TRANSFORMAÇÕES NO REGIME DAS CARREIRAS PÚBLICAS

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TRANSFORMAÇÕES NO REGIME DAS CARREIRAS PÚBLICAS

Fúlvio Machado Faria defendeu recentemente o Mestrado na área do Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP. A Dissertação, de orientação do Professor Edmir Netto de Araújo, aprofunda as transformações do Estatuto do Servidor, tendo impressionado os avaliadores da banca (Marcos Perez, Irene Nohara e Ana Maria Pedreira) pela profundidade da realização de um comparativo entre o sistema francês, no qual mergulhou na análise dos principais referenciais, que tanto nos influenciou, e o brasileiro, bem como das transformações dos cargos nos Estados Unidos.

O trabalho de Fúlvio perpassa pela história do funcionalismo: do ofício ao cargo, de um sistema de partilha de despojo para os concursos públicos, e, por conta da atualidade e importância do assunto, o Portal DireitoAdm encomendou uma entrevista para o deleite do público leitor sobre uma pesquisa de mais de 350 páginas de transformações das carreiras públicas, em que Fúlvio surpreende pelo autodidatismo na leitura original de diversos referenciais franceses e pelo conhecimento que galgou alcançar no assunto a partir do seu laborioso trabalho.

Trata-se de tema atual, tendo em vista a Reforma Administrativa em trâmite no Congresso Nacional, a qual pretende promover algumas restrições em relação ao regime estatutário, ampliando terceirizações e a fuga ao direito do trabalho.

Primeiramente, gostaríamos de parabenizá-lo pela profundidade e utilidade da pesquisa e agradecer em nome do Portal DireitoAdm a oportunidade de entrevistá-lo sobre o tema. Antes, gostaríamos que esclarecesse o que é o estatuto dos servidores no Brasil do ponto de vista jurídico?

Fúlvio M. Faria.

Eu que agradeço, professora, por primeiro a senhora ter feito, desde a qualificação, importantes contribuições para esta pesquisa, ajudando no seu direcionamento dela.

A pesquisa e seu tema de fundo sempre me instigaram, principalmente pelo fato de que, na labuta como advogado, lido com muitas questões afetas a ele.

Respondendo essa pergunta inicial posso dizer que ela é de fundo a pergunta que busquei responder na minha pesquisa.

Quando entrei para a pós-graduação com a pretensão de pesquisar o tema afeto sobre aos servidores públicos, esta pergunta estava quase diariamente[1] na minha cabeça, sempre eu pensava: afinal, o que é o estatuto dos servidores no Brasil? O que ele é do ponto de vista jurídico?

Bom, na pesquisa, eu tento responder de várias formas essa questão, até por isso o título final de “Transformações no Estatuto do Servidor Público”. Na revisão do texto, que já está a caminho, estou trabalhando para deixar mais explícita essa resposta, conforme irei pontuar a seguir. Vamos lá.

É recorrente, nos manuais de direito administrativo, a definição do estatuto dos servidores públicos, sob o aspecto jurídico, dar-se como aquele instrumento de caráter regulamentar, unilateralmente fixado pela administração e que se presta a regular as relações jurídicas dos servidores com o Estado. Disso, o que ficou no imaginário prático, por influência principalmente do Estatuto da União, foi encontrar em cada ente federado um texto regulamentar fixando unilateralmente as obrigações e os deveres dos funcionários.

Mas essa definição mais me inquietava do que aquietava, pois, por ter trabalhado em vários municípios, minha experiência prática indicava que as coisas não eram bem assim. Vi municípios que não tinham um estatuto geral em lei e outros que tinham apenas uma lei especial definindo que ali naquela localidade seria aplicado o regime estatutário, sem, contudo, minudenciar o que era esse acervo relacional. Esses desencontros entre a prática e a teoria me incomodavam. Esse era um dos motivos de eu querer pesquisar e entender mais a fundo sobre esse mundo.

O problema inicial com o qual começo a pesquisa é sobre o próprio sentido da palavra “estatuto”, identificando-a como portadora de vários significados concorrentes. Tendo isso em mente é que busco uma metodologia adequada para, nesse mar de significados concorrentes, entender o estatuto para a realidade dos servidores e daí compreender ele também sob o aspecto jurídico. É a partir daqui que se inicia todo o debate que culminou nas mais de 350 páginas da dissertação.

Sintetizando todo o processo da pesquisa e tentando explicitar a resposta da primeira indagação, esclareço que, numa tentativa de definição ampla, o estatuto dos servidores no Brasil, do ponto de vista jurídico, é todo o ambiente normativo de organização do servidor com o Estado, que nesse ambiente se dá por nele haver mais situações jurídicas objetivas, diga-se, estatutárias, do que situações jurídicas subjetivas.

É por conta disso que quando se diz que um servidor está submetido a um estatuto ele está, portanto, em uma situação estatutária. Mas o que seriam essas situações estatutárias que na pesquisa defino por predominância estatutária na relação? Seria basicamente a situação de que quando esse servidor ingressa no serviço público muitas das situações da sua vida funcional já estão previamente fixadas em regras ou situações objetivas – estatutárias –, tais como férias, progressões, promoções, regras disciplinares, cultura do trabalho, e mesmo no curso da sua vida funcional pode o Estado-patrão modificar essas situações jurídicas objetivas, sem depender da anuência do funcionário.

Esses esclarecimentos iniciais em termos jurídicos têm muito da teoria de Léon Duguit e Maurice Hauriou sobre a ideia estatutária.

Revisitando esses clássicos percebi também que a relação entre as situações objetivas (estatutárias) e as situações subjetivas (contratual) não são necessariamente excludentes. O que define um campo ou um ambiente como sendo estatutário é a intensidade e a predominância das situações objetivas em detrimento das situações subjetivas.

Nesse particular, esses mesmos clássicos reconhecem que o ato de vontade do servidor ingressar no serviço público é uma situação subjetiva, reconhecendo que existiria mesmo no campo estatutário uma situação subjetiva mínima – a de ingresso –, sendo as demais condições de sua vida de trabalho fixadas predominantemente por situações objetivas.

Mesmo os empregados da iniciativa privada podem-se dizer reconhecidos como dentro de um estatuto – a CLT – no qual praticamente todas as regras da sua vida funcional já estão previamente também regradas por situações objetivamente fixadas. É comum mesmo na iniciativa privada os empregadores formarem contratos com seus empregados, cujas cláusulas são escassas, deixando todo regramento da vida funcional para o ambiente das regras objetivas fixadas na CLT. Por isso alguns autores em direito do trabalho argumentam a existência de um direito estatutário nessas relações entre empregado e empresa. Há, no entanto, que se reconhecer que, no direito do trabalho, as convenções e os acordos coletivos, bem como os acordos individuais são ainda muito presentes, podendo-se dizer que apenas parte do acervo relacional dos empregados é estatutária, isto é, apenas parte desse acervo relacional é composta por situações objetivas. É evidente que isto dependerá de análise caso a caso de qual tipo de trabalhador e empregador.

Os manuais em direito administrativo, como eu já disse acima, definem a relação do servidor com o Estado como sendo estatutária, em geral por ser de natureza regulamentar e fixada unilateralmente pela autoridade. Analisando essa concepção com a pesquisa, percebi que quanto ao aspecto regulamentar procedia a conclusão, pois sendo situações objetivas, a sua natureza passa a ter natureza regulamentar, tanto que não encontrei divergência dos autores sobre isso.

Já quanto à sua fixação unilateral, antes da pesquisa, confesso que eu era adepto dessa orientação. Após a pesquisa, passei a compreender que a concepção unilateral é mais histórica do que teórica e mais tem a ver com as formas com as quais o estatuto pode se revestir do que com o ambiente estatutário propriamente dito. Inicio melhor a explicação dessa questão com um exemplo histórico que me deparei na pesquisa.

Historicamente, a ideia unilateral se dava em razão dos decretos regulamentares de constituição de um departamento ou serviço do Estado, em que estavam as situações objetivas regrando a vida dos servidores com o Estado. Era comum a vida funcional dos servidores ser regrada dentro desses decretos setoriais ou de serviços públicos. Eles eram de natureza unilateral pois que o chefe supremo, seja o presidente, imperador, ou ministro podiam mudar as regras do jogo por um simples decreto. A pessoa investida no poder de autoridade pessoalizava a própria existência do Estado com a edição desse ato unilateral. Aliás, foi a partir dessa cultura unilateral que houve a reação de vários atores políticos e sociais que reivindicavam um estatuto em lei geral. Daqui já se vê que a unilateralidade é uma das formas possíveis de o estatuto emergir juridicamente.

Percebendo a natureza unilateral como uma das formas com que esse ambiente é juridicamente formalizado, haverá outras formas de o ambiente estatutário emergir; e isso a mim ficou muito claro nessa fase de discussão entre os franceses da época.

A primeira manifestação jurídica do ambiente estatutário estava nos já citados decretos setoriais e, mais importante ainda, na jurisprudência do Conselho de Estado que interpretava esses decretos e refletia a deontologia da função pública à época. É por isso que trago a definição dos franceses de haver já a essa época o que eles entendiam por estatuto jurisprudencial, em que muitas situações objetivas da vida funcional dos servidores já se construíam nos precedentes desta corte que interpretavam os atos unilaterais.

No entanto, pelo período histórico que a França vivia, nessa época, esse ambiente estatutário era mais arbitrário e muitas vezes atendia a favoritismos políticos de todas as ordens, o que levava a críticas dessa realidade, também de todas as ordens, incluindo nessa realidade o próprio Conselho de Estado que em sua jurisprudência conferia vieses mais arbitrários nessas questões funcionais.

Com isso, surge um movimento político e social para reformas nesse ambiente estatutário, com o fim de que, como ponto de partida, não fosse mais feita a organização do ambiente normativo dos servidores nos decretos setoriais e sim em uma lei geral, ou melhor, em um estatuto em lei geral. Claro que, nessa época, foram várias as correntes em disputa, incluindo os sindicatos que queriam a negociação coletiva na organização das relações funcionais e não o estatuto em lei.

O propósito desse espírito reformador era de que os servidores precisavam de um ambiente mais profissional, mais estável, sem as influências políticas pelos favoritismos e sem as perseguições arbitrárias, situações estas últimas – de favoritismo e de arbitrariedade – que os atos unilaterais nos decretos permitiam fluir; e que assim, segundo teóricos e políticos da época, esse espírito profissional somente seria atendido e perfeitamente concretizado com um estatuto em lei geral.

O interessante é que, nesse processo de mudança de forma do ambiente estatutário, o próprio Conselho de Estado, antes mesmo da edição de um estatuto geral em lei, vai progressivamente evoluindo e imprimindo nesse ambiente estatutário um espírito profissional dos servidores públicos, a começar por julgados que reconheceram a necessidade de dar ciência aos servidores acerca da existência de processos de demissão instaurados contra eles, sob pena de nulidade.

Todas essas discussões, na França, estavam entre a metade do século XIX até a primeira metade do século XX.

Esse movimento e espírito se consagra com o estatuto geral dos funcionários (statut général des fonctionnaires) materializado em lei geral em 1946 na França.

No Brasil, com introdução teórica profunda nos debates da Câmara em 1913 pelo professor, jurista e deputado Moniz Sodré e concretizado, pelas influências do Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP, em 1939, no Governo de Getúlio Vargas, o estatuto em lei geral teve espírito igual ao dos franceses, claro que com as particularidades do nosso Brasil que tento também realçar na pesquisa.

Bom, até aqui, como se vê, acabo por referenciar muitas vezes a palavra “estatuto” tanto no sentido de forma e como também no sentido de ambiente, e aqui justifico o meu tratamento diferenciado para o termo estatuto empregado em cada qual.

Confesso que antes da pesquisa eu não tinha esse discernimento. Mas ao estudar a função pública francesa em seu aspecto histórico e teórico e também os clássicos já citados que tratam da teoria estatutária, há neles uma certa clareza de que o ambiente eram as normas sociais, econômicas e jurídicas, que com o tempo vão se transformando enquanto conteúdo e mesmo enquanto forma.

Isso é interessante compreender pois, antes do Estado de Direito como o conhecemos, os funcionários já existiam e muitos dos privilégios deles eram garantidos por normas morais, isto é, eram garantidas já nesse ambiente social. Por exemplo, o sujeito que nascia filho de funcionário era a ele moralmente dado que na vida adulta também seria funcionário. Isso estava socialmente atribuído, isso estava objetivamente dado, isso estava estatuariamente dado.

Com o Estado de Direito, as normas sociais passam a ser desenhadas e colocadas nos textos jurídicos, seja na jurisprudência, nos decretos, nos decretos-leis (décrets-lois), e, com o amadurecimento do poder dividido com o parlamento, cada vez mais nos textos constitucionais e em leis gerais.

É esta a diferença entre ambos. O ambiente é mais antigo que as formas que dão a ele o arcabouço jurídico. Na dissertação, compreendi que é no ambiente que se instalam os valores, ou melhor, a deontologia da função pública, em que nele são estabelecidos os valores como a estabilidade, a inamovibilidade e outros. Esse ambiente não se manifesta apenas em leis gerais, ele se manifesta na jurisprudência, nos decretos regulamentares, na cultura do trabalho, na deontologia.

A esse ambiente na dissertação que dou o nome de conteúdo, valores, deontologia, pois é nele que se está o espírito que se quer instalar em determinada função pública. É esse ambiente que primeiro enquanto norma social será transformado em norma jurídica, em situações jurídicas objetivas. Para essa transformação, as formas terão importante função, pois, como já citei acima, as formas dessa normatização jurídica em decretos tinham uma veia mais arbitrária e para atender aos favoritismos de todas ordens, o que não garantia a estabilidade desse ambiente. Já quando a forma passou a ser reivindicada em lei geral foi para que o ambiente se transformasse em um ambiente profissional, estável e principalmente republicano.

Esse ambiente, independente do espírito que se quer dar a ele, será a princípio estatutário, pois que, como já dito também, as situações, independente das formas, serão predominantemente objetivas (estatutárias) quando tratamos do meio no qual estamos inseridos. Mais adiante retomarei a essa ideia estatutária nos exemplos de Duguit.

Percebi também, na pesquisa, que há entre a forma e o ambiente um intercâmbio que funciona como um retroalimentando o outro para as expectativas ou as funções que o grupo ou a sociedade têm em relação àquele conteúdo regulado. Por exemplo, se a sociedade e principalmente as corporações mais profissionais no Estado queriam serviços mais qualificados, mais estáveis, com recrutamento mais republicano e meritório, esse ambiente poderia se valer da forma de lei – a lei geral dos funcionários – que reafirmaria novamente esses valores no ambiente. Este, por sua vez reforçaria em seguida a própria força da lei; a lei novamente as forças do ambiente, e assim sucessivamente. As formas serviriam como função de transformação do ambiente.

Após essas reflexões, ainda acho pertinente a definição acima apresentada de que o estatuto dos servidores no Brasil do ponto de vista jurídico é todo o ambiente normativo de organização das relações entre o servidor e o Estado, cujo ambiente se dá por nele haver mais situações jurídicas objetivas, diga-se, estatutárias, do que situações jurídicas subjetivas.

Porém, com a atenção devida, essa conclusão precisaria de reparos pois ela seria aplicável também para os trabalhadores da iniciativa privada, isto porque, como já citei, muitos estão submetidos às situações objetivas já dadas na CLT.

Aqui me aprofundo novamente. O que difere um ramo do outro é o ambiente. No ambiente de organização do servidor com o Estado, há, em regra, uma deontologia, pelo menos era o que se preconizava nas discussões iniciais sobre a adoção do estatuto em lei, que se dá diferentemente da iniciativa privada. É aqui, para mim, na verdade, as celeumas no Brasil sobre o tema do funcionalismo e que leva a uma variedade na adoção dos regimes.

