Como é amplamente divulgado, a LINDB sofreu alteração em 2018 para inclusão de uma dezena de dispositivos novos orientados para a interpretação do direito público. Trata-se de projeto que foi proposta do Senador Anastasia, do PSDB, tendo sido formulado a partir do labor de dois advogados e professores renomados da área do Direito Administrativo: Carlos Ari Sundfeld e Floriano Azevedo Marques Neto.
O projeto de lei contou com poucos debates em audiência nas Casas Legislativas, de modo que, no momento de sua aprovação, ele provocou a imediata reação de inúmeras associações, como a ANAMATRA, a AJUFE, a ANPR, a CONAMP e o SINAIT em favor de seu veto integral. O então-Presidente Michel Temer acabou vetando algumas partes muito controvertidas do projeto, sobretudo o dispositivo que pretendia criar uma ação declaratória de validade de contrato, com rito de ação civil pública, que provocaria uma acentuada judicialização (algo que se criticava…).
Atualmente, o projeto está aprovado, na Lei nº 13.655/2018, não como inicialmente engendrado, mas segue suscitando polêmicas acerca do seu conteúdo, pois se problematiza se os dispositivos são úteis, se eles são novidades ou mesmo se são aptos a resolver os problemas de segurança na interpretação do direito público…
No geral, pode-se observar que os novos dispositivos interpretativos da LINDB concentram um instrumental que pode ser ampliador do questionamento que pode ser feito aos órgãos de controle (isso ocorre, pois, para o advogado, abre-se um repertório bastante profícuo de atuação), mas, por outro lado, por parte destes órgãos de controle, a LINDB apresenta inúmeros e controvertidos desafios.
O “estado de coisas”, isto é, o “diagnóstico” identificado, no discurso dos que defenderam o projeto, foi preciso – realmente, era (e ainda é…) necessário discutir os seguintes pontos:
- superposição de controles, nem sempre justos;
- decisionismos infundados, sem a devida motivação, critério ou mesmo equilíbrio;
- falta de articulação interinstitucional ou na mesma instituição, quase sempre sujeita a mandos e desmandos;
- decisões com consequências prejudiciais aos contratos, fulminando a desejada segurança jurídica dos negócios celebrados com o Poder Público;
- necessidade de maior consensualidade nas decisões de controle;
- o “medo” que os gestores acabam tendo em função de possíveis distorções dos órgãos de controle, o que gera paralisação pela ausência de vontade de “inovar” diante dos riscos que isso representa, ainda que na margem de discricionariedade administrativa; e
- urgência de contenção do ‘elemento surpresa’ nas imposições enfrentadas, que também devem ser feitas de forma equilibrada no tocante às consequências, sem desproporção, com previsibilidade etc.
Neste ponto, o debate sobre a necessidade de conter excessos, desproporções e desequilíbrios dos controles é um debate no qual os advogados possuem uma casuística enorme das distorções e injustiças enfrentadas no seu cotidiano, é quase que um “desabafo” só o fato de poder expor e se sentir também identificado com outros casos de injustiça…
Contudo, ao analisar tecnicamente os dispositivos da LINDB, que supostamente se voltariam, então, a equacionar os problemas de “segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público”, percebe-se, que, não obstante um diagnóstico preciso, a TERAPÊUTICA, isto é, a SOLUÇÃO apresentada em termos de inovações legislativas é composta, em grande medida, por “SOLUBLEMAS”, isto é, soluções que estão longe de resolver os problemas diagnosticados, muito pelo contrário: são SOLUBLEMAS porque elas não deixam de produzir novos problemas, dada a mesma imprecisão, o mesmo decisionismo, a mesma insegurança e de alguns outros pontos mais problemáticos e especulativos que derivam da análise do novo texto normativo da LINDB…
Assim, por exemplo, “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em VALORES JURÍDICOS ABSTRATOS sem que sejam consideradas as CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS da decisão”, conforme art. 20 da LINDB, acrescentado pela Lei nº 13.655/2018. Ainda, o parágrafo único do art. 20 da LINDB determina que a motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma, inclusive em face das possíveis alternativas.
Em primeiro lugar, o consequencialismo já deveria estar pressuposto na ação administrativa (mas, dirão muitos, não custa ressaltá-lo…). Contudo, essa redação, já tivemos oportunidade de criticar em um pequeno texto escrito sobre a LINDB, é bastante estranha, pois pode gerar uma falsa percepção de que os argumentos consequencialistas pragmáticos são mais importantes do que os argumentos de substrato valorativo, o que é uma (possível) interpretação bem problemática.
