiça do Trabalho e que teve impactos significativos na gestão da força de trabalho da SPPREV?

Igor V. Bedone. Um problema é aquele relativo ao período probatório. Pois, se o TST reconhece a estabilidade desse servidor, como decorrência lógica ele teria de passar por um estágio probatório, mas isso, obviamente, não está disciplinado na CLT e na legislação estadual está disciplinado somente para os titulares de cargo efetivo. Acaba havendo uma situação surreal e, sob a ótica do interesse público, frouxa, pois passados três anos o empregado será “estável” e sequer foi examinado no período.

Quem é o maior prejudicado, a seu ver, com essa situação toda?

Igor V. Bedone. Difícil dizer, pois os empregados públicos acabam tendo uma relação com a Administração insegura juridicamente e posso apostar que a maioria preferiria uma relação estatutária. Ao Estado, por outro lado, resta um enorme passivo e custos com defesa judiciais, processos e assim por diante. Acho que todos perdem.

Quanto aos empregados da SPPREV, certamente que há pontos que lhes são favoráveis e pontos que lhes são desfavoráveis da indefinição. Poderia nos dizer quais são os pontos positivos e quais são os pontos negativos do prisma do empregado público que integra um ente de direito público, seja um ente federativo ou mesmo uma autarquia que opta pelo regime celetista?

Igor V. Bedone. Ponto favorável é ter o “melhor dos dois mundos”, como eu disse acima. Desfavorável é a insegurança jurídica, pois a estabilidade é somente uma construção jurisprudencial, o que sempre gera insegurança.

Quais as possíveis soluções para esse problema, se é que elas existem?

Igor. V. Bedone. Alterar a lei e passar todos os empregados para regime estatutário, isso no caso da SPPREV. Em âmbito nacional, disciplinar a contratação via CLT para atividades de apoio, que não representem exercício de função tipicamente pública. Eu tenho uma tese de que os municípios pequenos preferem o regime celetista para não terem que arcar com a previdência, pois a conta acaba ficando cara no futuro. Uma solução, portanto, seria permitir a filiação de servidores ao RGPS, quando o município não tiver previdência própria.

Quais as dificuldades em viabilizar tais soluções?

Igor V. Bedone. As maiores são políticas, pois a força das corporações perante o Legislativo é grande. E, como os governos empurram esse tipo de questão com a barriga e não é um ponto de interesse político-eleitoral nem de impacto imediato no caixa, portanto, pouca atenção é dada para esse problema.

Irene Nohara. Muito obrigada pela disposição. Esse é um assunto dos mais relevantes para a gestão pública e o seu relato foi de muita valia para o esclarecimento desse problema, que é enfrentado por inúmeras entidades!

Igor Volpato Bedone

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP, graduado pela Faculdade de Direito da USP, foi Procurador do Estado de São Paulo entre 2006 e 2016 e trabalhou na consultoria jurídica da São Paulo Previdência (SPPREV).

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