Na França, nas discussões teóricas da função pública, entendia-se que na administração pública haveria uma deontologia diferente e mesmo incompatível com a dos empregados da iniciativa privada. Nessa deontologia estaria que os funcionários públicos precisariam de uma carreira clara e específica visto que suas funções não encontrariam equivalentes no setor privado[2] e para o exercício dessa função especial precisariam ser admitidos por processo meritocrático (concurso) e terem estabilidade no cargo.

Essa deontologia, segundo os franceses teóricos, como François Gazier[3] e Jean-Michel de Forges[4], foi garantida por um regime especial que dá o nome de estatutário e regulamentar. Esses autores dão o nome a essa realidade especial de função pública fechada. Esses estudos estão por assim dizer mais dentro do campo de pesquisas da função pública propriamente dita como ramo autônomo em relação ao direito administrativo.

Novamente, a quem estiver atento, parecerá contraditório o que eu disse: ora não são as situações objetivas, portanto, que definem ser estatutário e sim a deontologia que se quer para os funcionários é que definirá estar um servidor em um estatuto ou não. Ambas as afirmações não estão incorretas. Explico melhor.

A palavra estatuto, como já realcei, é portadora de vários significados concorrentes. Passo boas páginas na pesquisa tratando sobre isso. Diante desses vários empregos é natural que em determinadas ciências e seus ramos se adotem conotação do termo diferente de outras ciências ou ramos.

Por exemplo, nesses teóricos que definem a função pública em fechada e aberta, a ideia estatutária estaria relacionada à primeira. Esses teóricos estariam dentro do campo de estudos da função pública, que ora é colocado como um ramo independente do direito administrativo ora como uma disciplina autônoma dentro dele.

Já, para Léon Duguit e Maurice Hauriou, que estão mais no campo de estudos da teoria geral do direito, a ideia estatutária estaria mais conectada com a existência de normas sociais (situações jurídicas objetivas) antes mesmo do reconhecimento da autonomia da vontade (situações jurídicas subjetivas).

Daí que com essas correções e ressignificando a definição minha proposta acima, tentando uma conciliação entre essas abordagens, diria que, em tom conclusivo, o estatuto dos servidores no Brasil do ponto de vista jurídico é todo o ambiente normativo de organização do servidor com o Estado, cujo ambiente se dá por nele haver mais situações jurídicas objetivas, diga-se, estatutárias, do que situações jurídicas subjetivas e cujo ambiente apresenta-se com uma deontologia especial e em regra incompatível com a iniciativa privada.

Essa definição acaba permitindo compreender que em realidades municipais onde não há um estatuto em lei geral permita dizer ser estatutário por ter outras fontes de situações objetivas que regulam a vida do servidor, desde o § 4º do art. 39 da Constituição à cultura administrativa de organizar, até mesmo à deontologia que a própria jurisprudência imprime sobre esses servidores.

Essa deontologia especial a que me refiro é exemplificada com a recente Edição n. 140 da Jurisprudência em Teses do STJ, que ao tratar de teses sobre o processo administrativo disciplinar, estabelece como 1ª tese a de que: “A Lei n. 8.112/1990 pode ser aplicada de modo supletivo aos procedimentos administrativos disciplinares estaduais, nas hipóteses em que existam lacunas nas leis locais que regem os servidores públicos”.

Ora, isso nada mais é do que incorporar nos processos disciplinares dos demais entes federados, claro quando das lacunas – e elas existem –, a deontologia e toda cultura disciplinar desenvolvidas para os servidores efetivos da União. Essa deontologia especial é muito diferente da aplicada no setor privado, que pela simplicidade do art. 482 da CLT nem sempre permite ao empregado o pleno direito de defesa, tendo ele de levar à justiça do trabalho a tentativa de reversão, esta a qual tem uma jurisprudência particular ao tratar sobre o tema do que a justiça comum.

Mais adiante quero retomar a discussão desse ambiente e sua deontologia, pois são eles que estão em tensão desde pelo menos 1940 no Brasil e que nessas últimas décadas vem sofrendo profundas reformas e transformações.

Em que momento histórico no Brasil começa a ser utilizado o estatuto dos servidores e qual o objetivo? Como a categoria do ato-condição de Duguit influenciou a abordagem jurídica do estatuto e qual o reflexo prático disto?

Fúlvio M. Faria.

No Brasil, com a pesquisa, encontrei que as primeiras manifestações em textos de valor jurídico que disciplinavam de algum modo a relação dos servidores com o Estado se davam já mesmo nos forais que disciplinavam a organização administrativa das vilas, claro que em tom muito escasso e rudimentar.

Foram, contudo, nos decretos setoriais e de serviços públicos editados pelos ministérios que se começou a dar forma à previsão dos direitos e obrigações dos funcionários. Exemplo é o Decreto do Imperador de n. 399 de 21/12/1844 que “Dá novo Regulamento para o serviço dos Correios do Império”. Neste Decreto, embora unilateral, já se encontra a criação de cargos, com a previsão de atribuições e competências respectivas, bem como o início de um regime disciplinar mais detalhado, como o art. 65 e seguintes, prevendo até mesmo o direito a recurso e a necessidade de motivo por escrito (motivação) nas decisões que aplicavam sanção.

Até a edição do Estatuto de 1939 eram nos decretos setoriais e de serviços públicos que se encontravam os direitos e obrigações dos servidores. Por estarem em um texto jurídico, mesmo sendo unilateral, permitiam que os funcionários que se sentissem lesados, levassem a discussão para o judiciário. É daí que começa também a surgir uma jurisprudência discutindo a matéria dos servidores públicos.

Portanto, entendendo o estatuto como esse ambiente normativo de organização do servidor com o Estado mais em situações objetivas, ele – o estatuto – já se dava nos decretos setoriais e de serviços públicos retroalimentados pela jurisprudência que a cada dia apreciava as questões funcionais. Esse fenômeno dos estatutos setoriais e do estatuto jurisprudencial no Brasil deu-se de modo muito semelhante ao que ocorreu na França.

É aqui que faço uma ressalva de que mesmo antes do movimento Daspiano já havia um mínimo de manifestação e tentativa de profissionalismo e técnica nesse ambiente dos decretos contra as mazelas da politicagem e do forte ambiente patrimonialista. Nos decretos que tive acesso, a depender do setor do Estado, havia uma exigência clara de habilidades técnicas dos candidatos e uma espécie de estruturação do órgão que em muito se assemelhariam com as estruturas atuais.

Esse avanço é possível perceber na própria estruturação dos correios que vê ao longo do Decreto n. 3.443 de 12/04/1865 até a edição do Decreto n. 1.692-A de 10/04/1894. Este último decreto, por exemplo, prevê regras no processo de admissão, como regras de publicidade prévia (30 dias antes), tipos de exames e aplicações (provas escritas e orais, sobre legislação da área e práticas do serviço), sendo o primeiro instrumento a minudenciar mais esse tema, e amplia ainda mais as disposições do regime disciplinar, estabelecendo as penas, o direito ao recurso, uma série de deveres, sendo a parte mais completa e semelhante aos estatutos contemporâneos.

Acredito que nesse ambiente é que nasce um sentimento de corpo de funcionários em que, a partir da percepção da importância profissional deles, começam a pressionar cada vez por mais melhorias nos serviços e nas condições de trabalho. É nesse sentido a formação no ambiente de um sentimento coletivo exigindo, como ponto de partida dos direitos e das obrigações dos funcionários, uma lei geral ao invés de um decreto setorial.

Essa época no Brasil coincide com a mesma época da discussão francesa – entre a metade do século XIX até a primeira metade do século XX –. Nos debates do Congresso brasileiro, rememorado na pesquisa, já havia discussão sobre a adoção de uma lei geral para combater o favoritismo e os abusos de todas as ordens e, assim, dar condições dignas, profissionais e estáveis para os funcionários.

É curioso que, nessas discussões do Congresso, os deputados nos discursos citam um fenômeno social curioso: as derrubadas. As derrubadas ou degolas eram as exonerações na sua maioria ilegais dos governos novos que sucediam os anteriores por processos de eleições durante a Primeira República. Antes mesmo de um estatuto geral em lei e interpretando sistematicamente os decretos, o judiciário entendia que muito dessas exonerações eram ilegais, o que levava ao Estado a pagar volumosas indenizações e a reintegrar esses funcionários. Daí que advogavam os parlamentares da época o fim das derrubadas com o estabelecimento de um estatuto em lei prevendo as regras gerais para demissão e da estabilidade no posto público.

Essas discussões sinalizavam claramente a necessidade de um estatuto geral em lei, o que ocorreu com Getúlio Vargas em 1939.

Perceba-se que esse curso evolutivo no Brasil passa ao lado das discussões jurídicas teóricas.

Socialmente, a forma do estatuto era mais pensada na sua utilidade prática para resolver os problemas de gestão de pessoal, sem, com isso, adentrar nos meandros lógicos das teorias para justificar a relação do servidor com o Estado.

Contudo, os debates franceses teóricos e jurídicos à época serviram de amparo nas discussões dos congressistas para criar o ambiente favorável ao estatuto em lei entre os juristas.

É daí que se começa a produzir a justificação cada vez maior da situação estatutária dos servidores em relação ao Estado. Essa justificação teórico estatutária, no Brasil, já se dava na jurisprudência antes mesmo da edição da lei geral.

Decorre dessas discussões a adoção dos atos-condição de Duguit, que passo a explicar rapidamente.

Como já disse acima, deve-se ter em conta que o estatuto tem vários sentidos concorrentes sobre o próprio termo. Em concepções mais gerais sobre o emprego do termo estatuto, tem-se nele uma ideia de status especial em relação aos demais membros da sociedade. Um exemplo atual ajuda a elucidar sobre isso. Quando falamos do Estatuto da Criança e do Adolescente, estamos falando de um corpo de regras que regulam dentro da sociedade um corpo específico de pessoas: as crianças e os adolescentes. Há aqui essa ideia de o estatuto representar uma condição especial desse corpo em relação aos demais membros da comunidade. Outro exemplo é o Estatuto dos Advogados, o qual prevê direitos e deveres aos advogados, dando a eles status especial em relação aos demais membros da sociedade.

Esse tom de especialidade, ou que necessite de uma deontologia especial, é possível identificar na razão do surgimento dos estatutos das cidades contra os poderes senhoriais da Idade Média. Os estatutos das cidades constituíam um status especial dos membros das cidades face aos poderes senhoriais. É nesse processo de autonomia das cidades que surgem as teorias estatutárias para justificar a comunicabilidade de um estatuto de uma cidade com o estatuto de uma cidade vizinha, sem a interferência dos poderes feudais. É aqui a discussão da teoria estatutária em um importante ramo do direito, o direito internacional privado – DIP , dizendo alguns autores ser aqui o nascimento do DIP.

É certo que ao longo do tempo, à palavra estatuto, foi dada sempre essa característica de especialidade de um grupo de pessoas em relação a toda sociedade de um território. Esse sentido geral influenciou os teóricos e os doutrinadores na formulação de suas teorias, incluindo Duguit.

Para Duguit[5], e aqui já apresentando sua teoria estatutária, existem as situações objetivas e subjetivas, como já apresentei acima. Essas situações se expressam em termos jurídicos pelos atos-regra e os atos-condição como expressão das situações jurídicas objetivas e os atos-subjetivos, das situações jurídicas subjetivas.

Os atos-regra, de natureza objetiva, são a própria lei geral conhecida, que se aplica a todos indeterminadamente. Quanto a esta espécie não há muita complicação.

Contudo, há situações jurídicas objetivas que somente se aplicam a determinados sujeitos ou coisas. É daqui o sentido dos atos-condição. Eles são a condição para que um determinado conjunto de situações objetivas passem a ser aplicadas a determinados sujeitos. Esse ato-condição pode se dar voluntariamente (ato) ou em decorrência de um fato previsto em lei. É daqui a ideia estatutária que deriva de um processo de evolução e especialização da lei geral aplicável para determinadas pessoas ou coisas em condições específicas e especiais, através do ato-condição.

Os atos-condição, portanto, são os atos habilitadores de determinado sujeito a um conjunto de regras especiais que a ele será aplicado a partir da ocorrência dessa condição. Aqui não vejo como pecaminosa a relação entre a condição do ato-condição com a ideia de condição dos atos jurídicos do Código Civil. Isso pelo motivo que Duguit na formulação de sua teoria passa o tempo todo se referenciando e se comparando com os civilistas alemães e franceses.

Portanto, o ato da nomeação e do aceite do candidato a assumir um cargo é um ato-condição que coloca esse candidato nas situações objetivas e especiais, pois que somente aplicáveis a um grupo específico, passando ele a se designar por servidor público.

Esse mesmo exercício lógico poderíamos aplicar para outras situações. Uma pessoa, quando nasce, nasce criança, e ser criança é a condição para que a ela se aplique um conjunto de normas especiais que a protegem e que aos demais membros da comunidade não se aplica, embora os obriguem em respeitar esse estatuto. A esse ato-condição de ser criança faz com que se aplique a ela um regime especial, o Estatuto da Criança e do Adolescente.

A uma pessoa desempregada que nunca trabalhou não se aplica a CLT. Mas a partir do momento que ela assina seu primeiro contrato de trabalho, este é o seu ato-condição que a coloca no mundo protetivo desse estatuto.

O que há de comum com os atos-regra é que este e os atos-condição são normas gerais e objetivas, por isso mesmo preexistem aos sujeitos ou podem no curso da aplicação da relação especial ter seu conteúdo alterado sem que haja necessariamente a participação da vontade dos que a ela estão submetidos. Haverá é claro uma manifestação ao menos do sujeito em querer entrar ou participar dessas condições normativas especiais, por exemplo, a pessoa aceitar ou não a nomeação em caso de funcionário público. Haverá em outros que a própria vontade não será critério de entrada nas condições especiais, como é o caso das crianças e adolescentes submetidos ao estatuto do infante. É por isso que Oswaldo Aranha Bandeira de Mello[6] lendo esses clássicos diz que não haveria diferenças de fundo entre os atos-regra e os atos-condição.

Portanto, os atos-condição são os atos habilitadores de um sujeito a um conjunto de normas especiais aplicadas a determinados membros da comunidade. O reflexo prático disso é que ao se adotar esta teoria se estava assumindo que o conteúdo, o ambiente, do servidor com o Estado é estatutário, isto é, dominados por situações objetivas, e que a ele somente se aplicaria esse universo estatutário especial quando da ocorrência do ato-condição, que a doutrina mais clássica situa no ato de nomeação e os mais contemporâneos no ato de nomeação conjugada com o aceite do candidato.

Qual a diferença entre ofício e cargo público e como essa distinção foi se desenhando historicamente no Brasil? O que foi, historicamente, no mundo, o sistema de venalidade?

Fúlvio M. Faria.

As definições dos termos ofício e cargo nos dicionários são muito próximas. Historicamente, sob um aspecto mais do tipo burocrático, esses termos dão-se em processos e significados diferentes.

Arriscando uma definição de “cargo” e sob um aspecto mais etimológico, o termo é próximo da noção de “carga” e sua relação com “carro” (do latim carrus), sendo o termo “cargo” uma derivação do termo “carrego”. Também, nesse sentido, a palavra “cargo” tem significado de “incumbência, carga, função”.[7]

Nos decretos setoriais e de constituição dos serviços públicos brasileiros da virada do século XIX para o XX, a palavra “cargo” tinha o sentido de ligação entre a ocupação nomeada e as atribuições que a ela se dava. Era comum o termo aparecer em dispositivos dos decretos com a seguinte expressão “terá a seu cargo”.

Por exemplo, em um dos decretos mais antigos que tive acesso, o Decreto n. 399/1844, que dava o novo Regulamento para o serviço dos Correios do Império, previa, em seu art. 26, as seguintes expressões ora destacadas:

“Art. 26. O Porteiro [nome da ocupação] terá a seu cargo [cargo, como ligação entre a ocupação e as atribuições]:

§ 1º Abrir e fechar as portas da Casa d’Administração, não só nas horas marcadas neste Regulamento, mas em todas aquelas que lhe for ordenado pelo Administrador.

§ 2º Cuidar da limpeza, e asseio da Casa.