Começa que: sempre que se faz uma aplicação jurídica, o valor abstrato é aplicado ao caso concreto… Isso é o primeiro passo que se aprende em hermenêutica com base na semiótica, pois o conceito abstrato perde sua abstração numa aplicação/manifestação concreta…
Exceto em visões absolutamente platônicas, geralmente, é consenso, caso se parta do triângulo semiótico – que engloba os vértices: (a) termo, palavra ou expressão linguística; (b) conceito ou ideia; e (c) manifestação concreta ou fenomênica na realidade –, que a aplicação fenomênica do conceito é sempre concreta, nunca abstrata…
Então, o órgão decisor sempre irá se manifestar numa aplicação concreta de valor jurídico abstrato… sendo estranha essa redação: “não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos”, pois sempre a decisão se dá com base em uma aplicação concreta, com base na realidade. Os apoiadores dessa alteração chamaram essa análise de: primado da realidade, o que não é nenhuma novidade…
Daí, muito se costuma argumentar: mas, o problema é usar de conceitos indeterminados, como “dignidade humana”, algo indefinido, sem maior segurança técnica quanto à sua concretude…
Trata-se também de argumento problemático, pois o caso concreto é sempre mais rico do que a suposta tentativa de se fechar um texto normativo… Mesmo os termos mais definidos como “homem” ou “ser humano”, podem oferecer problemas interpretativos em situações concretas da vida, como, por exemplo, numa escavação em que se encontra ossadas que ainda não se configuram como hominídeo e nem como primata do gênero pan, mas, ainda assim, apresentam similaridades, por exemplo, como os homo sapiens, isso deixará os antropólogos intrigados, ainda que o conceito de homem seja algo supostamente preciso (aliás, essa análise é bem conhecida da obra de Genaro Carrió…)….
Por outro lado, os termos mais abstratos como “dignidade humana” na aplicação concreta podem ganhar uma precisão que extrapola o grau de especulação. Isso se dá porque não se interpreta apenas o texto normativo, mas a interpretação também ocorre no mundo dos fatos, daí a crítica que a hermenêutica contemporânea faz em relação à insuficiência da subsunção como operação lógico-formal apta a garantir equilíbrio na decidibilidade (pois esta é questão que envolve razão prática e não lógica pura)…
Por exemplo, recentemente, a criatividade sem bom senso nos trouxe um caso de explícita violação à dignidade humana: a Associação Mato-Grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção, em parceria com inúmeras organizações e entidades públicas, estruturou um desfile chamado de “adoção na passarela” no Shopping Pantanal, para 200 pessoas, em que crianças eram expostas (com apoio das lojas de roupas e calçados que doaram itens a serem usados no desfile, ainda ajudando no embelezamento das crianças), em local de consumo para mostrar o quão bonitas e desenvoltas eram, para que fossem adotadas.
A organizadora do evento chegou a afirmar que o juiz havia permitido a realização do desfile… Que eles não pretendem “brincar com as crianças”, mas que tinham o respaldo do Judiciário… Ainda, quis-se argumentar que dois adolescentes, respectivamente, de 14 e 15 anos “foram adotados”…
Neste caso, qualquer intérprete jurídico, com o mínimo de bom senso, o que nem sempre ocorre, perceberia que se trata de explícita violação à dignidade humana. Ser tratado com dignidade significa não ser reificado, isto é, não ser tratado COMO COISA, substituível por outras coisas, comparáveis em uma esteira/passarela de desfiles, como se o que se quisesse comprar, em vez das roupas das crianças, fossem as próprias crianças (os produtos a serem expostos para doação)… Quando um ser humano é visto como produto a ser exposto e exibido como mercadoria em um Shopping Center isso explicitamente viola sua dignidade, pois as pessoas são “fins em si”, não são meios para o deleite e o arremate de outros.
As pessoas possuem sentimentos, são únicas, possuem suas idiossincrasias, possuem um mundo interior próprio, não são produtos a serem selecionados pela aparência em meio a outros numa passarela de adoção… Imagine do ponto de vista psicológico: o quanto isso pode afetar a auto-estima das crianças que, já abandonadas, foram postas em desfile para doação…
Aí os consequencialistas (os desequilibrados – claro… pois consequencialismo também é especulativo… aqui se quer referir aos que focam mais em questões econômicas e que acham, por outro lado, que valores, ética, integridade, dignidade podem ser no fundo óbices à capacidade inventiva humana… que precisa ser mais flexível…) poderiam dizer: – ah, mas você prefere que elas fiquem “mofando” para adoção, sem que o “gestor” bem intencionado “inove” e faça bons negócios para todos os envolvidos, alavancando o shopping, intensificando as vendas (vai que essas duzentas pessoas comprem mais, gostem das roupinhas e sapatos “gratuitamente” cedidos nessa ação “do bem”…) e, ainda, produzindo duas adoções que não ocorreriam se essa “criatividade toda” não fosse tolhida pelo “medo” incutido de um ordenamento muito inflexível, que prefere valores abstratos a consequências práticas… Diriam, ainda, que é mais importante que sejam consideradas as consequências práticas do que valores jurídicos tão abstratos como “dignidade humana”…
Mas isso é SOLUBLEMA!!! Valorizar mais as consequências práticas é algo tão indefinido e inseguro quanto aplicar valores… dado que a pergunta que se faz é: – consequências práticas para quem? Consequências práticas para o que?
