Os julgamentos do STF sobre as reformas na Lei de Improbidade Administrativa

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Repercussão geral no ARE 843989, em que o Supremo Tribunal Federal decidiu a questão da irretroatividade da reforma da lei da improbidade.

As teses de repercussão geral foram no sentido de que: (1) é necessária a comprovação da responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se nos arts. 9º, 10 e 11 da LIA a presença do elemento subjetivo do dolo; (2) a norma benéfica da Lei 14.230/2021, revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa, é irretroativa, em virtude do art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; (3) a nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior, porém, sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do tipo culposo, devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; e (4) o novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.

Comentário Caio Greb Garcia – Monitor de Direito Administrativo

A Lei de Improbidade Administrativa (nº 8.429/1992) foi emendada em 2021 pela Lei nº 14.230/2021, que alterou substancialmente o texto original com reformas de grande impacto no processamento dessas ações. Tal foi a amplitude das mudanças, que habituou-se chamar de Nova Lei de Improbidade Administrativa, ainda que não revogasse integralmente a lei original. Entre as principais alterações, a reforma tratou, inicialmente:

 1. da legitimidade ativa, restringindo-a exclusivamente ao Ministério Público, afastando a hipótese anteriormente prevista que permitia a propositura da ação pela pessoa jurídica lesada;

2. do procedimento, extinguindo o ato da defesa preliminar do citando, anterior ao juízo de admissibilidade da petição inicial, bem como o reexame necessário (art. 17, §19, IV), tópico anteriormente tratado no Tema Repetitivo nº 1.042 do STJ;

3. do elemento subjetivo, abolindo a modalidade culposa para configuração do ato de improbidade, restando necessário comprovação de dolo, seguindo entendimento de longa data do STJ;

4. das medidas cautelares, passando a exigir individualização das condutas de cada indivíduo desde a propositura da demanda e, portanto, afastando aplicação de medida de indisponibilidade de bens em caráter solidário (art. 17-C, 17, §6º, I);

5. da tipicidade, reservando a caracterização dos atos de improbidade por violação aos princípio da Administração Pública aos casos taxativamente elencados no art. 11;

6. da autocomposição, passando a disciplinar o instituto do acordo de não persecução civil no art. 17-B, anteriormente autorizado pela Lei nº 13.964/2019;

7. da prescrição, unificando o prazo prescricional geral em oito anos e o termo inicial na ocorrência do fato ou na cessação da conduta, bem como instituindo o que se chamou de prescrição intercorrente, com prazo de quatro anos contados da propositura da ação, com interrupção na publicação de sentença condenatória e de decisão monocrática ou acórdão em segunda ou terceira instâncias que confirme sentença ou acórdão condenatórios ou reforme os que julgarem pela improcedência da demanda.

O projeto, inicialmente proposto em 2018 pelo Deputado Roberto de Lucena, recebeu a nova numeração de PL nº 2.505/2021 após a uniformização do sistema de numeração do Congresso Nacional, tendo chamado atenção o momento de seu trâmite perante a 56a Legislatura, pois concorreu as ordens do dia com a PEC nº 5/2021, que buscava alterar a composição do Conselho Nacional do Ministério Público, permitindo ao Congresso Nacional exercício de maior influência sobre seus quadros.

Uma vez trazendo ao ordenamento normas mais favoráveis aos réus, foi inevitável a associação com a disposição contida no art. 5º, XL, CF, que prevê a retroatividade da lei penal mais benéfica. Reforçando essa conexão, o art. 17-D da Lei de Improbidade, incluído pelo advento da reforma, estipulou de forma categórica que as ações de improbidade não constituem ações civis e que têm caráter repressivo e sancionatório, destoando da unidade que frequentemente se assumia com as ações civis públicas. Desse modo, o art. 1º, §4º, da Lei estabeleceu a aplicação dos princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador ao sistema disciplinado. Estando ambos Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador inseridos na esfera mais ampla do jus puniendi estatal, houve necessidade de que se interpretasse a natureza das sanções previstas na lei para que se concluísse pela retroatividade ou não das referidas alterações. Essa (ir)retroatividade, por sua vez, estando dependente da inclusão ou não do sistema de tutela da probidade no conjunto do Direito Administrativo Sancionador.

Foi nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal se viu na oportunidade de pacificar o entendimento por meio do julgamento do ARE nº 843.989/PR, que aguardava pronunciamento da Corte quanto ao reconhecimento de prescrição. Em fevereiro de 2022, então, o caso se tornou objeto do Tema nº 1.199 da Repercussão Geral, estendendo a tese fixada aos demais casos que desta dependessem. Na origem, a ação, proposta pelo INSS em face da Sra. Rosmery Terezinha Cordova em 2006, tratava de alegações de que a ré, advogada, contratada pelo INSS para prestação de serviços advocatícios, teria agido de forma negligente com perdas de prazos processuais, entre outras condutas, ocasionando dano ao erário. O recurso foi apreciado inicialmente na pauta da sessão plenária de julgamento do STF em 17 de agosto de 2022.