§ 3º Fazer as compras dos utensílios e quaisquer objetos do expediente que lhe forem determinadas pelo Administrador, apresentando ao mesmo, no principio de cada mês, numa conta documentada das despesas do mês findo.

§ 4º Guardar todos os móveis da Casa debaixo de sua responsabilidade, fazendo-se anualmente, no princípio do mês de Julho, um inventário exato de todos os que estiverem confiados á sua guarda. O Porteiro será coadjuvado e substituído nas suas faltas e impedimentos pelo Ajudante. [sendo este um rol de atribuições]” [grifos e destaques meus].

O que se vê com o emprego da expressão “cargo” nos decretos é que ela encerrava o conjunto de atribuições dadas a determinada ocupação conhecida. A um pedreiro, ocupação conhecida, dava-se um conjunto exato de atribuições arroladas expressamente nos decretos, cuja expressão de ligação entre a ocupação ou o sujeito nela indicado e as respectivas atribuições dava-se com o termo “cargo”.

Por isso, há sentido a doutrina clássica definir “cargo” e “cargo público” como o conjunto e o lugar das atribuições a ele dadas, por exemplo a de José Cretella Júnior.[8]

Com o avanço da perenidade das ocupações e das atribuições na entrega de serviços públicos – isto é, o Estado fixando serviços públicos perenes –, a expressão “cargo”, como a ligação entre o conjunto de atribuições e a ocupação, passa a designar o mesmo sentido de perenidade. É daqui o sentido da frase consagrada por Hely Lopes Meirelles de que: “Todo cargo tem função, mas pode haver função sem cargo”[9], dizendo que as atribuições ligadas à ideia de cargo serão definitivas e perenes e as soltas do cargo, transitórias.[10]

É essa perenidade que se percebe nos decretos. Na medida que os serviços iam avançando e se reestruturando nas reedições dos decretos respectivos, ficando cada vez mais fixos, a expressão “cargo” sai dessa função auxiliar de conexão e passa ser o próprio substantivo a designar a unidade da repartição. Isso se vê na virada do século XIX para o XX.

Por exemplo, no Decreto n. 1198/1892, que mandava observar o regulamento para o exercício das funções dos procuradores dos Feitos da fazenda Municipal, previu-se a expressão “cargo” mais autonomamente, ainda que de forma tímida, vide p.ex. o art. 15: “Para o exercício de seus cargos os procuradores e solicitadores observarão as instruções de 10 de abril de 1851, na parte não revogada pela legislação posterior” [grifos meus].

Já, na virada do século, vê-se o emprego mais frequente da expressão “cargo” como função mais substantiva. Por exemplo, o Decreto n. 4.053/1901, que aprovava à época o regulamento da Repartição Geral dos Telégrafos, previa a expressão “cargo de telegrafistas”, no art. 418 e 420.

Essa tendência se alastra nos decretos dessa época até que a expressão “cargo” passa a ter conceito próprio nos estatutos. No entanto, o conceito de cargo, nos estatutos, era vago (p. ex., o art. 3º, Decreto-Lei n. 1.713/1939 – primeiro Estatuto Geral em Lei), o que pouco contribuía para sua relação com as atribuições e a ocupação, tanto que à época Themístocles Brandão Cavalcanti lançou algumas críticas sobre essa vaguidão de definição[11].

No exemplo do Decreto-Lei n. 1.713/1939 – Primeiro Estatuto dos Servidores em Lei –, era preciso uma reflexão mais profunda para se chegar às ideias lançadas acima sobre a compreensão e a ideia de “cargo”, em razão da deficiência de definição de seu art. 3º, criticada, como já citado, por Themístocles.

No Decreto-Lei n. 1.713/1939, as atribuições estavam atreladas à “carreira”, sendo um agrupamento maior de atribuições. Por exemplo, no art. 7º, estabelece que as “atribuições de cada carreira serão definidas em regulamento” e que, no parágrafo único, “as atribuições inerentes a uma carreira podem ser cometidas, indistintamente, aos funcionários de suas diferentes classes”. Por sua vez, no art. 5º, define “classe” como “um agrupamento de cargos da mesma profissão e de igual padrão de vencimento”, isto é, “classe” seria o coletivo de “cargo”.

Ou seja, as atribuições e as funções estariam cometidas à “carreira” que por sua vez compreendiam os “cargos”, que por estarem dentro da “carreira”, também teriam “atribuições” e “funções”.

Mesmo nessa vaguidão inicial no Estatuto de 1939, a partir dessa reflexão, percebe-se que a ideia de “cargo” mantém a sua relação do cometimento mínimo de atribuições a um sujeito, como já visto acima e que ganhou coro na definição de Celso Antônio Bandeira de Mello nas seguintes palavras: “Cargos são as mais simples e indivisíveis unidades de competência a serem expressadas por um agente […]”[12].

O termo “commis” empregado historicamente na França me parece ter sofrido de processo semelhante ao termo cargo e as respectivas ocupações. O dicionário francês Godefroy[13], estabelecendo o termo “commis” como substantivo masculino, dá significado ao termo como “encargo, guarda, cuidado”. O dicionário do Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales – CNRTL[14] define o termo como “aquele que está encarregado de uma missão […]” e por extensão “aquele atribuído a uma tarefa”.

Os “commis” estão dentro do processo de formação das burocracias intermediárias francesas, que serão assentadas ao longo da história cada vez mais de forma perene nas estruturas da administração pública, podendo-se, assim, fazer essa comparação com a evolução e a compreensão dos cargos empregados no Brasil.

Já a definição do termo “ofício” tem relação com o termo “oficial”, que é “aquele que tem um ofício”.[15] Nas definições atuais de “ofício”, esse termo é equivalente a cargo, emprego, etc. No Brasil, era comum chamar de oficial os membros dos corpos militares e da justiça, aliás, várias designações ainda estão presentes nesses estamentos burocráticos e mesmo nas repartições civis, o que reforça a equivalência de sentidos com cargo e emprego públicos.

Na origem, na França, o termo “ofício” era empregado no sentido de ofício designar toda a função confiada pelo rei a um particular, que seria remunerado por vencimentos fixos ou por taxações vinculadas ao serviço prestado. Nesses textos franceses, os termos ofício e escritório são tratados também como equivalentes em sentidos.

Por outro lado, na dissertação, e acredito ser o sentido mais preciso da pergunta, historicamente, na França, busquei evidenciar certos tipos de estruturação da função pública (aparelho burocrático), nos quais o termo ofício estaria mais vinculado a um tipo de burocracia patrimonial e o termo cargo, a um tipo mais técnico. Explico melhor.

As primeiras funções desempenhadas pelos funcionários públicos eram essencialmente funções relacionadas à escrita, como a elaboração de cartas, atos, transcritos, etc. Esses trabalhos eram chamados de ofício, que representavam ao mesmo tempo o trabalho e o local onde o trabalho era desempenhado, e quem estava no ofício e o exercia era chamado de oficial. Com o tempo, esses ofícios vão assumindo funções também de escrituração de atos da vida privada e mesmo de julgamento e resolução dos conflitos, típica função judicial como a conhecemos.

Na medida que o Estado vai aumentando seu espaço de atuação, mais ofícios vão sendo criados. Na França, essa presença cada vez maior dos funcionários com seus ofícios criou nestes cada vez mais o sentimento de eles serem independentes em relação ao rei, isto é, a administração continuar mesmo na ausência do rei. Esse processo de independência se acentua na França na época de Louis IX (1226-1270) e Philippe Le Bel (1268-1314).

Nesse mesmo período e na medida em que cresce a distinção dessa categoria na França, aumentaram-se as queixas em razão dos altos custos para manter essa estrutura de funcionalismo, não obstante também as queixas de propinas, espécies, dadas aos juízes responsáveis por determinados casos.

A partir da segunda parte do século XV se deu um período de “reconstrução” da função pública francesa. Houve um esforço pela descentralização da função pública e das tarefas da Coroa – um tipo de desconcentração administrativa –, com a criação dos parlamentos provinciais, que por sua vez dariam início às carreiras locais de agentes públicos.

A França se via em uma situação complicada: de um lado os efeitos nefastos de um pós-guerra (Guerra dos Cem Anos) com implicações severas nas finanças reais e de outro um Estado que já estava em andamento, crescendo e necessitando cada vez mais de custos para sua manutenção. A essa realidade demandaram-se ajustes que marcaram a função pública francesa. Somando a esses acontecimentos, que se derem de forma gradativa, surgiu uma prática recorrente nesse período: a venalidade dos ofícios.

Até metade do século XIV, a venalidade e a renúncia em favor eram discretas e limitadas a modestos ofícios. Ao curso do reino de Carlos VI será cada vez mais ampliada a prática, ganhando toda a administração real nos primeiros anos do século XV com a Ordenança Cabochiana, que lhe consagra um artigo inteiro. Até que mais tarde a venalidade ganha mesmo os maiores ofícios da Coroa. Na época de Louis XI (1423-1483), proíbe-se toda a mutação ou a destituição dos oficiais e consagra-se, assim, a inamovibilidade dos oficiais, perdendo a função somente nos casos de morte, de demissão ou de cassação judicial e também, por conta das críticas, fixa-se a proibição nas ordenanças da venda dos ofícios.

Contudo, a proibição da venda no papel, não proibia de fato e na prática a sua ocorrência. O rei fechava os olhos para essa cultura pois que, ao existir, evitava queixas dos oficiais por aposentadorias, visto que eram garantidas com a transmissão dos escritórios, além que o próprio rei estimulava a venda como modo de garantir a aposentadoria ao oficial retirado e ainda aumentar o caixa do Estado. Essa tendência só se acentua ao longo do século XVI.

Para dar um ar de legalidade aos processos de venda, era comum utilizar-se da renúncia em favor, que seria o oficial, que estava se aposentando, renunciar o seu ofício em favor de um terceiro ingressante, que provavelmente estava pagando por essa condição de entrada. Havia outros mecanismos de transmissão na época que realço também na pesquisa, mas o fenômeno no geral é conhecido por sua ideia de venalidade dos ofícios.

O mecanismo da venalidade dos ofícios assegurava, por outro lado, a seus beneficiários uma grande independência em relação ao rei, pois era uma espécie de propriedade, de uma compra e venda de uma propriedade. Tanto é que em teorias que tratam do vínculo do servidor com o Estado há teorias mais antigas que julgam a situação como contratual e de direito real sendo que parece muito própria desta época a obra Teoria da Função Pública (Théorie juridique de la fonction publique), de Henry Nézard[16].

O rei, com a prática da venda dos ofícios, perdia cada vez mais sua autonomia, já que esta estava cada vez mais nas mãos dos ofícios venais.

Logo, o rei reagiu criando a figura dos comissários, agentes encarregados de controlar os burocratas dos escritórios independentes, figura essa equivalente aos atuais cargos em comissão ou comissionados.

Esse processo de controle do rei é marcante no século XVI. Surgem também as primeiras denominações de secretários, intendentes com essas funções de confiança do rei. A criação dos comissários é acompanhada pelo embrião de novas regras e de novos critérios para a seleção desses agentes, como a exigência de um diploma.

Essa dualidade entre os comissários e os ofícios marca a dualidade da função pública francesa, que se pode dizer ser presente também no Brasil. De um lado, os oficiais, mais numerosos, com a garantia da estabilidade e, de outro, os comissários encarregados de responsabilidades mais financeiras e demissíveis pela vontade do rei.

Muitos eram leais ao rei em razão de não terem os ofícios como propriedade, aliado à exigência de qualidade e de eficiência o século XVII é marcado pela crescente comissários em relação aos ofícios tradicionais.

Esse crescimento dos comissários, intendentes, secretários dava-se mais nas funções militares, de finanças reais, obras, comércio, etc., sendo as funções judiciárias predominantemente presentes pelos ofícios. É nesse processo que as técnicas militares são reproduzidas na organização da administração. Surgem nomes como diretores, inspetores, engenheiros, commis (uma espécie de servidor intermediário dentro da repartição).

Os ofícios, por terem essa natureza de compra, dava acesso às famílias mais tradicionais e de posses, tanto por moralmente poderem pleitear o posto quanto mesmo a sua compra. Já nos postos militares seu recrutamento comportava as famílias mais humildes, não tradicionais e sem posses.

É a partir também do século XVII que se passa a distinguir mais claramente as funções judiciais das demais funções que estariam dentro do campo do que hoje conhecemos como Executivo. Nisso o termo ofício judicial ficava para as funções judiciárias e os termos ofícios por comissão ou por cargo, ou empregados, ou commis, mais a designar as funções militares, de finanças, de obras, etc.

É dessa época que se inicia uma divisão cada vez mais clara dentro do Estado de aparatos burocráticos independentes uns em relação a outros. O judiciário formando cada vez um corpo mais independente. Os militares formando uma burocracia mais moderna e mais focada em assuntos nacionais, como obras, finanças, indústria e comércio. A burocracia militar dando suporte para o surgimento da burocracia das finanças e outras mais técnicas do Executivo.

No Brasil, pode-se dizer ter ocorrido processo semelhante, embora aqui não tive acesso na pesquisa sobre a existência velada de um processo de venalidade como ocorreu na França. No entanto, a burocracia judicial marcava um sentido semelhante ao que desempenhava a francesa: a de conservar os interesses das elites, visto que somente as famílias de posses que podiam estudar os seus é que conseguiam colocar seus filhos nesses postos. Já, nas demais estruturas burocráticas, é que comportavam aqueles sem posses, era o caso da história do genial Machado de Assis que, sem posses, ingressou no Ministério da Viação e Obras Públicas.

Com isso, no Brasil, no seio dos militares, forma-se uma burocracia mais moderna e mais focada em assuntos nacionais, como obras, finanças, indústria e comércio. Essa burocracia militar, também, deu suporte para o surgimento da burocracia das finanças e outras mais técnicas do Executivo. Tanto é que como já se viu nos decretos setoriais acima citados é que surge a conotação ao termo cargo. Sem essa estruturação dessas burocracias incipientes, militares e do Executivo, em atividades de finanças, obras, etc., antes dos anos de 1930, talvez não teria ocorrido Getúlio Vargas, sequer o DASP. Acredito que é nesse contexto histórico que faz sentido a máxima do dialético mais influente do mundo de que é a partir das circunstâncias legadas e transmitidas pelo passado e sob as circunstâncias com que se defronta diretamente em seu tempo que o homem faz a sua própria história.

O curioso que é dos ofícios venais – do sistema de venalidade – que tiramos o sentido de inamovibilidade como princípio e garantia que reflete em funções judiciárias. É desse sistema também a noção geral de independência e autonomia, mas que passa a ser ressignificada a partir de Napoleão em independência técnica, parecida com o fenômeno do insulamento burocrático no Brasil.

No geral e nesse sentido social, o termo ofício designaria um sentido patrimonial da função pública, ainda mais grave pois que imprimia nela um sentido claro de propriedade privada. Já o termo cargo designaria um sentido mais técnico, para funções mais técnicas com recrutamento no mérito.

No entanto, no Brasil, é comum dizer que houve um sentido patrimonial das ocupações públicas até o fim da Primeira República. Por não me parecer ter existido no Brasil um sistema mesmo de venalidade como se deu na França, acredito que o sentido do patrimonial não está inteiramente ligado ao fenômeno da venalidade.

Há aqui um outro fenômeno que tem caracteres parecidos com o da venalidade, mas que fora dele é que deve ser compreendido.

O sistema de venalidade na França foi combatido finalmente na Constituição Francesa de 1791 que expressamente previa que:

“- Não há mais nobreza, nem pairie, nem distinções hereditárias, nem distinções de ordens, nem regime feudal, nem justiça patrimonial, nem qualquer dos títulos, denominações e prerrogativas que delas derivam, nem qualquer ordem de cavalaria, nem qualquer das corporações ou condecorações, para as quais se exigisse prova de nobreza, ou que implicasse distinções de nascimento, nem qualquer outra superioridade que a de funcionários públicos no exercício de suas funções”.