Uma coisa é a consequência econômica para o shopping, que aumenta vendas e pretende promover ações que repercutam positivamente na sua imagem (se bem que, nesse caso, ocorre exatamente o oposto, gera um “solublemaço”: pois a passarela da adoção, pela violação à dignidade, provoca, no fundo, um risco enorme de dano reputacional ao shopping onde essa ação ocorreu…)… Ou consequência de adoção: geraram duas adoções? Ou consequência de danos psicológicos das crianças expostas como mercadoria e frustradas por não serem arrematadas, mesmo que produzidas, com as belas roupinhas, para o evento? Ou a consequência de violação de leis protetivas às crianças e adolescentes? Afinal, de que consequência se trata?
A aplicação jurídica é um fenômeno complexo, então, falar em considerar as consequências pode ser algo tão especulativo ou até AINDA MAIS especulativo do que a aplicação (sempre concreta) dos valores jurídicos abstratos.
A mesma questão tive oportunidade de levantar no último debate que participei sobre a LINDB, em que apontei que a Súmula Vinculante 5 soluciona o problema econômico de Erário da AGU, no tocante àquela questão, pois caso houvesse as invalidações todas dos cinco anos de PADs sem advogados, dentro do conteúdo da súmula anterior do STJ, haveria impactos de mais de um bilhão de gastos em reintegrações de servidores condenados em PAD, sem esse rigor de defesa técnica…
Mas, e do ponto de vista daqueles que foram demitidos sem que se apontasse tecnicamente, por exemplo, uma prescrição intercorrente ou uma nulidade, pois não houve uma defesa mais precisa?!? Não haveria também necessidade do consequencialismo, isto é, consequencialismo do sentido de ampla defesa e das garantias constitucionais, pois a Súmula foi editada meses após e justamente em reação à Súmula do STJ que exigia a presença de advogado em todas as fases do PAD!?!
Pior, fala-se em esferas administrativa, controladora e judicial, enfiando todas essa situações no mesmo balaio… sem se considerar inúmeras peculiaridades próprias… Por exemplo, se se trata de esfera administrativa, há a busca pela verdade real, daí a decisão tem maior amplitude de ponderação, na sua motivação, se se trata de esfera judicial, depende, pois se for judicial derivada de indagações de índole dispositiva, em processo civil, por exemplo, a própria decisão do juiz, enquanto instância de controle, estará adstrita a uma série de limitações processuais, sem poder alcançar a amplitude toda de demonstrar todas as POSSÍVEIS ALTERNATIVAS… sob pena de ser até invalidada pela instância superior…
Então, o debate sobre os sentidos dos dispositivos da LINDB está só começando… até porque, apesar da ampla margem de novas perspectivas para serem questionadoras da justeza do controle, ainda assim, serão os órgãos de controle que, ao cabo, enquanto intérpretes autênticos de aplicação do ordenamento, darão o teor interpretativo na aplicação concreta de cada um desses dispositivos, formando um repertório a guiar o intérprete…
Sem dúvida que, para aqueles que atuam no questionamento dos controles, como é o caso dos advogados, abre-se um leque bem grande de oportunidades argumentativas e de momentos negociais… Em suma, não se trata de debate fla x flu ou de torcida contra e a favor, até porque a lei já existe (e de forma muito distinta do projeto original)… Também, uma vez que existe, ela ganha vida própria interpretativa, não adianta querer “chamar de sua” e não permitir que outras pessoas analisem suas potencialidades e inocuidades concretas… pois o alargamento ou a sua restrição de sentido ainda será alvo de construção tanto jurisprudencial, como de influência doutrinária, algo que está SÓ COMEÇANDO…
Trata-se apenas de uma reflexão sobre se a lei criada é apta a resolver a situação caótica de incerteza jurídica que impulsionou a sua criação, isto é, se ela apresenta SOLUÇÕES efetivas e aptas…, sendo que, da problematização dos possíveis sentidos derivados do seu texto normativo, em muitos dos casos, ela apresenta apenas “SOLUBLEMAS” interpretativos… Supostas soluções que provocam outra miríade de problemas…
Irene Nohara
Advogada parecerista. Livre-docente em Direito Administrativo (USP/2012), Doutora em Direito do Estado (USP/2006), Mestre em Direito do Estado (USP/2002) e graduação pela USP, com foco na área de direito público. Professora da pós-graduação stricto sensu da Universidade Presbiteriana Mackenzie (mestrado e doutorado). Autora de diversas obras jurídicas.