Em julgamento extenso sob relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, o tema contornou principalmente a questionamento teórico quanto à natureza das ações e sanções. Buscou-se, em mais de uma oportunidade, identificar essa natureza de forma ontológica, deixando em segundo plano, por vezes, eventuais terminologias empregadas no texto da Lei.

Por um lado, assinalando as associações doutrinárias e jurisprudenciais do Direito Administrativo Sancionador ao Direito Penal, defendeu-se a correspondência da matéria em exame com a lógica da legislação criminal, tendo em vista, em especial, que uma das sanções previstas na Lei nº 8.429/1992, qual seja, a suspensão dos direitos políticos, inquestionavelmente restringe as liberdades do condenado. A propósito, trata-se de liberdades das mais fundamentais ao Estado democrático de Direito: a liberdade política, como Direito Fundamental de primeira geração.

Falar-se em irretroatividade implicaria acolher um cenário em que indivíduos condenados anteriormente à vigência da Lei em 2021 teriam suas liberdades restringidas, enquanto os que cometessem exatamente a mesma conduta após esse marco, não sofreriam qualquer sanção decorrente da Lei nº 8.429/1992. Não fossem as novas disposições aplicadas aos casos em andamento, ver-se-iam os magistrados na situação de ter de condenar réus sob fundamentação em norma inexistente. As alterações no sistema de improbidade, como tratado pelo relator, distinguiu o gestor desonesto do gestor incompetente em meio à conjuntura do que se habituou chamar de apagão das canetas e Administração Pública do medo. Isso, contudo, não significa que eventual dano ao erário decorrente de conduta culposa não possa ser apurado e os cofres públicos ressarcidos por meio de instrumentos jurídicos diversos e pelas demais vias processuais disponíveis. Uma condenação por ato de improbidade administrativa, porém, acarreta sanção social muito mais negativa e severa que um simples dever de indenização ao Estado.

Em outra perspectiva, houve pronunciamentos fundamentados na premissa de que a Lei teria consagrado espécie própria de sancionamento, que, contrastando com ambos os sistemas de sanções penal e civil, constituiria um sistema de sanções administrativas propriamente ditas. Isso afastaria a transposição principiológica do Direito Penal ao sistema de tutela da probidade, o que não poderia ser feito sem prejuízo à coerência sistêmica do tratamento da improbidade administrativa e à máxima do tempus regit actum. Buscou-se considerar, também, as repercussões no instituto fundamental da segurança jurídica, inevitavelmente afetado por eventual decisão pela retroatividade das normas que versam sobre o regime prescricional, haja vista a correlação entre prescrição e inércia do exercício da pretensão e pela dilatação do texto constitucional. O sistema jurídico concebe a irretroatividade normativa como regra geral, à qual somente teria sido feita ressalva para o âmbito penal, de modo que excepcioná-la também no Direito Administrativo Sancionador dependeria de conferir maior maleabilidade à norma constitucional positivada.

Sujeitaram-se, em conclusão, à deliberação do Plenário: 1) retroatividade ou não da exigibilidade do elemento subjetivo do dolo aos casos transitados em julgado; 2) retroatividade ou não da exigibilidade do elemento subjetivo do dolo aos casos pendentes de decisão definitiva; 3) retroatividade ou não da prescrição geral e oito anos; e 4) retroatividade ou não da chamada prescrição intercorrente de quatro anos. Não houve unanimidade em qualquer dos itens. Encerrados os votos, quatro foram os Ministros que se posicionaram pela absoluta irretroatividade: ministros Carmen Lúcia, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber. Antagonicamente, os ministros Dias Toffoli e Nunes Marques votaram pela retroatividade em todos os casos. Foi o posicionamento do Ministro relator que prevaleceu, qual seja, pela retroatividade somente para o elemento subjetivo nos casos em aberto.

Durante o referido julgamento, dois processos aguardavam apreciação conjunta do Pleno em sede de controle concentrado de constitucionalidade: as ADIs nºs 7.042 e 7.043, ajuizadas, respectivamente, pela ANAPE (Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal) e pela ANAFE (Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais), que questionavam a constitucionalidade da legitimidade ativa exclusiva do órgão ministerial nas ações de improbidade e da obrigatoriedade da defesa judicial do acusado pela assessoria jurídica que apresentou parecer pela legalidade dos atos posteriormente apurados (art. 17, §20).

No dia 31 de agosto, então, também sob relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, foram julgados parcialmente procedentes os pedidos, permitindo às pessoas jurídicas interessadas – entendendo-se, a princípio, Administração Pública direta e indireta – a propositura da ação e a celebração de acordo de não persecução civil, e impedindo o caráter obrigatório da representação judicial do administrador pela referida assessoria jurídica, entre outras medidas. Os Ministros Nunes Marques, Dias Toffoli e o decano Gilmar Mendes divergiram do relator e tiveram voto vencido.

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