Ensino Domiciliar/Educação Doméstica – RE 888815, com repercussão geral
02.02.2019 por Irene Nohara1753 acessos
O STF, em 2018, negou provimento ao Recurso Extraordinário RE 888815, com repercussão geral reconhecida, não admitindo que haja ensino domiciliar (homeschooling), enquanto meio de a família prover a educação, em lugar do ensino formal.
Os Ministros: Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Marco Aurélio Mello e Cármen Lúcia, consideraram que não há ainda possibilidade de ensino domiciliar em lugar do ensino formal e que o STF não poderia regulamentar o assunto, competindo ao Congresso Nacional discutir a questão.
Contudo, para os Ministros Lewandowski e Fux, a prática seria, ainda, inconstitucional, mesmo que regulamentada em lei.
O caso: em maio de 2015 chegou o assunto no STF, em recurso de uma família do Município de Canela/RS, que queria retirar a filha do ensino formal municipal, em 2012. Não queriam que ela convivesse, enquanto criança, com adolescentes mais velhos, em ensino multi-seriado, ainda, discordavam de questões de ensino fundamental. A família queria contratar professores para ministrar todas as disciplinas e, ainda, tinham concepções religiosas que alegavam ser diferentes do conteúdo do programa do ensino regular.
Segundo pesquisa da ANED (Associação Nacional de Educação Domiciliar), os motivos apontados pelos pais para defender o ensino domiciliar são:
32% Dar uma educação mais qualificada
25% Problemas relacionados com princípios de fé da família
Outras – como: violência, bullying e doutrinação
No entanto, o STF afastou essa possibilidade, com repercussão geral, no RE 888815:
Foi questionada a viabilidade atual de educação doméstica, principalmente pelas características do nosso País. De acordo com considerações de Alexandre de Moraes: o homeschooling, num país diverso e da dimensão do Brasil, vai gerar EVASÃO ESCOLAR travestida de educação domiciliar. O Brasil já tem altas taxas de evasão.
Os Ministros consideraram, na maioria, que o ensino doméstico contaria o ECA e a LDB… Não haveria como fiscalizar: frequência e o rendimento. Fux advertiu que: (a) o programa pedagógico devidamente formulado não é algo que afronta liberdade de crença; e (b) o ambiente escolar é também fator de proteção a crianças que sofrem negligência ou violência em casa.
Essa preocupação foi aprofundada por Lewandowski, no sentido de que se o STF autorizasse, haveria potencialmente o estímulo ao trabalho infantil no Brasil. Haveria, ainda, o risco de fragmentação social e desenvolvimento de bolhas de conhecimento, contribuindo para a divisão do país, intolerância e incompreensão.
Luis Roberto Barroso, por sua vez, foi o único a admitir, e enfatizou que é prática em países desenvolvidos, como a Inglaterra… sendo feita submissão da criança a avaliações periódicas e caso a criança não obtenha rendimento, daí seria determinante sua matrícula oficial.
Comentário por Irene Patrícia Nohara:
Andou bem o STF, temos de pensar em políticas públicas a partir da realidade do nosso país, que é grande em tamanho e densidade, com muita pobreza, desigualdade e alto grau de evasão escolar.
A escola é um ambiente que é regulado para ser diverso, para propiciar o preparo para a cidadania, o contato com conteúdos múltiplos e o convívio social. As avaliações e o acompanhamento dos alunos são voltados a transmitir valores que preparam o indivíduo ao convívio social, levando-o à reflexão ética.
Também se procura desenvolver uma atitude crítica e, na medida do possível, científica e criteriosa diante da informação. No entanto, existe uma propaganda infundada de que o professor estaria funcionando como uma espécie de doutrinador, a desvirtuar os preceitos familiares que são transmitidos, mas, por outro lado, quem não garante que é a partir da escola que o aluno poderá transcender limitações e encontrar um outro mundo de oportunidades e possibilidades, para além das limitações próprias de seu núcleo familiar?