Após o fim do sistema de venalidade, os processos democráticos davam aos eleitos amplos poderes de nomeação, que não guardavam necessariamente uma relação de nobreza, mas não perdia a noção de atendimento aos favoritismos de todas as ordens. Durante a Primeira República no Brasil e na própria França a partir da Revolução Francesa em diante, haveria um sistema de recrutamento sob o prisma de argumentos democráticos que se davam em nomeações dos amigos do eleito, mesmo para os quadros mais técnicos: era o que se convencionou chamar de patronagem. Foi mais contra esse fenômeno que se reivindicaram os estatutos gerais em lei.

No Brasil, essas nomeações por favoritismo davam-se mesmo antes mesmo da República. Esse fenômeno no Brasil era conhecido por “pidões”. Eram os pedidos constantes de favores às autoridades. A lógica da cultura dos “pidões”[17] era: em um país onde a escravidão tomava conta do trabalho do campo, aos pobres e livres da escravidão cabiam socorrer-se em regra de um emprego no Estado, fosse nos estamentos civis ou nos estamentos militares.

Foi sobre essa lógica do favoritismo que surgiram críticas contra às nomeações e abusos das autoridades. Durante esse processo de formação crítica às estruturas, foi que o termo “cargo” ganhou feições de perenidade e houve com isso uma reação dos mesmos funcionários quando o eleito os exonerava pelos critérios de favoritismo. Como o cargo tornava-se perene e mais técnico, passou a ser inadmissível, nesse ambiente do funcionalismo, a exoneração por motivo político. Foi desse processo a reivindicação de um estatuto geral em lei.

Esse mecanismo de favoritismo e abusos nas nomeações dentro de quadrantes democráticos e republicanos também se via nos Estados Unidos. Neste país, esse fenômeno era conhecido como patronagem ou spoil system, que apresentarei adiante.

Em sua pesquisa é muito interessante perceber que, não obstante algumas alterações na ordem do “dever ser”, sendo propagadas inclusive apenas retoricamente, as mudanças ou transformações na dinâmica de preenchimento dos espaços nem sempre foram definitivas, pois, historicamente, na França, o próprio rei que, na fachada, proibia o sistema de venalidade, de outra frente, em suas práticas políticas, impulsionava esse mesmo sistema que supostamente combatia… Então, parece que nem sempre a as mudanças se apresentam como definitivas, será que muitos avanços que supostamente poderiam ser celebrados abrem brechas para retrocessos velados?

Fúlvio M. Faria.

Acredito que essa é uma constante nas normas jurídicas, ainda mais aquelas editadas com o fim de mudar ou estimular culturas, modos e condutas.

No Brasil, com a imposição a partir da Constituição de 1988 do regime do cargo e do concurso como regra geral e da limitação no recrutamento dos comissionados, percebo que somente nesses últimos dez anos é que essas regras e princípios começaram a se efetivar e se ver de fato em todos entes federados.

Quem está na administração, sabe do laborioso trabalho das promotorias, dos tribunais de contas e demais órgãos na atuação do controle das prefeituras que não realizavam concurso ou que criavam cargos comissionados em demasia e fora da proporcionalidade. Mesmo sob um novo regime constitucional, fora preciso obra desses órgãos de controle para a efetividade desses novos princípios e regras constitucionais. Entre o “dever ser” da constituinte de 1988 e sua efetividade (seu “ser” de fato) houve um grande atraso.

Outro exemplo, que apresento na pesquisa, é sobre o recente arranjo no Município de Santos em que utiliza dos contratos de gestão para pactuar metas de desempenho com os servidores, agentes políticos e comunidade envolvida, tudo isso amarrado com controles e metas que refletem positivamente na remuneração dos servidores públicos.

Esse arranjo instaurou-se legalmente em Santos em 2013 através de uma lei formal, sendo que a Emenda Constitucional n. 19 que trouxe constitucionalmente a previsão dos contratos de gestão (§8º, art. 37) foi de 1998. Isto é, foram precisos 15 anos de um marco para que ele de fato começasse a produzir seus efeitos, devenir de fato. Isso que Santos e, provavelmente, mais alguns poucos municípios espalhados pelo Brasil são os que se apresentam inovadores nesse sentido, havendo ainda um grande desafio nas demais municipalidades por se implementar essas novas tecnologias e instrumentos ou descobri-las já em aplicação.

Já, para retrocessos na função pública, o “ser” pode estar numa demanda latente e reprimida querendo seu reconhecimento no mundo do “dever ser” para, com isso, poder florescer. Assim, o simbólico dos textos legais pode servir para acelerar esse novo padrão de conduta ou reconhecer uma demanda latente ou reprimida que está ali apenas esperando o permissivo legal. Esse fenômeno é curiosamente observado por Agustín Gordillo ao traçar as características do que chamou de administração paralela[18]. O mais duro nesse processo é quando se dá para permitir retrocessos em direitos ou em princípios na administração pública ou a certo espírito profissional que dela se esperava.

Um exemplo positivo dessa demanda reprimida foi quando presenciei em municípios a regulamentação pela primeira vez da licença para tratar de interesse particular, conhecida como LIP. Havia uma grande demanda reprimida dos servidores para o exercício dessa licença. Quando regulamentávamos, logo no dia seguinte ao da publicação do ato normativo pelo prefeito, o setor de recursos humanos recebia vários requerimentos dos servidores a solicitando.

Essa era uma demanda reprimida que digo positiva pois que atendia aos interesses dos servidores e mesmo aos interesses da administração, pois que ao se afastar o servidor daria condições a ele de se requalificar para novas posições em sua vida o que daria a ele novos ares e novos estímulos até mesmo, quando cessada a licença, para voltar mais motivado para a administração; e para a administração no sentido de que a possível desmotivação desse servidor não refletiria a partir da concessão da licença na qualidade dos serviços públicos.

Aqui acredito o problema das muitas reformas que se tentam no Brasil. Pois, quando apresentadas, não anunciam claramente e publicamente o que querem transformar ou quais demandas reprimidas do setor público estão a atender e se, assim, são situações para atender privilégios ou produzir mesmo melhoras nos serviços públicos. É o caso de se anunciar uma reforma sem uma mensagem clara de seus objetivos e o que de fato quer propor, pois que, primeiro a falhar na transparência e publicidade do assunto, dificulta mobilizar os atores sociais na adesão do seu texto e de seus propósitos.

Confesso que sinto exatamente isso em relação à PEC 32/2020 que na sua redação originária apresentada pelo executivo não deixou clara qual era a mensagem de reforma, o que não convenceu vários dos atores que lidam no dia a dia com a organização dos servidores e órgãos da administração pública, o que levou a críticas gerais sobre a Proposta.

Ainda, com uma mensagem fraca e perda mesmo da legitimidade de seu texto, abriu-se uma ampla reforma dela no Congresso que também não deixa clara a nova mensagem do Substitutivo.

O resultado de tudo isso se virar uma Emenda à Constituição pode ser o mesmo de outras “reformas”: um texto novo que seu devenir será um futuro tarde a acontecer pois que não ganhou legitimidade ou aderência dos demais atores ou que permitirá fluir uma demanda reprimida e latente pouco republicana que estava esperando o momento jurídico para fluir de vez.

O que foi o sistema de extranumerários e a partir de qual momento ele foi extinto no Brasil?

Fúlvio M. Faria.

Os extranumerários (surnuméraires) são um tipo de burocracia intermediária, de grade inferior e não titulares que aparece mais claramente nas intendências francesas, quando se formam grupos de execução no entorno dos intendentes e, muitas vezes, esses pequenos funcionários são pagos pelo próprio intendente. São os commis de l’intendence, que parte será de certa forma os extranumerários.

Com o tempo, o emprego do termo commis foi substituído pelo emprego das expressões diretor ou funcionário, os quais lentamente e progressivamente foram adotados. Esses funcionários eram os dito humildes, que eram considerados como a grande massa de extranumerários (surnuméraires e commis congéables à merci) e eram assemelhados às figuras dos aprendizes do Antigo Regime.

Eram esses funcionários intermediários e auxiliares que durante as revoluções mantinham o Estado em funcionamento. Mesmo os diretores a depender de seu envolvimento político não eram substituídos. Esses funcionários eram os commis e os surnuméraires.

No Brasil, o processo deu-se de forma semelhante ao francês. Havia, nas circunscrições de um ofício e um oficial, um conjunto de funcionários auxiliares, dados como amanuenses, escriturários, extranumerários ou empregados auxiliares em geral, até mesmo às vezes com a alcunha de oficiais auxiliares. Desde o século XIX, era tradição essas ocupações mais subalternas serem objeto de recorrentes pedidos por pessoas que precisavam de um posto para auferir renda e ter sustento próprio ou por pessoas da família ou dos amigos dos nomeantes interessados no conforto público que um cargo proporcionava. O fenômeno dos “pidões”, acima citado, dava-se mais sobre essas funções auxiliares.

É sobre essas camadas mais auxiliares e precárias das burocracias em formação que se davam os extranumerários, os quais eram frutos do apadrinhamento e fortemente ligados ao patrimonialismo brasileiro. Era uma classe presente e constante no Estado brasileiro desde o Império até a transição coercitiva para seu expurgo com a Constituição de 1988: o Barnabé. Segundo Bárbara Heliodora França[19], esse tipo de funcionalismo, embora sem os holofotes do poder, era uma classe social presente na sociedade brasileira já que ocupava 80% dos postos estatais no limiar da Constituinte de 1988.

Os extranumerários eram também designados por não titulares, visto que não eram titulares de um cargo público, este cuja condição de acesso se dava por um processo meritório.

Feita esta introdução mais social sobre esses funcionários intermediários ou pequenos funcionários, que desempenhavam funções mais auxiliares, sendo alcunhados e tratados a depender da função de extranumerários, é preciso compreender que juridicamente o termo sofreu várias conotações nessa evolução do funcionalismo do Brasil.[20]

Em geral, a doutrina jurídica passou a compreender a administração formada por dois tipos de pessoal, o pessoal investido em cargos, com carreira e dentro dos quadros, sendo essas funções perenes e permanentes, e o pessoal investido em ocupações precárias, atribuindo-se a esta última a condição de extranumerário.

Os extranumerários, embora tenham socialmente assumido a concepção em parte dos funcionários auxiliares, passaram juridicamente, a partir do Decreto-Lei n. 240/1938, a também encerrar em sua concepção o desenvolvimento de atividades técnicas especializadas. O caráter dessas atividades técnicas especializadas eram auxiliares, pois que o ato final competiria ao agente investido no cargo.

Com isso, a partir do Decreto-Lei n. 240/1938, os extranumerários passaram a ser os contratados para funções técnicas especializadas, os mensalistas para assumirem as deficiências dos quadros do funcionalismo, os diaristas para funções auxiliares ou transitórias e os tarefeiros para o desempenho de determinadas funções e que percebe salário na base da produção por unidade.

O problema maior é que esses extranumerários foram sucessivamente estabilizados pelos textos constitucionais, dando a eles a estabilidade no serviço, sem que prestassem concurso ou integrassem a uma carreira. É o caso do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT – de 1988.

Assim, a Constituição de 1988 extingue para o futuro essa figura com o inc. II do art. 37, mas a protege estabilizando o passado com o art. 19 do ADCT. Esse fenômeno de estabilização sem comprovação do mérito produziu forte pressão desse contingente de baixa qualidade sobre os serviços públicos como um todo por ao menos mais de 20 anos até que fossem aposentados.

É apenas recentemente, no Brasil, que começa a ser desfeito esse descompasso, em que há, assim, a reconciliação entre o estatuto e o espírito de profissionalização preconizado no DASP, quando se dá com mais frequência a saída dos extranumerários do serviço público por conta de suas aposentadorias, quando se dá os concursos que cada vez mais exigem qualificação e concorrência para ingresso e quando também se dá um ambiente educacional mais técnico que no Brasil floresceu nesses últimos 30 anos e ganhou efetivas pernas e braços em todo território nacional.

É somente nesses tempos mais presentes que, me parece, se alumia o reencontro do estatuto com a profissionalização tão desejada pelo movimento Daspiano no passado. É nesse cenário mais atual que o estatuto passou a experimentar em todo o território nacional a sua vocação, seu propósito e seu espírito originário, isto é, passou a produzir seus efeitos sociais quando pensado nos idos do começo do século XX, qual seja: o de ser um instrumento de garantia da profissionalização da função pública.

Ademais, a partir da Constituição de 1988, as funções, dentro das quatro categorias dos extranumerários previstas no Decreto-Lei n. 240/1938, foram absorvidas por outros instrumentos dentro da administração pública.

Os extranumerários contratados para funções técnicas especializadas foram alocados para dentro do bojo da lei geral de licitações (Lei n. 8.666/1993 e atual Lei n, 14.133/2021), antigo art. 13 da Lei n. 8.666/1993 e agora previsto no inc. III do art. 74 da novel Lei n, 14.133/2021.

Os extranumerários mensalistas, para assumirem as deficiências dos quadros do funcionalismo, os diaristas, para funções auxiliares ou transitórias, bem como os tarefeiros, para o desempenho de determinadas funções e que percebe salário na base da produção por unidade, foram alocados para dentro do bojo do regime das contratações temporárias e também cada vez mais alocados para o regime de terceirização de mão-de-obra e nas licitações de obras de engenharia e concessões de serviços públicos, estas últimas também no bojo das leis de licitação.

Portanto, principalmente após a aposentadoria dos estabilizados extranumerários, o fenômeno dos extranumerários fora praticamente absorvido pelo regime dos contratos das leis de licitação e nos contratos da mesma nas terceirizações de mão-de-obra e da contratação de obras de engenharia e concessões, estas últimas submetendo seus funcionários ao regime privado.

Foram muitas as situações de extranumerários estabilizados com as quais convivi nas administrações. Esses extranumerários na sua maioria eram equiparados e tratados como se de carreira fossem. Tiveram algumas situações curiosas com as quais me deparei.

Uma vez um servidor requereu o reenquadramento dele na carreira dos contadores do município em que eu assessorava. A primeira coisa foi levantar o acervo documental funcional dele. Vi que ele tinha ingressado como mensalista para as funções de contabilidade e assim foi estabilizado. Era, portanto, extranumerário. Mas o mais estranho é que ele, desde alguns poucos anos após a Constituição, foi cedido à época para a polícia civil do Estado na função de escrivão. Era extranumerário mensalista nas funções de contabilista, estabilizou-se, foi cedido depois para o Estado nas funções de escrivão. Veja como é difícil gerir os recursos humanos no Brasil.

Outro caso foi em outro município em que os servidores concursados sempre se queixavam de alguns servidores que ganhavam muito mais que a maioria. Após denúncias, aprofundamos a análise sobre a condição deles. Eram mensalistas extranumerários que tinham se estabilizado com a Constituição de 1988. Mas o mais grave e por isso a indignação dos concursados é que eles, por inexperiências dos gestores que passaram na administração, passaram a gozar dos direitos da carreira dos demais servidores desde quando ingressaram nos serviços públicos na condição de extranumerários. Claro que seriam eles os que mais receberiam os benefícios dos adicionais por tempo de serviço. Corrigimos à época, pois essa situação era flagrantemente inconstitucional.

Agora quantos municípios devem sofrer ainda dessas distorções?

Há de se ressalvar, e eu presenciei isso, que existiam extranumerários estabilizados que eram muito produtivos e comprometidos com o serviço público.

Ademais, acredito que essa realidade dos extranumerários realmente ficou para o passado, principalmente após esses mais de 30 anos da Constituição, em razão da força do tempo que aposentou essas pessoas e da força dos órgãos de controle que tentaram ajustar essas distorções.

O processo agora de atenção me parece estar mais na privatização da função pública pelo recurso da terceirização, a qual, para além das funções auxiliares, passou a entrar também nas funções mais técnicas. Adiante retomarei este tema.

