DESAFIOS DE INOVAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CONTEMPORÂNEA: “DESTRUIÇÃO CRIADORA” OU “INOVAÇÃO DESTRUIDORA” DO DIREITO ADMINISTRATIVO?

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Irene Patrícia Nohara

Livre-Docente em Direito Administrativo, Doutora e Mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP. Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogada. Parecerista.

Sumário: 1. Considerações Introdutórias. 2. Inovação: um imperativo. 3. Perigos da “inovação destruidora” na Administração Pública. 4. Conclusões. Referências.

  1. Considerações Introdutórias

Inovação é um imperativo da dinamicidade do capitalismo contemporâneo que atinge amplos setores das atividades econômicas, sendo exigidas transformações tanto em produtos oferecidos, como na forma de prestação dos serviços. A atual onda de exigência por inovação também atinge a atuação da Administração Pública, que enfrenta desafios de adaptação às transformações tecnológicas, sociais e simultaneamente ao regime jurídico de direito público.

A questão da inovação relaciona-se com a exigência de celeridade, presente no cenário pós-moderno. No entanto, a integração em rede, a necessidade de transparência e de busca pelo consenso, do ponto de vista dos cidadãos, a presença de procedimentos regulamentados, os riscos produzidos pelas diversas atividades, a presença de inúmeras responsabilizações no cenário do direito público são complexidades que afastam do âmbito das Administrações Públicas a fácil sedução pelas fórmulas simplistas de inovação.

Ainda, aquilo que hoje pode ser aplaudido como um exemplo de inovação de práticas da gestão pública ou mesmo das novas modelagens de delegação de serviços, futuramente pode se revelar, em análises mais detidas dos Tribunais de Contas, ou mesmo em ações judiciais promovidas pelo Ministério Público, como uma burla aos limites do Direito Administrativo, sobretudo quando a inovação ultrapassa as possibilidades de uma ação administrativa proba, legítima e impessoal.

Contudo, sem a força da inovação não há como pensar em soluções estratégicas para os desafios que as Administrações Públicas enfrentam no cenário atual, sendo que a gestão pública deve dar soluções distintas às novas circunstâncias que surgem, pois, em conhecido raciocínio: soluções antigas dificilmente solucionarão novos problemas.

Como o presente artigo pretende ser crítico sobre a questão dos desafios de inovação, dado que os congressos do IBDA se destacam pela análise profunda e por reunir publicistas atentos aos valores republicados que devem permear as práticas administrativas, também se objetiva abordar a necessidade de se avaliar a sustentabilidade na inovação.

Logo, intenta-se, com a presente análise, além de ressaltar um caminho sem volta, isto é, que a inovação faz parte da criatividade humana e que ela não pode ser barrada, pois dela depende o progresso da humanidade, dado que ela pode gerar economia e benefícios a todos, também não se pode deixar de refletir sobre a necessidade de se separar práticas de inovação elogiáveis, ainda que na forma de “destruição criadora” (expressão de Schumpeter), em relação aos perigos das apelidadas, por Luc Ferry, “inovações destruidoras”.

Daí será enfatizada uma potencialidade negativa de algumas propostas de inovação, recortadas em função da seguinte problemática: “o Estado rende menos porque é sucateado ou é sucateado para render menos?” – e ser convenientemente, para alguns grupos interessados, substituído pelas modelagens de inovação destruidora.

Trata-se, portanto, não só de elogiar as inovações, mas de fazer simultaneamente uma “abordagem reversa”, ou seja, promover a desconstrução da ideia corrente de que, como o Estado estaria supostamente “sucateado”, o que é uma visão tendenciosa, a inovação operaria como uma solução para a redução de custos por meio da desobstrução das práticas administrativas dos “entraves” do direito público (via flexibilização).

Para demonstrar a utilidade de emprego do raciocínio, será exemplificada tal possibilidade dentro da análise da privatização de presídio por meio de concessão administrativa, uma espécie de parceria público-privada.

Espera-se, portanto, estimular a reflexão sobre facetas ambivalentes da inovação, dado que, ao lado de inovações que geram eficiência, modernização e também inúmeros benefícios do ponto de vista coletivo, que devem ser estimuladas pelas Administrações Públicas, há, por outro lado, inovações que representam um grande retrocesso em conquistas sociais, tanto por parte da população, como dos próprios servidores públicos, que são, em inúmeras circunstâncias, desprezados em nome de projetos que escondem, sob uma nova roupagem, o resgate da “ancestral” terceirização, disseminando a precarização das relações nas Administrações Públicas a pretexto de inovar.