Quantos dos pais também não transmitem informações distorcidas sobre as questões humanas? É pela educação que todo um universo se abre, que há grandes experiências de convívio e de troca de ideias, com preocupações metodológicas e científicas. Segundo Silvia Colello, a escola não é um estoque de conteúdos, mas é uma experiência complexa, que se beneficia da convivência em grupo e da pluralidade de experiências, que são cognitivas, sociais, culturais e até afetivas.
Por mais geniais que os pais se considerem, enquanto mentores dos próprios filhos, eles não poderiam domesticamente suprir os benefícios da convivência com os professores, colegas e com profissionais com formação pedagógica.
Imagine nunca ter frequentado uma escola… porque os seus pais ficaram em cima para que você seguisse o conteúdo programático traçado por eles, impedindo o convívio com outras crianças e regulando rigorosamente tudo na vida da pessoa, sem que ela tenha oportunidade de conviver em uma ambiência tão rica como é a escola?
E quantos dos pais ainda não possuem distúrbios psicológicos, traumas e problemas, submetendo seus próprios filhos aos maus tratos, ao rigor excessivo, ou mesmo à exploração ao trabalho infantil, sem a necessidade de frequentarem a escola… Há pessoas ignorantes que desejam que seus filhos sejam a expressão exata dessa mesma ignorância, pois sobre eles exercem relação de domínio: sobre o corpo e sobre a mente…
Existem também situações em que os pais são cultos, têm tempo e dinheiro para se dedicarem ao desenvolvimento do filho, deixando-o opções, isto é, pessoas de “boa-fé” (isto é, que não desejam ‘dominar’ ou ‘assujeitar’ os filhos, sem dar-lhes oportunidade de uma série de vivências), sendo que os defensores equilibrados se apoiam em experiências que são bem-sucedidas, nos países que admitem o ensino domiciliar, mas isso demandaria condições muito específicas: sendo que, no Brasil, muitos dos pais, por trabalharem excessivamente, mal têm tempo para monitorar se o filho está fazendo a lição de casa e, portanto, cumprindo com seus deveres escolares…
Outrossim, imagine os problemas que geraria incumbir o Estado de fiscalizar as condições de ensino doméstico, o que poderia ser até uma violação à privacidade etc.
Andou, portanto, bem o Supremo Tribunal Federal, ao pensar a nossa realidade, inclusive temos de refletir que quando algo é regulado enquanto política pública, ou “fura” a política pública educacional, existem impactos coletivos… (imagine profissionais futuros que pela opção do ensino doméstico ficarem sem conhecimentos mínimos das matérias, ou pais que não queiram que o filho siga determinada área para a qual ele é vocacionado e controlem sua educação para dominá-lo…) – não basta importar coisas que funcionam em países desenvolvidos, para depois vermos que não funcionam em outra realidade… Fora a possibilidade de abandono intelectual de filhos…
Somos, como bem ressaltou o Ministro Relator, um país com alto grau de evasão escolar… Ainda, como iremos nos desenvolver sem políticas consistentes voltadas à educação formal da nossa população?
Os pais que quiserem, que: – complementem o ensino que porventura acharem deficitário, permitam com que o filho tome contato com a suas crenças, sem deixar de lado o contato formal com o ensino científico, contratem professores particulares, cursos extra, ou, em momentos de ensino domiciliar concomitante com o ensino formal, mas sem intentar IMPEDIR o ensino formal, pois a falta ou incompletude dele pode, esta sim, gerar problemas coletivos em larga escala (sobretudo quando se pensa na realidade coletiva, em políticas públicas, em promoção do desenvolvimento… e não numa ou outra experiência isolada feita em condições peculiares…)…
Na realidade, entendemos que a ideia boa para o nosso País, se buscássemos nos desenvolver, seria isto sim: ampliar o tempo e a qualidade do ensino formal, mas jamais prescindir dele…
Agora nos resta saber se os demais Poderes: Legislativo e Executivo, terão o mesmo equilíbrio ao ponderar as questões subjacentes de ensino doméstico, pois nestes outros Poderes, nem sempre o debate ocorre com a mesma profundidade e, principalmente, com bom senso e amparo em pesquisas voltadas para refletir a realidade do nosso país… Mas o debate provavelmente ainda será travado em outras esferas para além do Sistema de Justiça.