Antes da estabilidade e da profissionalização no Brasil, até o período da República Velha, não havia um corpo de servidores perenes na repartição e era mais comum haver indicações políticas no sistema do filhotismo, contudo, atualmente também se busca uma terceirização e demais ataques à estabilidade dos servidores. Não foi só no Brasil que houve uma preocupação com essa possibilidade de “troca de baralho” de funcionários influenciada pelas cúpulas políticas, nos Estados Unidos também houve uma preocupação com o sistema de patronagem ou spoil system… Poderia nos explicar o que é patronagem, quais os malefícios de abrir tal possibilidade no sistema brasileiro e como os Estados Unidos combateram os riscos de tais práticas?

Fúlvio M. Faria.

Exatamente, professora. Aliás, eis aqui o desafio da função pública atual: qual tipo de deontologia queremos para o funcionalismo?

Como realcei em resposta ao sistema de venalidade acima, havia, na democratização e repúblicização das instituições, isso se dando na Revolução Francesa e no Brasil mais incisivamente na República Velha, a utilização, na nomeação para os postos públicos, de mecanismos que atendiam aos interesses pouco republicanos dos eleitos.

Os valores do sistema de venalidade, como a inamovibilidade e a independência, parece-me que mais influenciou a estruturação do poder judiciário e serviços correlatos.

Com o processo de estruturação das funções executivas – Poder Executivo –, esse sistema se utilizava de recrutamento mais focado no favoritismo dos eleitos de levar os seus para os quadros da administração.

No Brasil, como destaquei na pesquisa, o processo se chamava nos debates do Congresso de “derrubadas” ou “degola”. Nos Estados Unidos, esse mesmo processo era chamado de spoil system ou patronagem.

O sistema de patronagem, ou spoil system[21], era um modo de recompensar os apoiadores do político eleito com cargos no governo e na estrutura burocrática. Ou seja, determinado grupo político era eleito e levava todo o grupo de apoiadores para dentro do governo. Isso, é claro, traz turbulências para a administração, pois a cada período eleitoral tinha-se um novo ajuste, uma nova forma de administrar sem precedentes. Até por isso o nome spoil (espólio), pois, a cada troca de governo pelas eleições, o mandatário levava consigo seu espólio, isto é, o conjunto de funcionários que nomeou enquanto mandante.

As reclamações eram tantas dessa prática do espólio que os próprios norte-americanos a reconheceram ao ponto de dizer que todos desse sistema (spoil system) eram, na verdade, ladrões, salvo raras exceções.

Face a isso há uma evolução no espírito público, principalmente da continuidade dos serviços e da sua profissionalização que colocou em revisão esse modelo de recrutamento.

No Brasil, até o início do século XX, via-se uma prática de nomeações parecidas com o sistema de espólio (spoil system) norte-americano. O sistema brasileiro dessa prática, diga-se, anti-profissional era chamado de “derrubada” que segundo Otaciano da Costa Nogueira Filho “era uma versão atenuada do “espólio” [norte-americano]. A cada sucessão partidária no poder substitui-se praticamente todo [e não todo] o corpo funcional”, citando haver também o emprego do nome “degola”, de uso mais amplo e disseminado na República.[22]

É a partir dessa problematização e contextualização do sistema brasileiro de espólio (spoil system), aqui nessas terras conhecido como “derrubadas” ou “degolas”, que Otaciano, em seu texto, rememora as discussões e a obra no parlamento do Deputado baiano Moniz Sodré, crítico veemente do sistema e defensor, portanto, da profissionalização e da construção de um estatuto geral em lei. Daí que Otaciano retrata em seu texto as principais argumentações de Moniz Sodré na Câmara dos Deputados, como, por exemplo, que o sistema das derrubadas, nas palavras de Sodré, é o “regime de injustas nomeações, acintosas demissões e irritantes preterições”.

O pessoal do DASP também comparou os norte-americanos, examinando e analisando o processo de combate à ineficiência dos serviços públicos de lá. Nos Estados Unidos, o funcionalismo foi aperfeiçoado, como já se viu, com a derrubada do spoil system (também conhecido como patronagem), focando em iniciativas de profissionalização e de combate ao favoritismo.

Esse movimento de profissionalização norte-americano produziu um regime jurídico especial novo aos funcionários: o Pendleton Act de 1883, que, naquele país, seria equivalente, tanto para o Brasil quanto para os franceses, ao estatuto geral em lei dos servidores.

As reclamações contra o antigo sistema de patronagem (spoil system) norte-americano resultaram, primeiro, em uma fixação de um regime, uma estrutura jurídica, o Pendleton Act de 1883, para depois passar aos incursos de técnicas de administração mais específicas com o fim de cada vez mais profissionalizar e produzir melhores resultados nos serviços.

O DASP, embora tenha contribuído na formulação do Estatuto de 1939, dedicou mais de sua missão na estruturação do serviço público e na implementação de técnicas das ciências da administração. Isto é, teve por missão trazer, sob bases científicas, o espírito técnico e administrativo para a função pública brasileira.

A adoção de um estatuto geral em lei seria algo natural e racional a ser introduzido para contribuir nessa nova organização, seria a resposta adequada a essas demandas técnicas e administrativas vividas nas discussões das ciências da administração e experimentadas naquela época recente dos Estados Unidos.

Como as novas propostas da administração norte-americana foram inspiração para o DASP, é importante tecer algumas considerações sobre o principal instrumento jurídico norte-americano dessas propostas: o Pendleton Act (1883).

O Pendleton Act era na verdade uma espécie de pequeno estatuto da função pública norte-americana. Pode-se questionar sobre a compatibilidade da equiparação entre um instrumento jurídico norte-americano, onde se reconhece não haver propriamente um direito administrativo, com o instrumento jurídico mais aplicado em países de influência romano-germânica em que a autonomia de um direito administrativo é reconhecida. No entanto, para além das formas, ao se analisar o conteúdo do Pendleton Act, percebe-se que os valores contidos em seu bojo são extremamente próximos aos valores dos estatutos francês e brasileiro da época e ao menos representava o espírito de profissionalização que se almejava.

A título de exemplo, o Pendleton Act (1883) prevê, como princípio, a necessidade de concurso para ingresso nos postos públicos, consistentes em exames de caráter prático, de maneira que comprovem a competência para a função e que após o concurso deverá ser publicada uma relação classificatória, devendo a autoridade seguir o melhor classificado para nomeação. Prevê igualmente que haverá um período de experiência para ficar estável no emprego, uma espécie de estágio probatório. Assegura a independência do funcionário de modo que não há qualquer obrigação dele com qualquer fundo ou partido político e que não poderá ser destituído em nenhuma hipótese por não fazer contribuições aos partidos de situação ou oposição que venham a assumir o poder. Cria também a vedação de os agentes públicos usarem sua posição para influenciar ou coagir a ação política de qualquer pessoa ou órgão. Enfim, são muitas considerações próximas às preconizadas também nos estatutos francês e brasileiro.[23]

Themístocles Brandão Cavalcanti, em seus estudos[24], contextualiza as razões norte-americanas para as reformas que resultaram entre várias medidas no Pendleton Act. Segundo Themístocles, os Estados Unidos, a partir da metade do século XIX, viram-se prostrados, pelo menos na administração federal, frente às dificuldades de não se ter funcionários especializados e estáveis nas funções; e que o apogeu dessa ineficiência com o, já citado, spoil system (também conhecido como patronage system) se deu em especial entre os de 1845 a 1865.

O termo spoil deriva, segundo Themístocles, de uma frase do senador da época William L. Marcy que disse: “to the victor belong the spoils” (ao vitorioso pertence o espólio), frase essa proferida em referência à vitória do democrata Andrew Jackson na eleição de 1828. “Esse Presidente aplicou desde logo o sistema da demissão em massa de funcionários, para substituí-los por outros de sua imediata confiança política”, realçando Themístocles que a “eleição presidencial passou a ser um acontecimento político, cujo preço era o Serviço Civil”.

Como reação ao sistema de espólio, Themístocles contextualiza que, no fim do século XIX, se viu em curso normas que dessem aos funcionários estabilidade e estes fossem recrutados mais pela técnica: “Em 1883, foi finalmente votada a lei do Serviço Civil (Pendleton Act) que teve por base estabelecer um regime em que predominava a comprovação da capacidade, sem atender a considerações de ordem política ou religiosa”.

O Pendleton Act, contudo, é de aplicação apenas na administração federal, como ensina Themístocles. Os municípios e os estados norte-americanos guardam, portanto, autonomia sobre a definição cada qual de seu respectivo serviço civil, podendo definir a seu modo as formas de recrutamento e de tratamento do pessoal da administração, embora muitos estados e municípios ressoaram em suas regulamentações a legislação federal, algo semelhante ao que ocorreu no Brasil com os estados e os municípios que simplesmente reproduziram o conteúdo do estatuto federal.

A França, desde a abertura democrática, também se viu, segundo Roger Grégoire[25], em situação semelhante à dos Estados Unidos (EUA) e da Inglaterra, em que o sistema de patronagem era o dominante nas nomeações dos funcionários.

Essa ideia de profissionalização da função pública estava na agenda global dos países, e, de certa forma, o Brasil nos debates das duas primeiras décadas do século XX até a edição de seu próprio não estava nada mais que atuando a reboque das tendências mundiais.

Nesse sentido, Otaciano da Costa Nogueira Filho[26] contextualiza que a edição de um estatuto geral em lei não seria à época algo inovador ou revolucionário, visto que na Alemanha já se tinha um estatuto dos funcionários desde 1873 e na Itália desde 1908. Realça que mesmo na França e na Bélgica já estava em discussão a edição de seus estatutos em lei geral. Os países de origem anglo-saxônicas, como a Inglaterra e os Estados Unidos, já caracterizavam os funcionários públicos numa situação jurídica específica parecida com os estatutos em lei geral dos países de influência romano-germânica, como vimos acima com o Pendleton Act. É dessas constatações que Otaciano esclarece que as discussões e proposição na Câmara dos Deputados iniciadas em 1913 por Moniz Sodré, “deputado baiano, portanto, nem era precipitada, pois o assunto vinha sendo discutido – pelo menos na Câmara francesa desde 1844, nem chegava tarde para um país de história reflexa, como era o Brasil”.

Nuno Pinheiro de Andrade[27] comparou o Projeto de Moniz Sodré de 1913 com os demais estatutos das nações estrangeiras. Primeiro, ele argumentou que o Projeto de Moniz Sodré não era uma lei longa e ainda autorizaria o Governo a expedir os regulamentos necessários para melhor determinar a sua fiel execução, tanto é que realçou que o projeto de lei continha apenas 27 artigos. É daí que Nuno argumenta que não era nem uma lei extensa visto que, por exemplo, o estatuto italiano da época continha 58 artigos; o alemão, 159 parágrafos, que correspondiam às mesmas divisões por artigos; o francês de Briand, contendo 38 artigos, dizendo Nuno ser o de Sodré inspirado neste último.

Em relação aos países de origem anglo-saxônica, Nuno Pinheiro comparou também com a Inglaterra, em que, neste país, havia legislação nesse sentido, sendo, no entanto, esparsa, como por exemplo a ordenança de 1870 sobre os concursos em 7 artigos. Comparou também com os Estados Unidos, cujo país não contava com um sistema completo de legislação sobre o assunto, apenas citando a lei do “Pendleton Act” de 1883, com 15 artigos consubstanciados em regras gerais sobre a regulamentação do serviço civil.

O movimento de unificação em uma lei geral, nem que fosse principiológica como no direito anglo-saxão, das regras, direitos e obrigações, dos servidores era uma tendência geral no mundo.

É importante dizer que esse movimento de racionalização dessa transição da pratonagem para postos mais profissionais pode-se dizer ser gestada dentro dos corpos mais técnicos do Estado que já existiam e confluíam com essas realidades não profissionais.

Como eu disse acima, no Brasil, nessa fase do Estado, já confluíam vários tipos burocráticos, e os tipos burocráticos mais técnicos estavam no seio dos militares e das burocracias mais técnicas por eles impulsionadas, como as de obras, comércio, etc. Esses estamentos mais técnicos eram ancilares na formação de mercados mais industriais e necessariamente mais racionais. Isso de algum modo provocava a necessidade de tanto Estado quanto os mercados se modernizassem na técnica.

Na França, observou-se o mesmo processo de gestação da profissionalização nesses aparatos burocráticos diminutos, mas que resistiram pela técnica. Na Revolução, quando se deu vez ao sistema de patronagem, havia certas estruturas que, por mais que tentassem sofrer influência do político, tinham antes critérios de admissão técnicos e estabilidade relativa em relação à política no exercício das funções, como era o caso do corpo de Pontes e Calçadas (des ponts et chaussées). Com isso, embora o regime francês da Revolução tenha abolido a independência odiosa dos ofícios venais, há uma independência nascente sobre os corpos mais técnicos e ligados ao mérito, independência essa que entrará em debate nas discussões do início do século XX para que não fique adstrita a esses insulamentos burocráticos e fosse ampliada a toda a administração.

Portanto, a abolição do sistema de patronagem, tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos, bem como na França, passou pela adoção no mundo jurídico de um estatuto geral em lei fixando ao menos as diretrizes e o perfil técnico e profissionalizante da função pública, retirando da administração os favoritismos de todas as ordens.

Há aqui um problema de equilíbrio que sinto lendo os textos sobre a independência técnica versus os mecanismos democráticos e mesmo lendo e vendo a realidade do dia a dia da administração pública. É comum essa insatisfação generalizada com o funcionalismo público por exatamente essa insatisfação não compreender o papel técnico desses estamentos burocráticos. Cada dia mais, em um mundo regulado pelas agências, o que se percebe são as estruturas burocráticas, recrutadas em concursos públicos ou mesmo em processos que não estão nos canais democráticos dos eleitos, decidirem sobre a vida de milhares de pessoas sem que estas as tenham colocado lá para isso.

Nos municípios isso é ainda mais problemático para certos serviços públicos locais. Há, por exemplo, queixas frequentes contra os serviços públicos de saneamento básico, principalmente pela qualidade baixa dos serviços. No entanto, o prefeito eleito fica amarrado para conseguir melhoras, pois mesmo eleito fica preso a uma alta burocracia não eleita que está nas agências reguladoras regionais e na cúpula decisória da concessionária. Até ele tomar conta das dificuldades técnicas e conseguir se armar para imprimir nessas estruturas o desejo popular, seu mandato já foi embora.

É inegável que hoje precisamos de uma administração pública técnica e que preste serviços de excelência. O problema é a mediação comunicativa dela com a sociedade, o que senhora defende por uma burocracia reflexiva[28], na qual concordo.

Há, quanto a isso ainda, um fato curioso e que é problemático. São as grandes consultorias técnicas realizadas nos municípios. Quando altos padrões de técnica não cabem pelas limitações orçamentárias nos altos cargos da administração, eles serão transferidos para consultorias privadas vultosas, que, pela alta técnica, não atendem necessariamente a legitimidade democrática e muitas vezes atendem a situações nas quais podem estar incutidas favoritismos de todas as ordens, numa simbiose entre o público e o privado.

Não vejo problemas nas grandes consultorias do setor privado para o setor público. O problema ocorre quando vira regra contra a formação de quadros técnicos próprios e estão mais para atender os favoritismos e os apaniguados do eleito.

O aumento das consultorias revela também o problema das baixas remunerações no setor público. Em decorrência das baixas remunerações, os talentos altamente técnicos saem dos quadros próprios da administração e voltam através das consultorias privadas.

É um ponto que vejo pouca discussão, mas está presente em todo município no qual já passei. Na sua maioria, essas consultorias são para atender as insuficiências dos quadros técnicos. Mas, quando esse sistema é mal-empregado, poderíamos estar aí diante de uma patronagem do tipo dos grandes contratos, em que os governantes colocariam seus apoiadores via esses contratos.

Não obstante, há atualmente uma patronagem no Brasil, semelhante aos tempos da República Velha, vista nos contratos de terceirização de mão-de-obra. Como eu disse acima, muitas das funções antes desempenhadas pelos extranumerários e mesmo funções perenes da administração – como os professores – são agora desempenhadas pelos terceirizados submetidos à CLT.