Como resultado, procurar-se-á defender que a inovação em si é um movimento salutar e também necessário, mas que isso não significa que toda inovação seja boa, pois há inovações que são elogiáveis e outras que devem ser criticadas pelos efeitos negativos que produzem.

  1. Inovação: um imperativo

O componente da inovação é visto atualmente como um “diferencial competitivo”[1] das organizações. Inovação compreende tanto o desenvolvimento de novos produtos, como as novas formas de se prestar serviços, que quase sempre agregam otimização de custos aos processos.

Do ponto de vista do Capitalismo, na chamada Era da Informação, que se deu após a Revolução Tecnológica, a informação passou a ser matéria-prima, sendo a tecnologia capaz de influenciar a coletividade, principalmente em um contexto de integração em rede. Segundo expõe Manuel Castells,[2] sociólogo espanhol conhecido por abordar tal temática, no Capitalismo Informacional a geração de riquezas e de competitividade de organizações e países depende de informação e conhecimento.

Nesta perspectiva, enfatiza Marcuzzo que, “antes eram as matérias-primas, os bens fixos e tangíveis que determinavam a competitividade dos países. Nos últimos trinta anos as nações estão investindo cada vez mais em conhecimento”.[3]

A partir das adaptações às mudanças tecnológicas e investimentos em conhecimento, há significativos avanços organizacionais. Existe, portanto, valorização de empresas que produzam conhecimentos atrelados ao desenvolvimento tecnológico, sendo alavancada a criatividade dentro das organizações.

Também do ponto de vista das organizações públicas, a inovação se apresenta fortemente vinculada a questões de Tecnologia de Informação (TI). Tal afirmação pode ser reforçada pelo fato de que muitos dos prêmios de inovação que são recebidos por órgãos públicos têm relação com o desenvolvimento de sistemas integrados de dados.

Um exemplo foi a premiação, em 2014, do programa: Brasil sem Miséria, que articulou em cadastro único um mapa qualificado de 19 programas sociais, bem como do e-SIC (Sistema Eletrônico de Informação do Cidadão), desenvolvido pela Controladoria-Geral da União (CGU), com sua equipe de TI, que simplificou o acompanhamento de pedidos de acesso à informação, desde a entrada da demanda até a resposta final realizada pelo sistema.[4]

Tais premiações fizeram parte do Concurso de Inovação na Gestão Pública Federal, que é coordenado pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap), e que completa, em 2016, mais de vinte anos de estímulo de práticas inovadoras na gestão que provoquem aprimoramento no desenvolvimento de serviços públicos.

Interessante observar, conforme dados divulgados em 2014, que os critérios utilizados para averiguar o grau de introdução de mudanças em relação a práticas anteriores, para indicar os parâmetros de inovação, do mencionado concurso, relacionam-se com:

impactos na (1) resolução da situação-problema; (2) atendimento à demanda do público-alvo; ou (3) atendimento aos direitos dos cidadãos; grau de envolvimento e participação dos servidores na mudança; grau de interação com outras iniciativas internas, externas ou parcerias; grau de eficiência na utilização dos recursos; e grau de promoção de mecanismo de transparência, participação ou controle social.[5]

São critérios elogiáveis, pois buscam agregar aos serviços o melhor atendimento das necessidades dos cidadãos, bem como envolver os servidores no desenvolvimento de soluções que acrescentem maior eficiência na prestação do serviço público, com promoção simultânea de transparência e de controle social.

Assim, pelo processo de inovação ocorre o que Schumpeter denominou de “destruição criadora”,[6] pois o “novo” toma o lugar do “velho”. A inovação auxilia na satisfação de necessidades emergentes dos destinatários das melhorias, resultando, em diversos contextos, na criação de novos processos de produção com redução de custos e também maior eficiência na produção.[7]

Tais vantagens são cruciais para que as organizações enfrentem tempos de crise, em que há a retração de recursos, inclusive os públicos. Logo, a inovação se apresenta como solução apta a provocar maior produtividade na gestão pública, sendo, portanto, tema de acentuada relevância prática.

