O termo discriminar tem diversos significados. O sentido mais corriqueiro é o vedado pela Constituição, uma vez que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No entanto, existe um sentido técnico da expressão, sem a utilização do qual o Estado não cumpriria seu objetivo de construir uma sociedade justa e solidária.
Não se pode discriminar alguém, impedindo-o de usufruir de um serviço que deveria ser acessível a todos em razão de sua idade, pois o Estatudo do Idoso (Lei nº 10.741/2003), na esteira da Constituição, determina que nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de discriminação, mas, por outro lado, para que o Estado fomente a realização de uma sociedade mais justa, o legislador discrimina que aos idosos serão garantidos atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população e transporte público urbano gratuito, àqueles com mais de 65 anos de idade.
É imprescindível à atividade típica do legislador de elaborar leis discriminar, isto é, criar discrimes normativos que funcionem como parâmetros técnicos para a distribuição de benefícios por meio de políticas públicas ou mesmo para a restrição e o condicionamento do exercício da liberdade em nome do bem-estar coletivo, atividades que no Direito Administrativo são denominadas classicamente como serviço público e poder de polícia.
Nesta perspectiva, a discriminação não é apenas permitida, mas representa o cerne da atividade legiferante, desde que haja razoabilidade na escolha dos discrimes em razão das finalidades a serem alcançadas. Se o legislador optar por criar discrimes infundados, ocorrerão privilégios irracionais que poderão ser questionados judicialmente mediante alegação do conteúdo jurídico do princípio da igualdade (Bandeira de Mello, 1999, passim) ou por meio do devido processo substantivo (substantive due process).
Assim, por exemplo, a Constituição orienta o legislador a dar tratamento administrativo favorecido para as micro e pequenas empresas, uma vez que elas desempenham um importante papel no desenvolvimento, induzindo a criação de empregos e o crescimento das economias local e regional. Por conseguinte, estabeleceu o Estatuto da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte alguns favorecimentos administrativos nas compras governamentais (licitações).
A maioria dos dispositivos do Estatuto que tratam das compras governamentais foram previstos na adequada medida dos mencionados objetivos constitucionais, contudo, há alguns cuja razoabilidade é duvidosa, como, por exemplo, o que fornece mais prazo a pequenas empresas que tenham restrição na comprovação fiscal (art. 43, § 1º, da Lei nº 123/2006) para que regularizem a documentação, paguem ou parcelem seus débitos, mediante a obtenção de eventuais certidões negativas ou positivas com efeito de certidão negativa.
Poder-se-ia alegar, como foi o caso, que as microempresas e empresas de pequeno porte não possuem condições de manter um sistema eficiente de acompanhamento das licitações, daí a necessidade de desburocratizar, dando-lhes acesso privilegiado às compras governamentais.
No entanto, não entendemos pertinente o discrime legal, uma vez que não há motivos plausíveis para justificar que somente pequenas empresas tenham prazo diferido para regularizar pendências fiscais. Significa dizer que grandes e médias empresas devem participar com sua situação fiscal regular, enquanto que pequenas e microempresas com restriçõesfiscais poderão vencer a licitação, sendo-lhes assegurado por lei um prazo adicional para regularizar sua situação perante o Fisco.
Em suma, este é um exemplo utilizado para demonstrar que o juízo de razoabilidade é necessário para que se verifique a adequação dos discrimes aos fins a serem alcançados. A abertura dos canais de discussão da justiça dos discrimes normativos é fundamental à manutenção de um Estado Democrático de Direito, pois ela evita a consolidação do arbítrio e, por conseguinte, do autoritarismo nas medidas estatais.
Artigo originalmente publicado no Jornal Enfoque Jurídico, de março de 2011.
CITAÇÃO:
IMPRESSA: NOHARA, Irene Patrícia. Discriminações permitidas. Enfoque Jurídico, São Paulo, mar. 2010, p. 6.