Após a interpretação mais restritiva do §1º do art. 18 da Lei de Responsabilidade Fiscal ter sido adotada nos Tribunais de Contas, no sentido de que a descontinuação da carreira e dos cargos de determinada ocupação pelo gestor público permitiria a terceirização sem a incidência do referido dispositivo, ampliou-se muito a adoção desses contratos de terceirização de mão-de-obra para fugir dos limites de despesa com pessoal; e agora ainda mais estimulada após o reconhecimento da constitucionalidade da Lei 13.429/2017 (Lei das Terceirizações).

Contudo, aliada a essa questão fiscal, os contratos de terceirização de mão-de-obra passaram a atender também os interesses dos eleitos em colocar seus apoiadores dentro de um emprego. Hoje é comum ver um sistema de espólio (spoil system) nas terceirizações, em que na troca do eleito, há várias substituições das pessoas terceirizadas para alocar os interesses do grupo eleito. Quando acontecia a troca do espólio, muitos empregados de várias realidades locais, nessas condições, já me procuraram buscando algum direito, como para saber se tinham o direito ao vínculo, mas infelizmente esclarecia que, por estarem em um regime privado, era permitida a conduta da demissão sem justa causa. Mas a justa causa estava ali só não era funcional e sim política.

A patronagem acredito que está aí e nunca se foi embora e ela pode se acentuar com as reformas.

Eis aqui a necessidade de examinarmos essas realidades e perguntarmos de fato qual tipo de deontologia queremos para o funcionalismo.

Se há sentido em aplicar o regime privado a essas ocupações mais subalternas, tudo bem, mas deveriam ser também junto com um tipo de patronagem? Ou deveríamos regrar para que elas fossem baseadas em critérios republicanos? Por exemplo, vi alguns municípios experimentando a exigência de processos objetivos, já como regra dentro dos editais de licitação para a contratação da empresa fornecedora de mão-de-obra, para o recrutamento dos terceirizados.

Ou não, o sentimento é no sentido da necessária aplicação de uma deontologia profissional a essas tarefas subalternas, agora em demasia nas terceirizações, aplicando a elas um regime especial em relação à CLT? Em situação semelhante que aconteceu com os agentes comunitários de saúde ACSs e os agentes de combate às endemias ACEs?

Antes de 2006, os ACSs e os ACEs eram precarizados e contratados normalmente por mecanismos de terceirização ou no regime de contratações temporárias, com forte incidência da patronagem nas escolhas. Após a Emenda Constitucional nº 51, de 2006, que foi a representação normativa do movimento de publicização dessa categoria, agora os ACSs e os ACEs devem se tornar profissionais, com garantias mínimas, como por exemplo somente poderem ser desligados nas hipóteses previstas em lei.

Um dos temas sobre os quais mais gravitam preconceitos acerca no Brasil é justamente dos cargos em comissão, de livre provimento e exoneração, pois ao mesmo tempo em que, em alguns contextos, os cargos em comissão servem de plataforma para alçar pessoas desqualificadas e correligionários, sendo uma fresta para “aparelhamentos” políticos nas repartições, em outros contextos, por sua vez, há equipes de nichos de excelência em órgãos de ponta que se estruturam a partir da chegada dos comissionados qualificados e que imprimem um ritmo de trabalho e maior performance, sendo responsáveis por inovar e aprimorar as atividades. Existe uma inferência muito provável, conforme verificamos na riqueza de suas análises, de que a noção e terminologia comissionado teria sido influenciada pela França, e que eram os comissionados para certas tarefas e missões importantes. Como podemos resgatar essa ideia e qual a diferença entre a realidade mais original da ideia de comissionado em relação à realidade experienciada atualmente no Brasil?

Fúlvio M. Faria.

Exatamente. Também acredito que tenha havido essa influência dos intendentes e dos comissários franceses sobre a expressão entre nós adotada como comissão ou de funcionário comissionado, tanto que, na França, ao se designar antigamente um comissário, o ato se dava pelas cartas de comissão.

Os intendentes e os comissários franceses, como já evidenciei linhas acima, foram uma resposta do rei aos ofícios venais, nos quais ele não conseguia controlar. Esses agentes de confiança do rei vieram para dar novos ares, imprimir novos valores e atender a novas missões na administração pública francesa. Por conta dessas missões específicas e da necessidade de estarem alinhados aos desejos do rei, eles eram demissíveis a qualquer momento.

Aqui é curioso como se organizavam essas cartas comissão nessa época. Jean Imbert, historiador do direito francês, nota algumas características na carta de designação do comissário Jacques Ragueneau de 1519 à Tesouraria da Marinha, uma espécie de ato administrativo de nomeação do agente de confiança. Essa carta respeita a Ordonnance de 1493, que prevê que os titulares de finanças não serão mais oficiais, mas comissários.[29] O rei escolheu Jacques Ragueneau em razão de “a boa e inteira confiança” que ele inspira ao soberano e de “seus sentidos, pretensão, fidelidade, experiência e boa diligência”. Essas cartas não foram dirigidas à Câmara de Contas nem registradas, lavradas, por ela, mas enviadas para informação aos “conselheiros gerais sobre o fato e governo de finanças”; ou seja, era um ato puro e típico do soberano que não passava pelo controle dos demais órgãos.[30]

Nesse sentido, os comissários e os intendentes tinham o papel de transformar a administração tecnicamente. Eles deviam produzir resultados já que estavam em uma missão em nome do rei. É desse fenômeno o nascimento da dualidade da função pública francesa, em que, de um lado, estão os ofícios e, de outro, os comissários.

Entre os agentes de confiança dessa época francesa e os atuais comissionados brasileiros, acredito ser possível a comparação.

Os agentes de confiança do rei tinham uma missão clara que era trazer resultados para as missões designadas pelo soberano. Os ofícios venais, embora fossem para prestar serviços públicos, estavam mais alinhados aos interesses privados, e isso criava um tipo de imobilização mesmo dos serviços, o que levava a reclamações de todas as ordens. É a partir daí que surge o propósito dos agentes de confiança do rei, qual seja, o de produzir resultados e de serem produtivos na administração pública.

Ademais, esse modelo de recrutamento desses agentes de confiança não me pareceu estar numa conotação de patronagem. Isso por uma razão histórica, visto que não se estava em uma democracia, embora os nomeados de algum modo teriam a confiança do rei. Segundo que, com o tempo, esses agentes de confiança foram se transformando junto dos seus commis na própria administração pública mais técnica, separando-se de vez das funções desempenhadas pelos ofícios e das funções judiciárias.

No Brasil, vejo que os agentes de confiança – os comissionados – são utilizados para ambas as situações. Ora para trazer novos ares para a administração, num intercâmbio de conhecimentos com os efetivos, ora como instrumento de se fazer presente o favoritismo, a patronagem.

O ponto de equilíbrio será determinado pelo ambiente profissional no qual se encontra a realidade e pelos padrões remuneratórios dessa mesma realidade. Explico melhor.

É comum, em determinadas regiões do Brasil, não haver um ambiente profissional qualificado, embora eu veja que isso tenha diminuído nos últimos 30 anos. Mas, para funções técnicas específicas, é ainda difícil em todos os ambientes encontrarmos profissionais em alto nível técnico. Exemplo são os profissionais técnicos das áreas de regulação que estão mais nos grandes centros urbanos.

Essa realidade de baixa qualificação do ambiente profissional, por não dispor de bons profissionais de uma área técnica específica, impede por uma condição lógica que o eleito recrute para os cargos comissionados esses técnicos com esse perfil.

Por outro lado, é comum, nessas mesmas realidades, os cargos comissionados terem previsão em seus planos de cargos de baixas remunerações. Daí, fora as dificuldades do ambiente, haverá a dificuldade de um talento técnico se interessar pelo desafio com uma baixa remuneração. Esse problema das baixas remunerações é uma constante nos municípios.

Diante dessa realidade, combinada ou não, a tendência é a existência de um tipo de patronagem através dos cargos em comissão, que não deixa de ser estimulada pelo próprio ambiente e das circunstâncias que o eleito se encontra.

Na minha prática com a administração pública nos municípios, o recrutamento de comissionados mais técnicos, que pudessem, no sentido positivo, inovar e dar novos ares para a administração, passava exatamente por esse ponto de equilíbrio.

Ademais, em paralelo a esse ponto de equilíbrio, sempre existirá por conta dos mecanismos democráticos uma forte pressão sobre o eleito de nomear seus correligionários ou os filhos ou apoiadores destes. Essa é também uma constante. Em todas as administrações que passei, seja prefeito de partido A ou B, de esquerda ou de direita, sempre houve essa pressão que é extremamente forte no começo do mandato e vai se atenuando ao longo dele.

Linhas acima pontuei a seguinte frase sobre os “pidões”: em um país onde a escravidão tomava conta do trabalho do campo, aos pobres e livres da escravidão cabiam socorrer-se em regra de um emprego no Estado, fosse nos estamentos civis ou nos estamentos militares. Hoje poderíamos adaptar essa lógica dos “pidões” do seguinte modo: em um país onde o trabalho precário e informal (que não deixa de ser uma escravidão moderna) toma conta do trabalho do campo e de grande parcela do trabalho urbano, aos que querem se livrar dessas condições cabe socorrer-se em regra de um emprego no Estado, fosse nos estamentos civis ou nos estamentos militares.

Para mim, essa pressão para atender aos correligionários não deixa de ser uma nova forma dos “pidões”, como citei acima. Em um país como o nosso onde o trabalho informal e precário é dominante, a prática dos “pidões” sempre estará presente. Para mim, num país de tantas disparidades, é comum e se torna natural esse fenômeno, que não é nada indigno. Mas, a dificuldade de quem está no poder é exatamente colocar em equilíbrio todos esses interesses.

É a partir desse cenário que vejo como são dadas “as cartas” no recrutamento dos comissionados. Nas realidades que passei é mais comum não termos quadros qualificados pela própria deficiência do ambiente e mesmo baixas remunerações desses cargos. Com isso, é muito comum o eleito nomear seguindo a lógica dos pidões com um tipo de patronagem. É curioso que, por conta das baixas remunerações, já na campanha eleitoral os perfis mais técnicos não colam na campanha de qualquer candidato, visto que não ocuparão esses postos por financeiramente serem pouco atraentes.

Existem carreiras que lograram alcançar um grande prestígio social, dado disputado ingresso e também as honrarias que acompanham a construção de um espaço de acentuada relevância do ponto de vista social, contudo, num universo capturado pela visão da iniciativa privada, já não são mais vistas como monólito portentoso, mas têm a credibilidade desafiada pelos balanços e lucratividade inspirados no utilitarismo econômico. Algumas conseguem, todavia, apoiar-se no esprit de corps e na manutenção de um regime equilibrado para seus membros e integrantes, sendo que outras sucumbem pelas baixas remunerações e pelas dificuldades, consequentes, de concentrar recursos materiais e humanos qualificados e aptos à manutenção da mesma dignidade social. Como você explica essa disparidade e se concorda que a atual proposta de Reforma em trâmite no Congresso apenas aprofunda esse fosso entre as realidades funcionais díspares das variadas carreiras públicas?

Fúlvio M. Faria.

Essa disparidade revela uma necessária compreensão sobre o Estado, qual seja, a de que ele não é um bloco monolítico, como transparece nos clássicos sobre a Teoria Geral do Estado. O Estado é feito de várias burocracias (aparatos burocráticos) desempenhando cada qual papéis diferentes. Esse processo de cada corpo (aparato burocrático) agindo isoladamente um do outro ou ora um apoiando o outro foi possível retratar um pouco na pesquisa.

No Brasil, são emblemáticos os papéis do judiciário e dos militares enquanto aparatos burocráticos independentes. Nesse sentido também os serviços sociais sempre estiveram pouco presentes na estruturação desses aparatos burocráticos, visto que esses serviços sociais eram desempenhados pelos eclesiásticos e depois aos poucos foram assumidos pelo Estado. Por isso a falta de ressonância dos privilégios dos estamentos burocráticos do judiciário ou dos militares sobre os corpos dos serviços sociais. Os estamentos burocráticos do judiciário ou dos militares, não obstante exercerem poderes fortes de coerção, estruturam-se no Estado há muito mais tempo que os serviços sociais.

Os aparatos burocráticos de funções mais executivas, que se estruturaram a reboque dos militares, foram os ligados às finanças públicas e questões tributárias e os aparatos burocráticos das grandes obras, indústrias e comércios, hoje mais alocados nas agências reguladoras ou grandes estatais.

O que se vê desses aparatos é que eles têm cada qual um papel que nem sempre são conversíveis. A ideia abstrata de devoção ao Estado e ao interesse público monolíticos era mais na época da consolidação do Estado nacional empregada no sentido de evitar o Estado corporativo, visto que as autoridades da época temiam que uma corporação provocasse a revolução sobre as demais.

A partir dessa compreensão, é curioso perceber, por exemplo, como esses aparatos burocráticos se dividiram na Revolução Francesa. O Parlamento de Paris, que vivia das benesses do modelo venal, nas décadas que antecederam a Revolução, mudou seu posicionamento e passou a adotar uma postura em favor do novo Estado abstrato, sem o rei e sem os benefícios da venalidade, num tom de sobrevivência ou mesmo de enxergar os novos ares que se alumiavam. Tanto é que foi na Revolução que se iniciou a retirada das competências dos aparatos judiciários de julgar os atos da administração, isto é, forçou-se a divisão das atribuições dos aparatos judiciários das funções executivas.[31] Neste tom de sobrevivência, os membros do Parlamento de Paris perderam suas competências amplas sobre as coisas públicas, mas essas pessoas continuaram nas estruturas dos tribunais superiores judiciais, mesmo após a Revolução.

Nas várias leituras que fiz ao longo da pós-graduação, quem aborda o poder e a burocracia desse modo e em sentidos mais sociológicos é Nicos Poulantzas[32]. Este autor reconhece a fração de poder de cada aparato burocrático dentro do Estado e de como às vezes eles são antagônicos entre si.

Daqui se vê que as estruturas mais privilegiadas são aquelas mais antigas e as que mais concentram poder de autoridade e de coerção sobre a sociedade e sobre as camadas políticas recrutadas nas eleições. A isso são claros os poderes do judiciário e dos militares. Do mesmo modo ocorre com os poderes de polícia do Estado, os quais são situados como funções indispensáveis e sem paralelo no mundo privado, tendo, também, forte poder de autoridade e de coerção sobre a sociedade e sobre as camadas políticas recrutadas nas eleições.

Já as estruturas mais recentes que eram desempenhadas por setores assistenciais e eclesiásticos, tais como a educação, saúde e assistência, no geral, não triunfaram na demonstração de poder de autoridade, pois que simplesmente nunca o tiveram de fato nessa construção histórica, embora sejam muitas vezes mais importantes para a sociedade que as outras funções.

A isso há uma disfunção de ordem genética do próprio Estado que somente o político eleito pode corrigir. No entanto, é exatamente nos momentos de reforma discutidos pelos eleitos que os aparatos burocráticos tradicionais se manifestam com pressão de todas as ordens, para que privilégios sejam ampliados ou ao menos não retirados; enquanto que os demais aparatos, sem esses poderes de pressão, não conseguem as mesmas condições.

A PEC n. 32/2020, na versão mais atualizada que tive contato, aprofunda claramente essa disfunção. Ela intensifica a aplicação de um regime mais especial para novas ocupações colocadas no sentido de carreira de Estado, gozando a partir disso de vários direitos até então não aplicáveis, e, por outro lado, aprofunda ainda mais com o permissivo dos serviços públicos sociais serem cada vez mais praticados em regime privado, cujo baixo detalhamento normativo pode levar a abusos e a precarizações.

Eu particularmente não recebi a PEC n. 32/2020 como positiva mais pelo fato de não estar clara a mensagem de transformação, na qual pretende para a função pública. Ela me parece estar mais de fundo numa preocupação orçamentária das despesas com pessoal do que reforma do pessoal do Estado com os fins de melhorar a entrega dos serviços. E, como o cobertor é curto (no sentido de os recursos serem escassos por natureza e ainda mais agudizados em tempos tais de crise), consegue cobrir ou manter o corpo coberto aquele que tem mais força e poder.