Todavia, conforme será discutido a seguir, não obstante todas as vantagens da inovação, ainda assim a abordagem mais crítica nos exige alertar para o fato de que nem toda inovação tem impactos positivos no contexto da Administração Pública.

  1. Perigos da “inovação destruidora” na Administração Pública

Em obra recente acerca da inovação, Luc Ferry lança um olhar mais humanista sobre o fenômeno denominado por Schumpeter de “destruição criativa”. Para o filósofo francês, não é só da “destruição” que surge a necessidade da “criação”, mas, em muitos aspectos, é a própria inovação que, em um movimento inverso, se volta a destruir antigas formas.

Sem adotar uma visão propriamente maniqueísta acerca da inovação, Ferry, em abordagem equilibrada, enfatiza que, numa situação de abertura das economias ao mercado global, o crescimento é alimentado pela invenção de novidades em todos os campos essenciais à produção capitalista, o que compreende não apenas os produtos, mas também a organização do trabalho, a conquista de novos mercados, os métodos de gestão, os meios de transporte ou as fontes de matéria prima.[8]

Do ponto de vista do mercado, há, ainda, a prática disfarçada da obsolescência prematura de produtos. Esta abrange a estruturação de estratégias de troca de produtos que poderiam durar mais, mas que são feitos para serem substituídos exatamente quando outros são divulgados como novidades, por intensivas estratégias de marketing. Tal prática acaba prejudicando a sustentabilidade do consumo e, portanto, do planeta, pois a necessidade de troca é induzida pela obsolescência de produtos que poderiam ser utilizados por mais tempo.

Ainda, as instâncias organizacionais privadas sempre são desafiadas por aqueles que desejam implodir o velho para dar margem às novas contratações e necessidades, o que é conveniente inclusive para os que desejam proceder às “reengenharias” organizacionais, que quase sempre têm impactos na vida e nos direitos dos funcionários.

A ideia de mostrar que as práticas são arcaicas e que não funcionam mais vai ao encontro do desejo, não confessável, de substituir funcionários antigos por outros que celebrem um contrato de trabalho “mais leve” do ponto de vista da empresa. Ainda, com o crescimento do valor do depósito do FGTS, se houver uma futura demissão por parte da empresa, haverá gastos progressivos por parte da organização.

Por conseguinte, o “discurso” da necessidade de inovar pode ser utilizado como fachada para demissões e cortes, com a celebração de contratos em novos termos, mais baratos para a empresa, mas que nem sempre oferecem melhorias em relação às práticas organizacionais e à eficiência administrativa. Não é rara a substituição de pessoas qualificadas e, portanto, mais caras à organização, por pessoas que concordam em trabalhar com baixa remuneração e que nem sempre possuem um perfil inovador.

Reitere-se que, na abordagem de Ferry, é a própria inovação que tem potencial de destruir as antigas formas. O movimento não é como se supõe, isto é: não é da obsolescência do antigo, que se torna imprestável, que surgem condições para o aparecimento do novo, mas, quando o antigo ainda pode ser útil (e, em muitos casos, está rendendo adequadamente), já existe ‘um novo’ sendo criado, de cima para baixo, daí a expressão “inovação destruidora”,[9] ou seja, inovação que destrói.

Isso ocorre com uma frequência ainda maior quando há um contexto de fusões e aquisições, relacionado com as crises econômicas, em que as empresas são modificadas para oferecerem ao comprador melhores condições lucrativas.

A margem de lucro é, em muitos contextos, inversamente proporcional a uma folha de pagamentos custosa, sendo a desvalorização dos empregados ainda maior em países em desenvolvimento, pois nos países desenvolvidos há uma cultura de mais intensiva valorização da mão de obra qualificada, pois existe a percepção de que a qualidade do serviço está associada com trabalhadores satisfeitos com as condições de trabalho.

Do ponto de vista das organizações publicas, por sua vez, o discurso da necessidade de inovar também se intensifica nos contextos de crise. Ora, não foi à toa que se falou em flexibilizar a estabilidade dos servidores públicos quando da Reforma Administrativa da década de noventa,[10] pois as economias latino-americanas estavam sendo pressionadas pelos organismos financeiros internacionais para reduzir o tamanho do Estado, dada retração do crescimento econômico após os dois choques do petróleo, com impactos que se protraíram ao longo de toda a década de oitenta, levando, portanto, às medidas de “enxugamento” da década de noventa.

Como resultado, houve, após o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, de 1995, a edição, em 1998, da Emenda Constitucional n◦ 19, que aumentou as hipóteses de corte de servidores estáveis, para: avaliação periódica de desempenho, com ampla defesa e contraditório, e, ainda, na hipótese de os gastos com o funcionalismo extrapolem os limites estabelecidos na lei de responsabilidade fiscal.

Atualmente, segundo dispõe o art. 169, § 3◦, da Constituição, com redação da EC 19/98, primeiro serão cortados 20% dos cargos em comissão ou funções de confiança, depois os servidores que não adquiriram estabilidade, para que finalmente tal hipótese alcance servidores estáveis. No momento de criação da emenda, as pessoas achavam até que seria difícil que os estáveis perdessem seus cargos nestas hipóteses, mas tal possibilidade passa a ser cada vez mais factível diante da circunstância de crise e de aumento da dívida pública.

A ‘pseudo’ novidade da época da Reforma Administrativa foi o modelo gerencial, influenciado pela fase de gerencialismo puro da new public management. As inovações dos novos métodos de gestão também foram transplantadas do âmbito privado para a administração pública. Ocorre que as características do gerencialismo e sua tentativa de descentralização, pelo incremento da contratualização, não eram propriamente novidades no cenário nacional, sendo este inclusive um projeto encontrado na época dos governos militares no Brasil.

Daí surge a seguinte indagação: será que o discurso do “Estado sucateado” não representa um bom pretexto para a implementação de projetos de parcerias que já estão sendo gestados para substituir as formas mais autênticas de prestação de serviços público por novas modelagens, sendo muito conveniente, em alguns contextos, que o ‘supostamente’ velho seja dado por imprestável, num discurso deslegitimador do direito público?

Se esta hipótese puder ser confirmada para alguns contextos, então, não seria o Estado sucateado que exigiria que houvesse as novas modelagens, mas as inovações em modelagens seriam engendradas para destruir o desenvolvimento de atividades nos moldes anteriores, substituindo-as por “novidades” que não necessariamente são melhores do que as antigas.

Para que o raciocínio não fique “no ar”, será utilizado o exemplo da privatização de presídios pela concessão administrativa, espécie de parceria público-privada. A ideia mais recente de privatizar presídios foi inspirada em prática norte-americana. Ocorre que a privatização dos presídios nos Estados Unidos não resolveu os problemas que prometia enfrentar.

Provocou, ao revés, um movimento de aumento da população carcerária,[11] sendo que, tanto na Inglaterra, como nos Estados Unidos, os indicadores apontam para manutenção em unidades privadas dos mesmos problemas que a proposta de privatização desejava combater, como: fugas, mortes por negligência, denúncia de maus tratos e rebeliões.

Segundo Minhoto, “o experimento concreto norte-americano e britânico tem demonstrado que as prisões privadas não vêm prestando serviços necessariamente mais baratos nem tampouco mais eficientes, reproduzindo os problemas estruturais que atravessem o sistema penitenciário público tradicional”.[12]

Houve, ainda, com a privatização dos presídios norte-americanos, a atuação mais intensiva de lobbies no Congresso em favor de um direito penal máximo, sendo seguida pela corrupção, dado que segmentos empresariais interessados começaram a oferecer vantagens a juízes norte-americanos para aumentar o número de condenações, tendo havido inclusive condenações na justiça de juízes envolvidos no esquema.

Quando o número de presos oferecidos pelo Estado passa a ser um elemento lucrativo aos grupos responsáveis por administrar os presídios privatizados, ocorre a retração da proposta de um direito penal dito progressista, pois a diminuição da população carcerária passa a ser um fator desinteressante para os grupos de pressão.

É legítima, portanto, a preocupação de sociólogos e de pesquisadores empíricos com os impactos deste modelo na desarticulação das políticas de redução da criminalidade por meios alternativos ou por um direito penal fragmentário, que se volte à privação da liberdade só de lesões a bens jurídicos mais relevantes em termos sociais.