Antes mesmo de se discutir a PEC n. 32/2020 vejo que é necessário um diagnóstico mais profundo da função pública brasileira, principalmente das realidades locais que são pouco exploradas nesse sentido e onde de fato os serviços públicos são entregues. Não é exagero retórico: é muito mais provável um cidadão precisar durante toda a sua vida mais dos serviços SUS do que dos serviços jurisdicionais prestados pelo judiciário. A pandemia ocasionada pela Covid-19 comprova essa relação de importância.

A partir desse contexto que entra em disputa discussões como: esses serviços sociais seriam funções típicas do Estado? Eles devem ou não se estruturar dentro da concepção de carreira, concurso, valores esses de um ambiente especial? Aqui tenho minhas opiniões sobre isso.

Acredito que já há, no Brasil, os dois tipos de função pública (a aberta e a fechada) aplicadas simultaneamente nos serviços públicos, sendo, na prática, falsa a vigência de um regime jurídico único.

O que precisamos é jogar luzes sobre como será feito o exercício dos serviços públicos no sistema de função pública aberta, isto é, nas funções que aplicarão (e já aplicam) de algum modo o regime privado para essas ocupações, como, por exemplo, essas dos serviços sociais.

A prática do modelo aberto já está ocorrendo com as terceirizações que são pouco colocadas ao centro do debate e parecem se aprofundar com a PEC n. 32/2020. Há também a ressignificação da contratação temporária para as funções públicas na PEC n. 32/2020, que ampliaria a possibilidade de precarização do trabalho, podendo até mesmo levar a um piso menor que os valores apregoados na função pública aberta regida pela CLT.

Seria mesmo importante rememorar e compreender o processo político que culminou com a publicização dos agentes comunitários de saúde – ACSs e dos agentes de combate às endemias – ACEs a partir da Emenda Constitucional nº 51, de 2006, para entendermos como uma fração do aparelho de Estado se mobilizou e se organizou a tal nível constitucional. Eles foram uma categoria dentro do Estado, vinculados aos serviços de saúde, que ganharam um status constitucional, saindo de uma zona de precariedade para um piso mínimo de direitos. Com a PEC n. 32/2020, questões assim me parece que não estão em discussão e sequer em pauta.

Repetindo o que eu disse linhas acima, o resultado de tudo isso se virar uma Emenda à Constituição pode ser o mesmo de outras “reformas”: um texto novo que seu devenir será um futuro tarde a acontecer pois que não ganhou legitimidade ou aderência dos demais atores ou que permitirá fluir uma demanda reprimida e latente pouco republicana que estava esperando o momento jurídico certo para fluir de vez.

Como quase tudo, o corporativismo, dentro dessa noção de esprit de corps, é uma postura ambivalente, pois ao mesmo tempo em que representa autodefesa e proteção ao prestígio e importância de dadas carreiras, quando ele extrapola e se torna disfuncional, percebe-se que ele pode demonstrar uma certa entropia, isto é, voltar-se para si (e menos para os fins), subvertendo a máxima de que o servidor serve à coletividade… Diante desta ambivalência, poderia nos exemplificar quando o corporativismo atrapalha o aprimoramento do funcionamento do Estado e quando ele ajuda, por outro lado, a evitar a precarização de funções que são imprescindíveis à sociedade?

Fúlvio M. Faria.

Essa autodefesa é ínsita do propósito institucional de determinado corpo ou aparato burocrático. Ao defender sua própria corporação, o funcionário está a defender seu papel enquanto agente dessa mesma corporação. Se esta autodefesa está nos limites dos objetivos institucionais desse corpo, ela será benquista.

Alguns exemplos deixam mais clara essa percepção. Um juiz, para ter a segurança de se determinar como juiz e presidir corretamente os feitos judiciais, precisa de um amparo coletivo do seu próprio corpo e da proteção estatutária desse corpo. Um diplomata, para se afirmar diplomata no estrangeiro e ter segurança para sua atuação, deve estar amparado também nesse sentimento de corpo protegido por um estatuto. Um policial militar, para poder se afirmar como policial, ter porte de arma e poder atuar em situações de perigo, precisa estar amparado nesse sentimento de corpo e protegido por um estatuto especial, que além de sua proteção dará os limites de sua atuação.

O problema ocorre quando essa autodefesa ultrapassa os limites institucionais fixados em padrões razoáveis do que se estabeleceu por parâmetros republicanos e democráticos ou mesmo quando ela deixa de existir em um corpo coerente, sendo desestabilizada por pressão de outros corpos. São disfunções institucionais que podem se dar das mais variadas formas, desde do agir político do corpo até na sua busca por mais privilégios, desde a desestabilização ou fracionamento do corpo até a precarização de suas carreiras.

Soma-se a esse problema o fato de que esses corpos burocráticos, como são vários e muitas vezes cada qual com papéis sociais não convergentes, devem disputar o limitado orçamento público entre si.

No corporativismo, quando está em discussão a disputa pelo orçamento, vejo os exemplos mais comuns dados, por exemplo, nos acréscimos sucessivos de auxílios às carreiras tradicionais do Estado, muitas vezes extrapolando o teto constitucional de remunerações, e não permitindo nessa disputa orçamentária que sejam liberados recursos para outras áreas. Aqui é uma forma desse corporativismo atuar mesmo contra o aperfeiçoamento da máquina pública.

Nas realidades locais, já encontrei disparidades desse tipo. Mas, nos últimos anos, tenho visto um fenômeno que venho chamando de “compressão para baixo” das disparidades remuneratórias, onde os privilégios são praticamente escassos. Explico.

Por conta de pressões orçamentárias e um rígido controle fiscal imposto desde 2001 com a Lei de Responsabilidade Fiscal, muitos gestores locais, para liberarem orçamento e herdando um Estado com um grande contingente de funcionários, passaram a não promover a revisão geral anual ou, quando a faziam, sempre buscavam índices que refletiam a menor variação.

Ao longo dessas décadas, isso teve o efeito de comprimir as faixas salariais, aproximando o teto do piso que é o salário mínimo. Em um município que tive acesso às tabelas e fiz os estudos históricos, no início dos anos 2000, os cargos do topo tinham, no seu auge, uma diferença de aproximadamente 10 salários mínimos dos cargos da base. Nessas condições da época foi até mesmo possível pensar uma carreira, pois havia mobilidade remuneratória para se alocar os talentos. No entanto, em 2018, vi que estes mesmos cargos que estavam no topo não se diferenciavam por mais de 2 salários do cargo base. Eis aqui uma clara “compressão” dos padrões remuneratórios.

O fenômeno da “compressão” é tão sério e impactou tanto as realidades que, por mobilização de vários setores, vieram os recursos federais para compensar aquelas profissões dadas como indispensáveis dentro dos serviços sociais. É o caso do piso nacional dos professores implementado e aderido nacionalmente com a Lei n. 11.738/2008, tanto que, no STF, sedimentou-se o entendimento desta lei como de caráter nacional. Também é o caso dos aportes via fundo a fundo no SUS para a estruturação de equipes em saúde mais técnicas, como médicos, enfermeiros, odontólogos, e mesmo os menos técnicos como os agentes comunitários de saúde e de combate às endemias, etc.

Esses aportes federais, em favor das remunerações dos profissionais dos serviços sociais, podem-se dizer decorrer do espírito de corpo desses funcionários que se mobilizaram e conseguiram melhoras nessas condições mínimas para um trabalho digno. São corporativismos bons, pois que, ao conquistarem um mínimo para esses profissionais, garantem uma prestação na ponta de qualidade para os usuários dos serviços públicos. Há ainda muito mais por se conquistar, mas sem essa mobilização inicial, acredito que esses marcos não teriam acontecido.

Já sobre o corporativismo ruim dentro dessas realidades, vejo que cada vez mais ele tem deixado de existir por conta dessas pressões orçamentárias e mesmo da contínua retirada de privilégios. Por exemplo, existia até pouco tempo um privilégio chamado apostilamento. Era um benefício que dava ao servidor efetivo, que assumisse por determinado período um cargo comissionado, o direito de ter até o resto da sua vida funcional o vencimento base do cargo comissionado. Isto é, o servidor efetivo se apostilava do vencimento base do cargo comissionado. Isso tinha reflexos nos demais benefícios que ele tinha direito, pois se estava ampliando o vencimento base.

Por outro lado, há ainda um corporativismo de fora para dentro que ao longo do tempo passou a mais atrapalhar os serviços públicos do que contribuir para seu aperfeiçoamento. É o papel dos órgãos de controle estaduais sobre as esferas de execução das políticas públicas locais. É indiscutível o importante papel das instâncias de controle exercidas pelas promotorias e tribunais de contas. No entanto, de tanto atuarem para sanar vícios nas estruturas administrativas, esses corpos técnicos de controle ganharam um status moral muito forte na sociedade ao ponto de constranger politicamente e moralmente as instâncias controladas. Esse fenômeno fez surgir o apagão das canetas, já tratado por você, professora, em vários textos, e cuja resposta dos eleitos foi a Nova LINDB (Lei n. 13.655/2018), e que também foi bem articulado na recente obra Direito Administrativo do Medo do Rodrigo Valgas[33]. É um tipo de corporativismo que leva ao engessamento da administração pública.

O apagão das canetas, por influência dele ou não, vejo que convive ainda com um corporativismo das procuradorias ou assessorias jurídicas que estão sempre a reboque, sem pestanejar, do que a jurisprudência entende ou os órgãos de controle orientam. É claro que, em regra, nesse campo jurídico não há muito espaço para inovação. Mas, muitas vezes por análises sumárias desses órgãos jurídicos ou por inanição deles, vi fazerem orientações que destoavam do que estava em pauta ou sequer disputavam inovações jurídicas para atender às novas políticas exercidas por outros profissionais. É um tipo de reforço ao engessamento da administração pública.

Apesar da importância de debate desse tema, ainda pouco aprofundado no conhecimento da população em geral e até, lamentavelmente, da academia, ele é bastante ‘sazonal’, pois como os servidores são a longa manus estatal, entender o seu estatuto, quais os limites e possibilidades, é imprescindível para o bom funcionamento do Estado, todavia, pelo que percebemos de sua abordagem o interesse pelo assunto se reveste de iniciativas, publicações e atividades mais próximas dos contextos de reforma e vai se arrefecendo quando não há tal ímpeto? Como enxerga o interesse pela temática e como alavancar essa questão para que seja perene, dada sua relevância?

Fúlvio M. Faria.

Pois é. São poucos os estudos sistematizadores sobre o tema. Eles são difíceis pois que o conjunto das realidades brasileiras é extremamente diverso, sendo por isso difícil uma sistematização justa e completa. Na pesquisa, encontrei muitos estudos analisando experiências de caso a caso ou pontualmente sobre reformas. Estudos mais históricos foram pouquíssimos dentro do campo do direito.

Há vários motivos, acredito, para que o tema não esteja em uma agenda frequente de debates. O primeiro decorre da própria atuação profissional do pesquisador em direito. Por exemplo, hoje vejo que o tema dos servidores é mais estudado por eles mesmos ou por quadros que estão na direção do governo por uma questão profissional e econômica. No mais, os demais profissionais do direito focam suas pesquisas em áreas mais privadas, pois que é onde mais atuam profissionalmente. Mesmo, no direito administrativo, vê-se que as pesquisas estão mais no campo onde há ou sofre a atuação privada sobre ou com o poder público, pois que é por corolário onde os profissionais do direito terão mais campo de atuação. Isso explica, por exemplo, o alto interesse pelas disciplinas de licitação, contratos administrativos, concessões, atos administrativos, a depender bens públicos, etc.

No contexto das reformas, são produzidas pesquisas específicas a fim de que se crie um ambiente seguro para a transformação pontual que ela propôs nas estruturas da administração, bem como armar com argumentos os órgãos de controle e jurisdicionais.

O problema é que os assuntos dos servidores públicos não estão apenas na agenda das reformas. Eles são uma constante no dia a dia da administração. Quem já passou, no setor privado, em empresas médias ou grandes, sabe que a gestão de pessoal e aperfeiçoamento dos funcionários são constantes, pensando-se cada vez mais em mecanismos melhores de gestão desses recursos pessoais. Tanto que é onde se encontra um vasto material de pesquisa acadêmica sobre eles. O setor privado neste tema não se arrefece somente nos tempos de reformas trabalhistas.

Aqui entra um problema que precisamos superar no direito que é a ideia de que deve ter protagonismo para pensar estas questões, pelo menos a priori, ou quando pensadas estão essas ideias com os olhos muito distantes da realidade. Mas, amplio essa questão respondendo à próxima pergunta.

Qual a sua grande preocupação diante das alterações reformadoras que ameaçam o regime dos estatutos e também qual o aspecto (ou os aspectos) que acharia que seria(m) necessário(s) para transformar positivamente estes mesmos regimes, para que o Estado alcance um ponto de funcionamento ótimo com a preservação da dignidade e segurança das relevantes carreiras públicas?

Fúlvio M. Faria.

Antes, preciso terminar a pergunta anterior que ficou em aberto, mas que se relaciona com a pergunta atual. Eu estava dizendo que precisamos superar no direito a ideia de que ele deve ter protagonismo para pensar estas questões, pelo menos a priori. Outro problema reside no fato de que, quando pensadas, tais questões são abordadas de maneira muito abstrata, com olhos muito distantes da realidade. Mas por que digo isso?

No direito, nós somos treinados a pensar quase sempre por meio de máximas, princípios e regras que tentam se cristalizar mesmo sobre a realidade. Há uma importância nessa cultura que é a racionalização das condutas e mesmo sua padronização.

Contudo, essas máximas, que se traduziram em teorias jurídicas sobre questões dos servidores, parecem-se terem se descolado das próprias realidades administrativas, e, com isso, ao longo do tempo, impediram que o direito dialogasse com essa mesma realidade. São os descompassos que identifico na pesquisa entre o mundo do direito e a própria administração. Um exemplo é o estabelecimento da dicotomia entre a ideia do regime estatutário e do celetista. O descompasso dessa fixação dicotômica com a realidade é tão grave que se fala dos regimes especiais que são aqueles que não cabem nessa dicotomia. Falamos, então, de uma dicotomia cheia de buracos, os quais são tampados com as ideias dos regimes especiais.

Sem sombra de dúvidas, essas abstrações, que são cristalizadas cada vez mais pelo tempo, levam a quem quer pensar em reformas a seguir pelo mesmo método, ou são 8 ou são 80. O que tento, no entanto, na pesquisa é esclarecer que, na gênese, não há uma dicotomia e que ela é mais contraproducente. Por isso, eu trato da possibilidade de uma concertação entre os instrumentos.

Mas, para isso, precisamos ouvir quem estuda gestão de recursos humanos na administração pública. Hoje esses estudos estão muito no campo das ciências políticas, das ciências da administração, da sociologia, etc. É a partir deles que precisamos analisar os instrumentos jurídicos disponíveis ou criar instrumentos jurídicos novos, sem precisarmos partir de dicotomias cristalizadas.

É por isso que exponho, no final da pesquisa, tentativas, no Brasil, que utilizam do estatuto e de mecanismos consensuais para fixação de metas ou mesmo para a substituição do poder sancionador unilateral. Pela visão dicotômica, elas seriam inadmissíveis juridicamente ou de difícil visualização.

Apresentadas essas considerações iniciais, focarei agora mais diretamente no tema da pergunta deste tópico, qual seja: qual a grande preocupação diante das alterações reformadoras que ameaçam o regime dos estatutos e também qual o aspecto (ou os aspectos) que acharia que seria(m) necessário(s) para transformar positivamente estes mesmos regimes, para que o Estado alcance um ponto de funcionamento ótimo com a preservação da dignidade e segurança das relevantes carreiras públicas?