Em vez da recuperação das pessoas, isto é, da ressocialização, a ótica da privatização passa a ser voltada ao encarceramento. Loïc Wacquant[13] aprofunda a crítica, enfatizando que a expansão do encarceramento em massa é associada às reformas da década de noventa, sendo que a hegemonia da “ideologia do mercado”, que marca tal período, de forte influência neoliberal, foi acompanhada, não por acaso, pela retração das políticas de assistência social aos pobres. Assim, nos Estados Unidos, a reflexão acerca do fenômeno da marginalização foi progressivamente dissociada da questão social, sendo alçada, com a influência da visão neoliberal, à perspectiva de “pretensa” escolha individual.

No Brasil, o primeiro modelo criado nesse sentido, único em operação ainda, foi o Complexo Penitenciário Público-Privado de Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte-MG. Trata-se de concessão administrativa, sendo o sistema, portanto, remunerado integralmente pelo Poder Público, diferentemente da concessão patrocinada (modelo de parceria público-privada em que há também tarifa, aliada à contraprestação do Poder Público).

Pelo modelo de concessão, o fator trabalho dos presos, sem a proteção da CLT, mas subordinado à dinâmica da Lei de Execução Penal, pode ser visto não apenas como uma maneira de remição da pena, mas também como forma de se viabilizar projetos complementares, que buscam receitas alternativas.

No caso do complexo de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais, houve uma triagem de presos, sendo direcionados para o presídio privatizado os de menor periculosidade, isto é, aqueles que não cometeram crimes tão violentos. Logo, ter funcionários presidiários passa a ser vantajoso para o empresário, pois custará nas atividades laborais menos do que um empregado em liberdade, transformando a política de ressocialização criminal num “grande negócio”, o que não deixa de ser uma afronta à dignidade humana.

Assim, em vez de estarem em liberdade desenvolvendo atividades econômicas, os presos de menor periculosidade estarão trabalhando nos presídios, sendo que, se houver o aumento do número de presos, em vez de os recursos públicos serem direcionados às políticas públicas que efetivamente colaborariam com a redução da criminalidade, eles estarão sendo usados para o progressivo encarceramento das pessoas e também para o lucro dos empresários do setor.

Do ponto de vista do direito público, há dificuldades técnicas, relacionadas com os limites do Direito Administrativo, de se dissociar atividades-meio dos presídios em relação às atividades-fim, que poderiam ser terceirizadas, pois os atos extroversos de poder de polícia baseados no monopólio da força do Estado não admitem delegação (desde o julgamento da ADI 1717, em 2002). Será que o uso da força, para conter uma rebelião, poderia ser delegável ao particular? E as atividades realizadas para remição da pena, que são assuntos afetos não apenas à Administração Penitenciária, mas também ao Poder Judiciário?

O presídio de Minas Gerais chegou a celebrar um contrato com prestadores de serviços de assistência advocatícia aos presos. Ocorre que se os advogados fornecidos foram contratados pelo presídio, o que revelava um potencial conflito de interesses.

Daí porque Bruno Shimizu, defensor do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria de São Paulo, Estado que pretende também implantar a privatização dos presídios, acha incompatível a convivência entre lucro e direitos individuais. Conforme expõe o defensor público:

Nos Estados Unidos, há cláusulas nos contratos de privatização pelas quais a unidade tem de se manter com 90% do limite máximo da lotação. Se a própria unidade vai administrar, ela não vai fazer grandes esforços para que as pessoas saiam de lá (…). Quanto mais encarceramento, mais lucro. A unidade é que vai controlar as faltas graves, a emissão de documentos para a progressão do regime. Isso tudo pode ser barrado em função do lucro.[14]

Outra indagação que ainda não foi enfrentada: como seria, no Brasil, a situação de aproximar empresários, que se guiam pelo aspecto lucrativo, com a atividade de encarceramento de controle de pessoas ligadas ao crime organizado, que movimenta quantias elevadas de recursos? É preocupante na América Latina toda a situação em que há nos presídios a infiltração de influência do crime organizado, situação que pode ser ainda mais dramática no modelo privatizado.  

Percebe-se, então, que a inovação da privatização de presídios, em vez de solucionar os problemas dos presídios públicos, acaba por ser utilizada como uma forma de substituir e enterrar o modelo público, dentro do prisma da “inovação destruidora”. Mas ela não demonstra ser uma fórmula sustentável, principalmente pelas peculiaridades das atividades relacionadas com o encarceramento.

É instintivo que, para o setor privado, interessado em investir nesse novo negócio, com potencial lucrativo, não há porque defender a melhoria do sistema antigo, sendo que quanto mais sucateados se mostrarem os presídios públicos, tanto melhor o cenário para a defesa das “pseudo-vantagens” da privatização de presídios.

Por este motivo que se defende que não é simplesmente porque o Estado rende menos que é sucateado, mas há grupos interessados no sucateamento do Estado exatamente para que ele renda menos, emergindo deste contexto um cenário propício ao oferecimento de “inovações destruidoras”.

Aliás, muitas modelagens “vendidas” como novidades, a partir de um marketing absolutamente parcial, deixa os estudiosos preocupados. Não se trata de deixar de lado a utilidade de algumas inovações, que podem ser interessantes, uma vez que o progresso vem acompanhado das novidades, mas de analisar com prudência os novos modelos, sobretudo quando ainda não se sabe ao certo os riscos e os resultados deles do ponto de vista público.

“Inovação por inovação” ou, ainda pior, “inovação destruidora” de avanços, como: responsabilidade, respeito à dignidade humana, controle administrativo, participação pública e transparência, podem não implicar em melhorias nos ambientes organizacionais.

Segundo enfatiza Luc Ferry, é necessário que o Estado se recomponha, pois “quando ele decai, as paixões mais comuns e as mais funestas tomam conta da sociedade civil”. Interessante o alerta, pois, segundo o pensador francês, quando o Estado perde a credibilidade, ou seja, quando:

não é nem amado, nem mesmo detestado, mas desprezado, olhado como insípido, incolor e inodoro, então a tentação da desobediência civil se instaura: manifestantes que quebram sem pudor bens públicos, cidadãos que fogem dos impostos, prefeitos que não querem mais aplicar a lei, como se as decisões do Poder Legislativo pudessem a partir de agora ser escolhidas à la carte; em resumo, é a república, a res publica, que se abre aos maus ventos.[15]

Os publicistas devem ficar atentos, portanto, para as características das inovações que se propõem na seara do Direito Administrativo, que podem ter o efeito de um verdadeiro “cavalo de Tróia”.[16]

  1. Conclusões

O artigo partiu do pressuposto de que a inovação é um imperativo dos novos tempos. Por meio da inovação há a possibilidade de progresso. Contudo, o fato de a inovação ser um movimento que deve ser estimulado pelas instâncias organizacionais, não significa que toda e qualquer inovação seja necessariamente boa.

Logo, há facetas ambivalentes da inovação, isto é, uma inovação pode ser boa do ponto de vista público, quando trouxer benefícios coletivos e formas mais eficientes de se desenvolver dada atividade, ou pode ser ruim, quando fizer parte de um projeto de desmonte da Administração que se volta a beneficiar apenas alguns grupos, em detrimento tanto dos cidadãos-administrados como dos próprios servidores públicos.

Do ponto de vista da gestão pública, é muito comum que a “destruição criativa”, a pretexto de inovação, estimule aqueles que, sempre apoiados nas altas cúpulas (que, no caso do Poder Público, são constituídas principalmente pelos agentes políticos) façam implodir antigas formas organizacionais a pretexto do aumento do desempenho e da redução de custos, proliferando no ambiente organizacional público o medo e a insegurança.

Daí é importante o alerta, pois as estruturas sociais que estão emergindo do movimento do desmonte estatal, não estão propiciando o surgimento de um caminho construtivo, sendo o destaque do momento, tendo em vista o acirramento dos valores individualistas da pós-modernidade, dado ao homem competitivo, destrutivo e orientado a vencer os demais e acumular para si riquezas e oportunidades.

Nesta perspectiva, o Direito Administrativo do século XXI possui um grande desafio:  instrumentalizar um resgate da credibilidade do Estado, no equilíbrio entre o estímulo à liberdade empreendedora e a proteção social, o que deve ser feito por meio do fortalecimento das instituições públicas, conforme defendido por Luc Ferry.

Também não pode o Direito Administrativo servir de obstáculo às ações inovadoras, juridicamente adequadas, que se harmonizem com o objetivo de promoção do desenvolvimento sustentável de um País, o que pode ocorrer tanto por alterações legislativas edificantes, como por novas formas de se prestar os serviços públicos.