O primeiro passo é sempre termos um diagnóstico claro da função pública, tentando envolver o máximo dos aspectos e dos interesses de toda a comunidade envolvida. Os diagnósticos mais elaborados que se vê estão nos serviços públicos federais e estaduais e mais esporadicamente nos municípios mais estruturados. No entanto, a grande realidade do Brasil, feita na quase unanimidade dos municípios, não é diagnosticada, por exemplo o efeito das terceirizações, da compressão das carreiras, das consultorias técnicas em substituição aos quadros próprios.

Para uma boa reforma, vista como política pública, é preciso de um diagnóstico, no mínimo, relativamente seguro, e aqui precisamos de um diagnóstico baseado em dados coletados e não necessariamente apenas nas impressões pessoais de pessoas influentes do meio.

Por outro lado, eu compreendo que, metaforicamente falando, na administração pública, estamos trocando o pneu do carro em movimento, compreendo que ao mesmo tempo que diagnosticamos o paciente é preciso medicá-lo. Essa é a realidade.

Nesse passo, penso que o modelo estatutário trouxe importantes avanços que não podem ser abandonados, mesmo que se queira passar para o regime privado. Para mim, um dos grandes avanços foi o alto nível de detalhamento do regime disciplinar dos servidores estatutários. Este alto detalhamento freia governos que tentam cometer arbitrariedades de todos os tipos. A estabilidade fica mais forte com um regime disciplinar forte. A segurança de uma carreira começa por aqui.

O problema de debater reformas no funcionalismo divisando o estatuto com o contrato, numa visão dicotômica, é que valores importantes construídos no mundo estatutário poderão ser perdidos. Aliás, muitas vezes essa visão binária, atende mais a interesses ideológicos e políticos, pois que, ao se remover o mundo estatutário, remove-se muitos valores construídos em seu seio ao longo do tempo.

Portanto, penso que se a ideia é substituirmos o velho estatuto precisamos, então, de um estatuto novo e não sua exclusão. Os franceses vão muito nessa linha de que o estatuto (aqui mais empregado no sentido do estatuto geral em lei) deve ser aperfeiçoado e não completamente abandonado ou excluído.

É aqui que trato, na dissertação, da necessária concertação entre o que o melhor dos dois mundos – o estatutário e o contratual – pode oferecer. Utilizo para isso a ideia de direito disciplinário como ideia geral de profissionalização dos servidores, seja por estímulos premiais (positivo) ou punitivos (negativo). Para o direito disciplinário negativo, acredito que a rica construção do direito disciplinar no setor público reforçando a estabilidade é muito mais avançada do que no setor privado, e com certeza é a base de segurança do servidor.

Por outro lado, o direito disciplinário positivo praticamente não existe nos estatutos. Não há regras processuais nos estatutos de como estimular positivamente os funcionários. A isso os módulos consensuais do mundo privado podem muito contribuir e dar a flexibilidade para acertos e erros na fixação de metas com retribuições pecuniárias.

Esse tipo de tecnologia inovando e aplicando o melhor possível dos dois mundos, o estatutário e o contratual, já vejo sendo realizada nas discussões sobre os contratos de concessão, em que se admite a existência de um núcleo estatutário legal, fixando regras de sujeição, regras para a aplicação de sanções, regras de processualidade da condução e execução contratual, e, de outro, um núcleo mais flexível em que se admite módulos consensuais para o atingimento das metas fixadas no serviço. São os contratos relacionais ou regulamentares como observado por Floriano de Azevedo Marques e Egon Bockmann Moreira[34].

Essas experiências vêm sendo testadas no Brasil para os servidores na lateral das clássicas discussões. Na pesquisa exemplifico com o modelo do Município de Santos, SP, e do acordo de resultados da Lei Estadual n. 17.600/2008 do Estado de Minas Gerais. São exemplos que precisam ser melhor diagnosticados e pesquisados, inclusive pelos estudiosos do direito.

Quanto à dignidade das carreiras, a questão passa necessariamente por um debate sobre qual tipo de função pública vamos adotar, se a função pública aberta ou fechada para as ocupações do Estado.

Por exemplo, já vi municípios que, em seus quadros, tinham um grande contingente de auxiliares de limpeza que estavam inseridos em “uma carreira” que basicamente se dava nas progressões e promoções por antiguidade pelo fator tempo. Hoje esses corpos, por não requererem alta técnica, estão todos na sua maioria alocados nas terceirizações para o gestor fugir dos controles já expostos linhas acima e também dos adicionais por tempo que a eles se aplicavam por estarem submetidos ao regime estatutário. Essas ocupações se amoldam muito à função pública aberta.

Outro exemplo curioso, que vivenciei em um município e que positivamente deu dignidade de a determinadas funções pelo fator remuneração, foi a migração dos motoristas dos quadros da administração para a terceirização. Por conta do fenômeno da compressão das carreiras e das pressões dos orçamentos, esses motoristas, dentro dos quadros próprios do município, percebiam pouco mais que um salário mínimo. Contudo, para se conduzir ambulâncias e ônibus escolares são exigidas cada vez mais qualificações e responsabilidades desses profissionais, o que dificultava recrutar pessoas interessadas, ainda mais que, no setor privado, esse profissional tinha remuneração próxima de dois a três salários mínimos, a depender até mais. A solução intermediária foi a terceirização que conseguiu corrigir os salários para o padrão da iniciativa privada e ainda fugir dos limites de pessoal da LRF, embora representou aumento de custos para a administração, bem como permitia o uso dos sistemas de recrutamento não republicanos e nem a estabilização no vínculo.

Muito obrigada Fúlvio, parabéns novamente pela profundidade no enfrentamento desta questão tão rica. Ficou algum ponto que gostaria de complementar em relação às perguntas? Fique à vontade para fazer as considerações adicionais que gostaria de discorrer sobre e sucesso na divulgação e publicação de sua rica obra!

Fúlvio M. Faria.

Eu que agradeço, professora. Este tema me é de muita curiosidade. Peço desculpas à senhora e ao público pelas extensas respostas. São as inquietações acumuladas durante a pesquisa.

Acho que pude contribuir um pouco mais sobre o tema nas respostas.

Para a função pública brasileira, para o nosso funcionalismo, de fundo, as melhorias estão e sempre estarão no ambiente educacional. É nesse ambiente que se produzem pesquisas, é nele que os funcionários treinam para os concursos, é nele que se aperfeiçoam o serviço, é nele que melhoram a sua produtividade. É preciso nos dedicarmos na estruturação cada vez mais desses espaços principalmente para o interior do Brasil onde as disparidades são mais latentes.

No mais é isso.

Muitíssimo obrigado pela oportunidade, professora.


[1] Não é exagero retórico o “quase diariamente”. Quem enfrenta a pesquisa sabe que o pesquisador vive angústias diárias, as quais são os problemas, as perguntas, os métodos e como resolver tudo isso ao longo da pesquisa.

[2] Por exemplo no Brasil já se empregou uma definição legal se utilizando desse critério, como o era o art. 2º da Lei n. 6185/1974: “Art. 2º Para as atividades inerentes ao Estado como Poder Público sem correspondência no setor privado, compreendidas nas áreas de Segurança Pública, Diplomacia, Tributação, Arrecadação e Fiscalização de Tributos Federais e Contribuições Providenciárias, Procurador da Fazenda Nacional, Controle Interno, e no Ministério Público, só se nomearão servidores cujos deveres, direitos e obrigações sejam os definidos em Estatuto próprio, na forma do art. 109 da Constituição Federal”.

[3] GAZIER, François. La fonction publique dans le monde. France: Editions Cujas, 1972.

[4] FORGES, Jean-Michel de. Droit de la fonction publique. 2. ed. Paris, France: Presses Universitaires de France, 1997.

[5] DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. 3. ed. Paris: Ancienne Librairie & C, Éditeurs, 1927.

[6] MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1969.

[7] CARGO. In: CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4. ed. revista pela nova ortografia. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010. p. 131.

[8] Assim define José Cretella Júnior: “CARGO – Lugar e conjunto de atribuições que lhe são inerentes, confiado pela Administração a pessoa física que, agindo em nome do Estado, desempenha atividades concernentes ao serviço público. […] CARGO PÚBLICO – […] é a incumbência que o Estado atribui a uma pessoa física, que é o agente público. Materialmente falando, é o lugar no espaço, o círculo em que se locomove o agente público para poder desempenhar os deveres que lhe são atribuídos por lei.” CRETELLA JÚNIOR, José. Dicionário de direito administrativo. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 117.

[9] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 42. ed. atual. até a Emenda Constitucional 90, de 15.9.2015. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 524.

[10] Claro que essa definição de Hely Lopes Meirelles precisaria de retoques visto que no texto constitucional atual (1988) se admite, como sempre se admitiu, funções perenes que não estavam na compreensão de cargo, como as funções de confiança, as funções desempenhadas nas comissões de licitação, de processos disciplinares, grupos de trabalho, etc.

[11] CAVALCANTI, Themístocles Brandão. O funcionário público e o seu estatuto. Rio de Janeiro e São Paulo: Livraria Editora Freitas Bastos, 1940. p. 136-137.

[12] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo brasileiro. 32. ed. rev. e atual. até EC 84/2014. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 261.

[13] COMMIS. In: Dictionnaire Godefroy. Disponível em: <http://micmap.org/dicfro/search/dictionnaire-godefroy/commissaire>.

[14] COMMIS. In: Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales – CNRTL. Disponível em: <https://www.cnrtl.fr/definition/dmf/commis>.

[15] OFICIAL. In: CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4. ed. revista pela nova ortografia. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010. p. 458.

[16] NÉZARD, Henry. Théorie juridique de la fonction publique. Paris, France: Librairie de la Société du Recueil général des lois et des arrêts, 1901.

[17] Exemplo desses pedidos é dado por Antonio Candido, que, na obra a alusão Antônio Nicolau Tolentino, reproduz requerimento deste de fevereiro de 1826 pedindo para ser admitido como praticante não remunerado na Mesa de Consciência e Ordem, cujo integralidade do requerimento merece transcrição: “Senhor: Diz Antônio Nicolau Tolentino que achando-se com conhecimentos necessários, e até corrente nas línguas francesas e inglesa, como se vê nos documentos insertos, para servir em qualquer emprego; e porque na Secretaria da Mesa de Consciência e Ordem, roda com imenso trabalho, e talvez precise de maior número de empregados para melhor expediente daquela Repartição, e visto não se dever alterar a ordem à lei estabelecida, se oferece o Suplicante a servir sem estipêndio algum, até poder entrar de efetivo na primeira vaga que houver, fazendo-se o Suplicante, então necessário não só pela sua aptidão, como em conduta, o que a tudo se submete, e por isso recorre a V.M.I. Haja por bem Mandar que a referida Mesa Consulte sobre a exposição do Suplicante a fim de V.M.I. resolver o que for do Seu Imperial Agrado. Para V.M.I. se Digne deferir ao Suplicante como implora. E.R.M. | Antônio Nicolau Tolentino.”; in: CANDIDO, Antonio. Um funcionário da monarquia: ensaio sobre o segundo escalão. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. p. 21.

[18] GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo y obras selectas. 2. ed. t. 6. l. 2. El método en derecho – La administración paralela. Buenos Aires, FDA, 2012.

[19] FRANÇA, Bárbara Heliodora. O Barnabé: consciência política do pequeno funcionário público. São Paulo: Cortez, 1993.

[20] Cf. ARAÚJO, Florivaldo Dutra de. Os regimes jurídicos dos servidores públicos no Brasil e vicissitudes históricas. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, nº 50, p. 143-169, jan.-jul., 2007.

[21] Max Weber já reconhecia em seus textos o fenômeno do spoil system: “Assim apoiado, o spoils system era tecnicamente possível nos Estados Unidos porque, em face da juventude da cultura norte-americana, era suportável um sistema de puros diletantes, pois 300 a 400 mil partidários deste tipo nada mais podiam apresentar em favor de sua qualificação além do fato de terem prestado bons serviços a seu partido – este estado das coisas evidentemente não podia durar muito tempo sem produzir um enorme desgoverno: corrupção e desperdício sem igual, que somente um país com oportunidades econômicas ainda ilimitadas podia suportar.”; in: WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 2. p. 554-555.

[22] FILHO, O. da C. N. Um Episódio para a História do Serviço Público. Revista do Serviço Público, [S. l.], v. 107, n. 1, p. 195-206, 1937. Disponível em: <https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/2467>. p. 196-198.

[23] A íntegra do documento pode ser consultada em: ESTADOS UNIDOS. Pendleton Act (1883). In: Our Documents. Disponível em: <https://www.ourdocuments.gov/doc.php?flash=false&doc=48>.

[24] CAVALCANTI, Themístocles Brandão. O funcionário público e o seu estatuto. Rio de Janeiro e São Paulo: Livraria Editora Freitas Bastos, 1940. p. 61-63.

[25] GRÉGOIRE, Roger. La fonction publique. Paris: Libraire Armand Colin, 1954. p. 16 e ss.

[26] FILHO, O. da C. N. Um Episódio para a História do Serviço Público. Revista do Serviço Público, [S. l.], v. 107, n. 1, p. 195-206, 1937. Disponível em: <https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/2467>. p. 195.

[27] ANDRADE, Nuno Pinheiro de. O Estado moderno e os funcionários. Revista Jurídica: doutrina, jurisprudência, legislação, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, v. X, 3º ano, pp. 25-31, 1918.

[28] NOHARA, Irene Patrícia. Burocracia reflexiva. In: MARRARA, Thiago (Org.). Direito administrativo: transformações e tendências. 1. ed. São Paulo: Almedina, 2014. p. 349-372.

[29] Nesse mesmo sentido, Henry Jacoby: “Durante a segunda metade do século XVI estava mais ou menos estruturada a grande hierarquia dos funcionários de finanças, encabeçados pelo intendente e o superintendente.”; in: JACOBY, Henry. La burocratización del mundo: una contribución a la historia del problema. Trad. Enrique Contreras Suárez. México: Siglo Veintiuno Editores, AS, 1972. p. 22.

[30] IMBERT, Jean. L’élaboration d’une administration au XVIe siècle: la naissance de l’état (première partie). In: PINET, Marcel (Dir.). Histoire de la fonction publique en France. t. II. Paris: Nouvelle Librairie de France, G.-V. Labat – Éditeur, 1993. p. 28-30.

[31] Cf., por exemplo, esta seguinte passagem sobre a história do Conselho de Estado: “A clara distinção entre as “ordens” jurisdicionais (judiciais, de um lado, administrativas, de outro), que remonta ao período revolucionário, foi inspirada no desejo de impedir a renovação dos obstáculos colocados, sob as quatro último reinados do Ancien Régime, pelos parlamentos, que assumiram uma função política, para o exercício da autoridade real. Resultou na adoção de uma lei “sobre a organização judiciária” de 16 a 24 de agosto de 1790, ainda em vigor em algumas de suas disposições, incluindo o artigo 13, segundo a qual: “As funções judiciais são distintas e permanecerão sempre separadas de funções administrativas. Os juízes não poderão, sob pena de perda, perturbar, de forma alguma, o funcionamento dos órgãos da administração, nem convocar os administradores perante eles para o motivo das suas funções” […].” [tradução livre]; in; FRANCE. Conseil d’État. La juridiction administrative. Disponível em: <https://www.conseil-etat.fr/tribunaux-cours/la-juridiction-administrative>.

[32] Cf. Segunda Parte do livro: POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

[33] SANTOS, Rodrigo Valgas dos. Direito Administrativo do Medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020.

[34] Cf.: MARQUES, Floriano de Azevedo. Concessões. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 385 e ss.; e, MOREIRA, Egon Bockmann. Direito das concessões de serviço público. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 280 e ss.

Fúlvio Machado Faria

Mestre em Direito do Estado pela USP, Especialista em Gestão Pública Municipal pela Universidade Federal de São João Del Rei, Especialista em Direito Público pela PUCMG, Graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, foi Assessor Jurídico na Prefeitura de Silvianópolis-MG, Advogado e Revisor de Periódico da Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais.

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