Em suma, precisaremos de administrativistas sensíveis, do ponto de vista ético, e munidos de equilíbrio para orientar essa “sede de inovação”, que permeia toda ambiência produtiva nos dias atuais, para que a sociedade não pague um preço excessivo e desumanizante por conta de toda e qualquer inovação, sendo esta filtrada pela rede de valores republicanos inerentes ao direito público contemporâneo.

Assim, somente as inovações que efetivamente trouxerem benefícios sociais, para além do estímulo ao empreendedorismo, deverão ser abraçadas pela gestão pública, sendo esta capaz de perceber e se desvencilhar de projetos que tragam mais malefícios do que benefícios, antes que os prejuízos econômicos e sociais se tornem incontornáveis.

Referências Bibliográficas

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WACQUANT, Loïc. Punishing the poor: the neoliberal government of social insecurity. Durban, NC: Duke University Press, 2009.


[1] GANEM, Carlos; SANTOS, Eliane Menezes dos (Coord.). Brasil inovador: o desafio empreendedor. Brasília: IEL, 2006. p. 5.

[2] CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede – a era da informação. São Paulo: Paz e Terra, 1999. Passim.

[3] GANEM, Carlos; SANTOS, Eliane Menezes dos (Coord.). Brasil inovador: o desafio empreendedor. Brasília: IEL, 2006. p. 15.

[4] Cf. E-SIC. Repositório Enap. Disponível em: <http://repositorio.enap.gov.br/handle/1/1071>. Acesso em 25 fev. 2016.

[5] PEREIRA, Flavio Schettini; VILELA, Pedro Junqueira. Ações Premiadas no 19◦ Concurso Inovação na Gestão Pública Federal. Brasília: Enap, 2014. p. 12.

[6] SCHUMPETER, Joseph. A Teoria do Desenvolvimento Econômico: Uma investigação sobre Lucros, Capital, Crédito, Juro e o Ciclo Econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 62.

[7] GANEM, Carlos; SANTOS, Eliane Menezes dos (Coord.). Brasil inovador: o desafio empreendedor. Brasília: IEL, 2006. p. 22.

[8] FERRY, Luc. A inovação destruidora: ensaio sobre a lógica das sociedades modernas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. p. 35.

[9] Advirta-se que Schumpeter também advertiu dessa função da inovação, que ao criar, destrói, mas o Ferry lança luz mais intensiva na “lógica reversa” pois aborda a inovação destruidora.

[10] NOHARA, Irene Patrícia. Reforma Administrativa e Burocracia. São Paulo: Atlas, 2012. p. 82.

[11] Ver. MINHOTO, Laurindo Dias. Privatização de presídios e criminalidade. São Paulo: Max Limonad, 2000. Passim.

[12] MINHOTO, Laurindo Dias. As prisões do mercado. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, v. 55-56, p. 40.

[13] WACQUANT, Loïc. Punishing the poor: the neoliberal government of social insecurity. Durban, NC: Duke University Press, 2009. p. xviii.

[14] MARETTI, Eduardo. Para especialistas, presídios privatizados custam caro e violam direitos. Disponível em: <http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/09/para-especialistas-presidios-privatizados-custam-caro-e-violam-direitos-2771.html>. Acesso em 25 fev. 2016.

[15] FERRY, Luc. A inovação destruidora: ensaio sobre a lógica das sociedades modernas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. p. 48.

[16] Utilizado aqui como alegoria de um “presente grego”, isto é, de algo que se mostra inofensivo e bom, mas que depois produz destruição, como no Cavalo de Tróia, da Ilíada (dado pelos gregos aos troianos – no nosso contexto, por exemplo, alerta-se para as inovações que podem ser gestadas na iniciativa privada e que são ‘vendidas’ como um presente ‘pseudo-solucionador’ de problemas do Poder Público, sem que se analise, mais a fundo, se a ‘solução’ não cria problemas ainda mais graves em termos de sustentabilidade do sistema).

COMO CITAR: NOHARA, Irene Patrícia. Desafios de inovação na administração pública contemporânea: “destruição criadora” ou “inovação destruidora” do direito administrativo? Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 17, n. 194, p. 65-71, abr. 2017.

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